História (Gênero e Fenômeno)
I - Tempos Correntes
De fato hoje, vivemos num mundo diferente daquele que viveram Bismarck e Mazzini. Sem ter pretensão ou desejo de traçar panoramas, ou ainda narrar fatos e acontecimentos responsáveis por abalar nossa sociedade pós-revoluções industriais, essa introdução tem como objetivo principal promover o embarque do leitor na real intenção desse ensaio.
Os historiadores de um passado não muito distante geralmente partiam do início de um ciclo qualquer e passavam a explicar fatores que levaram, por exemplo, à desintegração da ordem existente, que passava a ser chamada de velha ordem. Desse modo, quase que automaticamente forneciam explicações sobre como o novo mundo iria erguer-se. Portanto, a história insiste em relatar episódios marcantes e repetitivos como: as duas guerras mundiais; o estopim do fascismo; e a partir de 1945 a bipolarização mundial. Com isso, o ensaio se desenvolverá enraizando-se à vida e ao aspecto comportamental do novo mundo e abandonando as normas e padrões do mundo que se extingue.
Um dos fatos característicos da história contemporânea é que a história mundial, bem como as forças que lhe dão forma, não podem ser compreendidas se não estivermos preparados para adotar perspectivas mundiais. Ou seja, devemos adicionar capítulos da história extra-européia às páginas do mundo capitalista, o mundo globalizado. Assim, se fazem necessários nas análises atuais, o complemento dos ramos históricos americano, africano e asiático. Estes dão um novo ângulo para se analisar um mundo novo. É preciso salientar também que a eclosão de conflitos entre nações européias a partir principalmente de 1850 deixou as principais cicatrizes na orgulhosa sociedade sedenta por lucro. Sociedade esta vinda de um também conturbado século XVIII.
Fazendo uma análise mais aprofundada sobre nossa compreensão de sociedade podemos tirar conclusões satisfatórias. Ainda hoje século XXI, baseamos nosso condensado patrimônio acadêmico e cultural em alguns acontecimentos intelectuais europeus como o Renascimento e o Iluminismo. E em todos os grande momentos decisivos do passado, deparamo-nos com o novo, o dinâmico, o revolucionário. Certamente que há pouca dificuldade em identificar momentos em que a humanidade salta de seus velhos rumos e toma posição num novo plano. Porém, quando analisamos os fatos com um teor de “contemporaneidade”, relevamos inconscientemente o fenômeno corrente da história, ou seja, o fato de que a história contemporânea ainda está sendo escrita nas páginas do tempo. E ocorrendo desse modo, ao analisarmos situações e problemáticas isoladas, eliminamos a influência de elementos que estão se descortinando no presente imediato e de elementos que se descortinarão no futuro. Não que estejamos alterando a história factualmente, mas sim no imaginário. Mudamos, portanto, a nossa visão sobre um determinado acontecimento. Poderíamos com certeza encaixotar o marco histórico da Revolução Cubana liderada por Fidel Castro em 1959. Entretanto, as problemáticas que se descortinam acerca desse fato hoje, mudarão nossa impressão sobre a mesma revolução.
Essas mudanças são fundamentais porque fixam o esqueleto ou armação em torno do qual a ação política se enquadra e desenvolve. Contudo, há lugar para divergências de opiniões sobre vários assuntos já que cada um de nós é livre para formular sua própria apreciação sobre a relevância ou não, ou sobre o significado ou não de um certo acontecimento histórico.
II - Contemporaneidade
A história do tipo tradicional principia num determinado ponto do passado – a Revolução Francesa, por exemplo, ou a Revolução Industrial – e opera sistematicamente para diante, traçando um desenvolvimento contínuo segundo as diretrizes fixadas a partir desse ponto de partida escolhido. Já a história contemporânea, segue um procedimento quase que oposto. Assim, em relação ao desenvolvimento da moderna sociedade industrial, a “contemporaneidade” agiria de modo a interessar-se pela extensão gradual dos processos industriais e desprezar as diferenças substanciais entre a primeira e a segunda Revolução Industrial. Nessa ótica, tais diferenças são menos significativas do que o indiscutível elemento de continuidade que liga os séculos XVIII e XX.
