A CRIATURA
Esta é a cena inicial de uma peça em construção, intitulada "O BANCO", que pretende ser tragicômica, enfocando o uso das drogas pelos homens e o modo ridículo como se comportam.
São abordadas várias dependências às drogas, tenham que nomes tiverem. E para que existam as drogas, o autor começa criando seu consumidor: o homem.
No começo o criador de esculturas (C) cria sua obra prima (Cr), que está sentada em um banco de madeira, alto (que acompanha toda a peça, daí o nome). A escultura é iluminada por um refletor, que revela a sua imagem num anteparo branco (tela), de forma a ser visto só em imagem, até o final da criação. Deve manter-se sem movimentar-se até receber a ordem, para fazê-lo.
O criador traja túnica branca comprida, olhar e feição complacentes, demonstrando prazer na realização de sua obra. Cercam-no jovens ajudantes, vestidos de túnicas compridas de cetim, azuis ou rosas, bem claros, conforme o seu sexo. Sentado num canto, desprezado, se acha o “Terêncio” (T), com seu chapéu de chifres, seu tridente e sua capa de cetim vermelha e preta. Tem uma colam preta, com meias compridas e sapatilhas pretas. Está sempre mal humorado, resmungando “Hum, Hum, Hum”, a tudo que é dito.
O criador dá seus últimos retoques, que lhe são sugeridos pelos ajudantes (A).
A1: Corrige mais um pouco a sobrancelha direita; está mais fina que a esquerda!
A2: Agora engrossa mais os músculos do peito, ele deve ser mais forte.
A3: Que umbigo mais estufado! Empurra mais para dentro!
A4: Tira um pouco mais de cabelo em cima, está muito cabeludo!
A1: Seria bom que ele tivesse um companheiro!
C: Já pensei em tudo. Sobrou uma costeleta, vou fazer uma companheira linda! Ele vai se sentir feliz!
A2: Faz loura!
A3: Prefiro ruiva.
A1 e A4: Ruiva não! Faz morena!
C: Será loira!
Todos: O Senhor é quem sabe...
C: E você (dirige-se para o Terêncio) vai ficar só resmungando? Dê alguma sugestão!...
T: Posso?
C: Claro!
T: Posso mesmo?
C: É claro!
T: Nem que seja uma maldade, você faz?
C: Uma maldadezinha a menos ou a mais, não vai prejudicar...
T: Garante?
C: Deixa de fazer suspense, já disse que faço o que pedir!
T: Pois eu quero... Garante que faz?
C: Lógico!
T: Olha lá, não vá desistir depois!
C: Manda ver...
T: Pois eu quero, quero mesmo, que ele tenha vida e possa pensar!
C: Puxa! Você foi fundo mesmo!
T: Sacanagem pouca é bobagem!
C: (dando os últimos retoques e um grande sopro) Você está pronto! Parla, saia e ande! (sai detrás da tela, um baixinho, careca, de óculos de fundo de garrafa, trajando uma colam cor da pele, com um anúncio tapando os genitais, onde se lê: “Beba Coca-Cola”. A criatura gesticula, brinca com os ajudantes e diz:
Cr: “Não tem mulher por aqui?
C: Amanhã, antes de eu partir para o descanso, já a terei feito. Vai dormir, que você deve estar cansado. (A criatura se retira, os ajudantes correm a guardar a tela e os apetrechos, enquanto o criador medita)
C: Agora é só criar a mulher e posso descansar. Onde seria um bom lugar para meu retiro?
A1: Fica na cobertura, de lá dá pra ver tudo!...
A2: Que bobagem! Do alto das montanhas é o melhor lugar!
A3: Que ridículo! Pega uma ilha no meio do mar e fica pescando. De vez em quando o senhor vai para o continente e vê tudo!
A4: Tenho uma idéia muito melhor. O senhor vai para o Guarujá, compra um carrinho de cachorro quente e assim pode ver de perto a sua obra. É só vestir-se de jeans e camiseta, com um boné do Corinthians, que ninguém nem vai percebê-Lo...
T: Vocês só pensam porcarias!
C: Então dê uma sugestão melhor...
T: Posso?
C: Claro, hoje você já deu uma genial!
T: Você gostou?
C: Foi ótima!
T: Então saca esta: Você se descansa dentro no coração das criações!...
C: Boa idéia! (Vai saindo satisfeito, acompanhado dos ajudantes) Idéia genial, tenho que reconhecer!
T: (Ficando para trás) E vão cansar de procurá-lo, por todos os cantos, sem achá-lo, machucando-o, dia após dia! (Sai dando gargalhadas, convicto das maldades que praticara naquele primeiro dia da criatura).
______________________________
Márcio Funghi de Salles Barbosa
www.recantodasletras.com.br/autores/drmarciofunghi