TRANQUILAMENTE

Se um dia escrever sobre hoje, usarei na minha pena uma tinta escura onde brilhem estrelas, para que não fique sombria demais a noite das minhas memórias.

Falarei desta imensa abóbada negra, por cima das nossas cabeças, tecida de palavras, pela qual me desloco pendurado pelos dedos, cravados entre sílabas e emoções, balançando sobre um abismo gigantesco, uma concha de águas negras que nada agita, em veemências de tranqüila hipnose.

Contarei das vozes concretas, graves, pulsantes, vindas do brilho escuro na superfície das águas profundas, estabelecendo a melodia dessa canção primitiva que a abóbada, por cima, acolhe e, grata, ecoa.

E lembrarei essas outras, impossíveis de ignorar, mais guinchos que vozes, que num contracanto contralto e irritante, enveredam por outros ritmos, desafinando, ou apenas conversando durante esse concerto, a que nem sabem que pertencem, sem qualquer consciência de culpa.

E quererei jogar archotes nas profundidades dos poços escuros, onde se esconde leniente a indiferença das palavras amordaçadas pelo medo, novo senhor dos tempos, nivelador raso de paisagens em áridas monotonias.

Então cumprimentarei em febres de emoção os amigos sobreviventes nesse mesmo credo evanescente, e novamente tentarei pintar com cores de futuro as sombras em redor.

E os dias serão mais curtos.

Abril, 2008