É verdade que nenhuma linha nítida divide o período a que chamamos “contemporâneo” do período denominado “moderno”. Com base nesse aspecto torna-se justo caracterizar a idéia da continuidade histórica como sendo sensata. Por isso, quando pomos em vigência o objetivo de compreender as raízes primordiais da era em que vivemos, acaba sendo praticamente inevitável aceitar a “contemporaneidade”.
III - Acidentes sócio-temporais
Sob um olhar peculiar a sociedade pode ser caracterizada como uma “sociedade de massas”, como já dizia o escritor Geoffrey Barraclough. Basta olharmos para a movimentação social do século XX e notaremos quão radical foi o advento das massas que alterou não só o contexto de nossa vida individual como também o sistema político em que nossa sociedade está organizada. Quando foram introduzidos os novos processos industriais em larga escala e surgiram novas formas de organização industrial, naturalmente forçou-se a concentração das populações em áreas congestionadas, de fábricas e ruas sujas. Desse modo estruturava-se uma sociedade com bases arenosas, nutridas pela esperança de uma solução ideal. Nos novos aglomerados urbanos, uma vasta, impessoal e maleável sociedade de massas nasceu, e a cena ficou montada para desalojar os então predominantes sistemas social e político burgueses, bem como a filosofia liberal que os sustentava, substituindo-os por novas formas de organização política e social.
Com essa nova concepção de sociedade em vigor, o extraordinário adentrava o campo do cotidiano e isso gerou rapidamente uma gama de problemas. Questões como o saneamento e a saúde pública tornaram-se urgente e a aparelhagem do governo da época era incapaz de administrar essa maligna epidemia estrutural. Coube aos países de frente capitalista mais avançados da época, por volta de 1970, como Inglaterra e Estados Unidos, suportar o peso dos agraves recém-surgidos. E assim o fizeram dando corpo a uma nova acepção política, uma nova filosofia de intervenção estatal. Começavam aí os anos que selariam o fim do período do “laissez-faire”.
Ficava cada vez mais claro o inevitável processo de adaptação perante as novas medidas tomadas em que o Estado deveria passar a ser um vigilante nas noites de sono e deveria passar a desempenhar um assistencialismo bem mais efetivo do que quando a política reinante era o Liberalismo clássico. Dessa maneira, o Estado desempenharia um papel de interesse individual, uma vez que lhe “era dado direito” de forte repressão. O efeito das adaptações, resumidamente, foi tornar impraticável o velho sistema de democracia parlamentar que se desenvolvera na Europa a partir das classes sociais do fim da Idade Média e do início dos tempos modernos, e inaugurar uma série de inovações estruturais. Essas inovações resultaram, num curto intervalo de tempo, no deslocamento do sistema representativo liberal e individualista, substituindo-o por uma nova forma de se fazer democracia: o Estado dos partidos neoliberais.
Certa quantidade de fatores se aglutinaram com a finalidade de ocultar a natureza insurgente e desafiadora dessa mudança. Primeiramente, o fator terminológico. Por exemplo, na Inglaterra, o simples fato de que a história dos partidos e o próprio termo “partido” remontavam ao início do parlamentarismo no país, ou seja, por volta de meados do século XVII, e que estava em aparente continuidade, foi o suficiente para criar a ilusão de que nada mais ocorrera senão um processo de adaptação com o tempo que em nada teria alterado a essência política do parlamentarismo. Num segundo momento, o fluxo ideológico e os constantes embates filosóficos e analíticos tornaram a questão mais complexa e nebulosa. Tanto nos Estados Unidos quanto no ocidente europeu, a preocupação era tamanha em demonstrar que era a democracia que seria a responsável por garantir os direitos e liberdades individuais, em relação ao sistema de partido único existente nos países de orientação comunista e fascista, que se tornara comum indagar-se a respeito da eficiência das modernas formas de governo e até que ponto representavam uma ruptura com a democracia de um século atrás. Sobre esse assunto, a opinião popular acaba falhando, é insatisfatória. Já que a população, independente do seu valor em termos de teoria política, não levava em conta o fato de que o comunismo, o fascismo e o sistema multipartidário ocidental eram diferentes respostas ao colapso do liberalismo e da sua democracia do século XIX que sucumbira perante a pressão das massas.
