Reencadernação ou reencarnação? Que nada!

A gente tem umas coisas tipo buscar - ou porque é bonito, bem aceito, tá na moda, ou porque não amadurecemos o suficiente para saber que na casa do vizinho há também dias em que a galinha não tá lá essas coisas e a vida denota seu ciclo de nostalgia, dor, alegria, satisfação, e etc... Enfim, a gente muitas vezes quer introjetar as coisas de outras culturas e religiões. E aí vira aquela salada.

O Joseph Campbell afirma que não dá prá misturar sistemas de crença. A gente pega um pouco daqui e dali, conforme nossos gostos, indiossincrasias, conveniências e o resultado é "buuummmm" - no colo da gente explode o fracasso de não acrescentar nada, antes subtrair de nossos sistemas de crença e de abertura ao Transcendente os meios de nos corrigirmos e de pegarmos impulso evolutivo rumo às conquistas espirituais. Das quais o Dalai Lama acredita ser uma bem importante a paciência e resistência ao sofrimento. E não confundamos, não se trata de um martírio com viés mazoquista, mas antes de uma tal gratidão, de um contentamento tal e capacidade de absorção dos grandes e bons momentos do cotidiano - sem nem mesmo necessidade de grandes experimentações -, por meio de constante exercício da modéstia de colher da vida as pequenas e deliciosas coisitas. Enfim, coisitas que nos supram de tal maravilhamento que sejamos capazes de encarar o sofrimento e a dor com coragem.

Bem, o nó está na tal da cultura, que está bem em voga e é facilmente identificável: a cultura do individualismo. E no final, depois de anos e anos nessa, a gente sente cá dentro um vazio; somos uma geração solitária. Estivemos sempre relativizando quem estava a nosso lado, sempre olhando prá frente, querendo o mais bonito, o mais inteligente, o mais talentoso, como se sempre no momento seguinte algo "melhor" fosse nos aparecer e, de quebra, ferimos nossos amados e amadas, ou as nossas vítimas. Resultado: muitas vezes deixamos escapar tesouros, preciosidades que já não voltam mais. Como dizia Poe, o poeta: "Quoth the raven, 'Nevermore.'

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting

On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;

And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming.

And the lamplight o'er him streaming throws his shadow on the floor;

And my soul from out that shadow that lies floating on the floor

Shall be lifted nevermore!"*

Mas enfim, a gente comete um monte de besteiras, perde grandes oportunidades de compartilhar - esse compartilhar que é semente da tal felicidade. E comete ainda indelicadezas absurdas. Exemplo: quanto à tal "reencarnação" - que para os orientais tem outro sentido bem próprio que dificilmente é possível ao ocidental internalizar assim "numa só vida" -, a gente acha que há quem sofra por conta do tal "karma" e assim pisoteia a compaixão em alguns momentos cruciais e de forma chocante. Exatamente pelo fato de seguirmos vendo as coisas através da lente ocidental, sendo assim, quando o sofrimento é conosco ou alguém de nossa predileção, então não é carma ou justiça cármica, mas "alguém que jogou uma energia negativa". E por aí vai a sandice esquisotérica.

Compartilhar almejo, assim mesmo do jeito que posso, uma helênica, romana, judia, cristã. Assim, simplesmente comum. Mas garanto que, felizmente, "ainda nesta vida", dei conta de dar a guinada e encontrar o interesse maior e mais gratificante da vida - o outro. E por amor ao outro, ai!... quem dera tivesse a grandeza de morrer. Ou , pelo menos, assim bem mansinha, chorar, doar, deixar de fazer má criação. Sempre atenta ao coração e dor do outro, meu irmão e minha irmã, queridos da minh'alma.

* Tradução livre: "Grasnou o corvo, 'nunca mais!'

E o corvo, impassível, ainda pousa, ainda pousa

No pálido busto de Pallas bem acima da porta de meu quarto;

E os seus olhos são idênticos aos de um demônio a sonhar.

E a luz da lâmpada que sobre ele escorre projeta-lhe a sombra sobre o chão,

e minh'alma dessa sombra não se erguerá jamais."