Identidade cultural
Li um comentário sobre a menopausa como elemento importante da nossa evolução como espécime: a cessação da capacidade reprodutiva das mulheres a partir de certa idade promove a melhoria dos cuidados com a prole. Em acréscimo, colabora com o equilíbrio demográfico dessa nossa conturbada sociedade atual, eminentemente urbana.
Em outros tempos, a reprodução obedecia a critérios morais de cunho religioso que, em última instância, resultavam na regulação populacional. As ordens religiosas, cujos membros fazem o voto de castidade, foram e continuam sendo fatores importantes no controle populacional. O exercício da sexualidade circunscrito ao casamento também colabora para o equilíbrio populacional.
Na atualidade a juventude está sendo assolada pela depressão infanto-juvenil, fenômeno nunca antes registrado, e exposta ao ócio do estilo urbano de viver - são tantas as diversões e tão poucas as emoções. Ainda assim, imaturos, ociosos e em boa parte incultos, os nossos jovens procriam com desenvoltura.
Paralelamente, há um índice notável de intelectuais - e seus seguidores - empenhados em invalidar nossas origens enraizadas na Cristandade Ocidental, que tem na Idade Média importante referência. E mais, que o modo de ser medieval ainda se encontra muito vivo em todos nós - um exemplo disso é o renovado e indefectível interesse moderno pela Astrologia que, enquanto no Medievo era apreciada pela nobreza, hoje ganhou as massas, como convém aos fenômenos modernos. Bem, em primeiro lugar, invalidar aquelas origens me soa como mera retórica, mesmo porque não há como mudar o passado ou mesmo transformá-lo. Ainda com toda a força do pensamento, permanecem nosso passado e nossas origens culturais. Do mesmo modo, permanecem as demais origens culturais: a cultura iorubá permanece fortemente imbricada na alma de um povo assim como a nossa cultura em nossa alma. Acredito que o encontro de culturas é sempre muito rico: duas mundivisões que tanto se chocam como convergem naquela tríade que define a condição humana - nascimento, reprodução e morte.
O medo do inferno, na formação de nossas sociedades ocidentais, teve seu tempo e sua função. Hoje a gente até pode ignorar o inferno, já que temos os valores cristão introjetados em nossa conduta, como o respeito às liberdades individuais, o repúdio à escravatura, entre outras coisas - valores institucionalizados que, para nós, são simplesmente favas contadas, mas que um dia foram objeto de esforço aquisitivo. Chesterton afirma que há prova documental de que, na Europa Antiga e da Alta Idade Média, a alforria de escravos foi muitas vezes forjada no leito de morte de senhores romanos por influência dos padres da Igreja. Eu imagino que naquele momento crucial de subir à balsa de Caronte e enfrentar Cérbero, a idéia do inferno inspirava a fazer gestos de caridade e assim esperar ser recebido na Casa do Pai. O resultado é que a Europa Medieval evoluiu da escravidão para a servidão, ambos servo e escravo foram obrigados ao trabalho, porém, no caso do servo, em contraste com os escravos de antes, ele foi dono do seu corpo e não era obrigado a satisfazer as perversões sexuais de senhores nem ser submetido sem defesa a sua violência.
O filme Coração Valente, de Mel Gibson, retrata um costume antigo, dos tempos romanos, que na Idade Média fio recorrente: trata-se do "direito" conferido ao nobre de usufruto da noiva antes do pobre noivo camponês. Em Romeu e Julieta a gente vê o padre protegendo o direito de escolher o próprio par, coisa que na Idade Média não era ainda uma liberdade estável e aceita - a família negociava a noiva e indicava o marido que lhe convinha -, prevalecendo ainda resíduos dos velhos costumes romanos e pagãos. De fato sinto que a gente idealiza muito, tem uma tendência a estar idealizando a Antiguidade, o paganismo, uma série de coisas que não eram do jeito que a gente gostaria que tivessem sido. E isso é uma crença invalidadora das nossas conquistas, que contamina a gratidão pelas mesmas, gratidão que fortalece e renova nossa alma - como diria o jargão moderno, faz comprovado bem à saúde. Como dizia a poetisa Cora Coralina, hoje vivemos infinitamente melhor que ontem.
De minha parte procuro não criar, dentro do meu imaginário, nichos de ilusão paradisíacos, do tipo em outro tempo que passou era melhor. Meu Eldorado é aqui e agora. Na verdade, procuro me manter sobriamente atenta ao fato que tais Eldorados e Eras de Ouro estão dentro de mim e podem estar em construção, caso eu preste atenção. E a arquiteta sou eu mesma. Sonho e imaginação são funções validadoras do mito - essa força dentro de nós que é elemento de construção de utopias, construções cotidianas e constantemente renovadas, de geração a geração. O mito não está no passado ou em algum lugar, está dentro de nós, está no caminho, no caminhar mais que no chegar.
Desde menina eu me deparei com ricas contradições - como canta a diva Mercedes: "defender mi ideologia, buena o mala pero mía, tan humana como la contradicción" - da cultura ocidental, como a do medo andando de mãos dadas com a compaixão. Minha mãe - que era severa e bela: sem dúvida tinha olhos impressionantemente belos que agora fitam a eternidade e estão a encantar o anjos - me ensinava desde pequena, ao lado de muitas normas e regras de boa conduta, que todas elas, mesmo rompidas pelo pecador, caso este se arrependesse na hora de morrer, ainda assim Deus o receberia certamente em seus braços. Ora, isto para mim era um mistério da compaixão e permanece em minha memória como uma maravilha do amor. É o tal olhar do observador que dá o tom - e o meu olhar sobre minhas origens culturais discerne o bom e o mal, a humanidade da contradição.
Identidade cultural é preciso, sem ela, viver é estar à deriva.