VI - Disputas pela hegemonia política – pós 1945
Apesar do período que compreende o final da Segunda Guerra Mundial e se estende até a queda do gigante soviético comumente passar a ser chamado de “Guerra Fria”, não houve heterogeneidade no decorrer desses anos todos. Há uma série de conflitos menores criados a partir de focos de disputas. E mesmo comprovando-se o mérito da questão, a história desse período foi reunida sob um padrão único mediante a peculiar situação internacional reinante até a queda do muro de Berlim: o constante confronto das duas maiores potências emergentes da segunda grande guerra.
O grande conflito mal terminara quando a humanidade mergulhou no que se pode encarar, razoavelmente, como uma Terceira Guerra Mundial, embora tenha sido peculiar. Pois como observou bem o teórico político Thomas Hobbes, “a guerra consiste não só na batalha, ou no ato de lutar, mas num período de tempo em que a vontade de disputar pela batalha é suficientemente conhecida”. Desse modo, gerações inteiras nasceram à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se, podiam ocorrer a qualquer momento, e destruir o planeta. Na realidade, a situação era bem mais complicada já que o significado duradouro da luta ideológica foi preparar o palco para mudanças muito mais profundas – por exemplo, a emancipação dos povos afro-asiáticos -, e sua importância para as condições do período mais recente do século XX e para tais e tão urgentes problemas como a fome da população mundial.
O conflito ideológico não é uma característica tão distinta da história, nem é sempre algo mais do que uma útil propaganda para perseguição de objetivos. A expansão da alfabetização e o aparecimento de novos métodos de doutrinação em massa levaram, sem dúvida, a um acentuado incremento no poder da propaganda. Não obstante, está fora de dúvida o fato de que o advento de uma nova ideologia, nascente pós-1917, com a URSS, afetaram a história contemporânea. O que é errado é encarar a questão como se fosse o problema central. Já em relação a batalhas ideológicas, o marxismo foi menos a causa do que um produto de uma nova situação global. E não foi por acaso que o período em que a tecnologia avançou abruptamente acabou sendo o responsável por propagar novos conceitos, como o conceito de Estado e suas funções, novas formas de organização social, com o surto da sociedade de massas, e por fim uma nova filosofia social. Dessa maneira, tal como o liberalismo surgira depois de 1789 em resposta à autocracia e aos privilégios, assim, no início de século XX, surgia o marxismo como ideologia e molde político do proletariado em desafio aos valores liberais.
Entretanto é importante ressaltar que a revolução proletária propriamente dita engajara-se no marxismo-leninismo e não somente no marxismo. Para isso, existem razões específicas. A primeira foi que Marx, embora desvendasse uma “visão magnífica” estava mais preocupado em analisar as forças dialéticas e as contradições íntimas que levariam à superação do capitalismo do que a estrutura da sociedade que deveria suceder aquela. Na mais momentosa de todas as questões, ou seja, o problema de liderança numa sociedade democrático-socialista, Marx nada tinha de preciso a dizer-nos e não fez qualquer tentativa para explicar e descrever que tipo de governo seria necessário para dar cabo a uma verdadeira revolução comunista. Além disso, o marxismo propriamente dito, ostentava uma inconfundível marca de seu tempo. E assim sendo, essa indelével marcação temporal estava presente em obras como o “Manifesto Comunista” e, portanto continha um teor de ilusão, de esperança fútil.
Analisando-se um pouco mais agora o leninismo, existem duas considerações iniciais a se fazer. A primeira é que o leninismo introduziu uma doutrina ativa de revolução. Lançou um desafio aberto à ordem social da época e atacou a democracia liberal expondo suas deficiências, e instando para que fossem remediadas, e rejeitando seus princípios e ideais básicos. A segunda é que o estabelecimento estatal comunista na Rússia acarretou a polarização do mundo em campos ideológicos. Enquanto o comunismo se manteve como um “ideal”, sem apoio material, seu impacto foi insignificante. Porém, quando se viu apoiado pelo Estado russo, ganhou força e passou a ser uma poderosa arma. Em qualquer situação pós-1989, a experiência e o exemplo russos não contam para o atrativo emocional e intelectual do marxismo, cujo ímpeto procedeu a Revolução Russa. Seu advento como uma das ideologias predominantes de uma nova era foi o reflexo da convicção de que o capitalismo liberal era incapaz de resolver os problemas da sociedade moderna, e enquanto a falsidade dessa crença não for demonstrada, em escala global, o impacto do marxismo continuará evidente.
