Troca de sons
A TROCA DE SONS
José Augusto Carvalho
Um homem chamado William A. Spooner (1844-1930) gostava de trocar os sons das palavras, como “You have tasted two worms” (Você provou duas minhocas) e “You have wasted two terms (Você desperdiçou dois trimestres) ou “Queer Dean” (Estranho deão) por “Dear Queen” (Querida Rainha). É por causa de Spooner que esse fenômeno em inglês tem o nome de spoonerism, em homenagem ao seu cultor.
Em francês, o mesmo fenômeno tem o nome de contrepèterie, como em “Trompez sonnettes” (Enganai campainhas) por “Sonnez, trompettes” (Tocai, trombetas).
Não é necessário, contudo, que o spoonerism ou a contrepèterie tenham significado: “Pauvrice n’est pas vité” é frase “spoonerist” ou “contrepétée”, sem sentido, de “Pauvreté n’est pas vice” (Pobreza não é vício).
Em português, à falta de um nome popular, esse fenômeno é cientificamente chamado de hipértese intervocabular. A hipértese é o nome que tem a metátese à distância. A metátese é comum na evolução do latim para o português e na linguagem coloquial, como o lat. semper, que deu sempre, em português, ou como a pronúncia popular tauba por tábua. É a metátese (ou a hipértese) que explica prolações como estrupo, largato, falcudade, entre outras, corriqueiras na fala descontraída, por estupro, lagarto ou faculdade.
Esse fenômeno da hipértese intervocabular ficaria restrito à gramática ou a uma ou outra frase esporadicamente encontradiça na fala de algum brincalhão, como em “transmimento de pensassão” por ‘transmissão de pensamento”, não fosse o uso literário que dele fizeram autores como Millôr Fernandes e Paulo Leminski, por exemplo.
Do primeiro é a fábula “A Raposa e o Bode”, publicada na revista O Cruzeiro, em 1961, e no livro Fábulas fabulosas (Rio de Janeiro: José Álvaro, 1964, p. 133-4, com o título “A Baposa e o Rode”, e, mais tarde, em Trinta anos de mim mesmo (Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1972, p. 98), da qual reproduzimos as duas frases iniciais e a moral: “Por um asino do destar, uma rapiu caosa num pundo profoço do quir não consegual saiu. Um rode, passi por alando, algois tum detempo, vosa a rapendo, foi mordado pela curiosidido.” “Moral: Jamie confais em qua estade em dificuldém.”
De Paulo Leminski é o “Diversonagens suspersas”, que, na p. 108 de sua Gramática da língua portuguesa (São Paulo: Scipione, 1997), Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante citaram como exemplo de “palavra-valise”. Além da hipértese intervocabular, Paulo Leminski utilizou também a metátese intravocabular, como no poema concreto do livro Caprichos e relaxos, em que joga, em 19 linossignos, com os sons do vocábulo metamorfose, a partir de “materesmofo”, passando por “mesamorfeto”, “termosefoma” e “motormefase”, entre outros falsos lexemas, até chegar a “metamorfose” (Melhores poemas. São Paulo: Global, 1996, p. 100).
Esse jogo lingüístico é encontradiço também em espanhol, segundo nos informa Marta G. de Torres Agüero, na tradução de La stylistique, de Pierre Guiraud (Buenos Aires: Editorial Nova, 1956, p. 25): “Cabizbundo y meditabajo” (por “Cabizbajo y meditabundo”).
Ainda que seja sempre interessante o efeito desse processo lúdico de troca de sons, é mais inteligente e surpreendente o seu uso, quando a versão hipertética mantém um sentido próprio, diferente do da frase original, como ocorria nas invenções do reverendo Spooner, merecidamente imortalizado em dicionários de língua inglesa.