V – Nuanças geopolíticas (meados do século XX)
Ao avaliarmos a situação mundial geopoliticamente, torna-se importante distinguir os países desenvolvidos dos subdesenvolvidos. No que respeita aos países industrializados do Ocidente, os acontecimentos, a partir de 1945 demonstraram a capacidade da sociedade capitalista para se ajustar às condições do mundo moderno. Embora a inflação persistente, o “subdesenvolvimento de alto nível” e a parcial “estagnação tecnológica” possam dar lugar a apreensões, poucas pessoas poderão negar que a economia Keynesiana, a manutenção do pleno emprego, os serviços sociais e a redistribuição de renda por meio de impostos restauraram a estabilidade do sistema de empresa privada que, antes de 1939, parecia estar à beira do colapso. Mas, quando passamos ao mundo subdesenvolvido, a situação é inteiramente distinta. Não se trata de que, sob condições adversas na Ásia, África e América Latina, o capitalismo baseado no lucro não funcione, mas antes, que quanto melhor ele funcionar e mais eficiente se tornar, tanto, mais provável é aumentar o desequilíbrio social e dar margem a uma tensão social revolucionária. Porém, mais importante ainda, é o fato de que o resultado dos altos padrões de vida alcançados nas sociedades abastadas do Ocidente foi perpetuar, e muitas vezes acentuar, as crônicas desigualdades na distribuição mundial de bens e serviços. Tomando o mundo como um todo, só uma pequena minoria privilegiada, largamente situada na América do Norte e na Europa Ocidental, desfruta as vantagens da abundância, e apesar de empréstimos, ajudas e assistência técnica, o abismo entre os povos industrializados e os subdesenvolvidos está se ampliando, não se reduzindo. Com exclusão dos países no bloco comunista, 62% da riqueza total do mundo encontram-se nas mãos de apenas 15% da população e tudo indica que o padrão médio de vida da humanidade como um todo está abaixo do nível no início do século XX.
Não seria realista supor que exista qualquer solução simples para os problemas apresentados por essas desigualdades. Mas está aí uma razão de fato para que o marxismo-leninismo continue sendo uma força ativa no mundo de hoje. Considera-lo, meramente, uma arma ideológica do governo soviético seria desvirtuar seu papel histórico. Pelo contrário, o comunismo russo, tal como se desenvolveu entre 1928 e 1953, foi um reflexo de condições especiais que não é provável repetirem-se; e há muitas indicações de que, à medida que evolui e é adaptado a outras circunstâncias, em outras partes do mundo, o marxismo começa a modificar ou rejeitar suas características especificamente russas. Evidentemente, ninguém cometeria o erro de subestimar o papel desempenhado pela União Soviética na história dos tempos mais recentes. Mas o significado do marxismo transcende sua importância como ideologia do Estado soviético. Historicamente, o marxismo, tal como interpretado por Lênin e Mao Tsé-tung, é significativo na medida em que fornece uma alternativa para os povos emergentes, a cujas condições o sistema econômico liberal do Ocidente bem como as instituições políticas e sociais a ele associadas não se adaptam facilmente.
Não é o único sistema alternativo concebível, mas é o único que possui dinamismo, a coesão global e a atração emocional que a situação desses povos solicita. Querendo avaliar seu impacto, não devemos encarar, simplesmente, o marxismo como ideologia soviética russa, mas, tal qual Lênin o viu, como uma força universal cuja missão era também universal. Já deu à sociedade do século XX uma forma elaborada segundo diretrizes distintas de tudo o que era conhecido no passado; e sua força ainda não está esgotada.