Literatura fantástica entre luz e sombra

Literatura fantástica entre luz e sombra (Publicado no Jornal Opção. Edição: 1526 - De 03 a 09 de outubro de 2004)

Leonardo Teixeira*

Viver é uma arte em busca do entendimento, num ciclo de rotinas que lutam contra o tempo. A vida, em si, é por demais misteriosa, e suas dádivas refletem num contexto simbólico que visa decifrar, revelar as formas e objetivos, através de outro símbolo formal, cumprindo o papel investigador: a literatura. Se a literatura é uma espécie de ficção mentirosa que, através da arte, copia a vida para retratar, esmiuçar e até mesmo destrinchar novos caminhos para explicar a própria vida, parece paradoxal que uma mentira, ou melhor, uma invenção ficcional possa interpretar melhor os liames existenciais do mundo, mesmo comparado à literatura tida como realista, no sentido de narrar a “vida como ela é”, modelo preferencial das literaturas ocidentais.

Como toda definição é incompleta, deixemos de lado os dizeres para aprofundar no fantástico mundo das palavras. Apesar do modismo europeu do século passado ter alcançado o gosto popular e erudito pelas narrativas fantásticas, esse apreço agora novamente é trazido à tona, sendo cada vez mais sofisticado, enriquecido e difundido nas diversas vertentes estilísticas e lingüísticas, alcançando inclusive outras linguagens como a pintura, os quadrinhos e principalmente o cinema, através dos heróis impossíveis e das tramas repletas de ações extraordinárias.

A princípio, um escritor pode muito bem viajar pelas fronteiras entre o real e o fantástico, na literatura. Há quem negue estabelecer regras claras ou padronizar gêneros no universo literário. O que de fato parece bastante razoável. Entretanto, vejamos a diferenciação “clássica” entre essas literaturas. O crítico Tzvetan Todorov salienta que “o fantástico narrativo é uma perplexidade diante de um fato inacreditável, uma hesitação entre uma explicação racional e realista e o acatamento do sobrenatural, ... deixando uma possibilidade de explicação racional, ainda que seja a da alucinação ou do sonho... O maravilhoso pressupõe a aceitação do inverossímil e o inexplicável, tal como ocorre nas fábulas...”

O fantástico explora um mundo que destoa do real pelos flashes sombrios, fantasmagóricos, sobrenaturais, absurdos, ou mesmo um mundo impossível, onde os fatos acontecem apesar das mínimas probabilidades. Repleto de significado, de símbolos, o fantástico interrompe momentaneamente o nosso inconsciente, fazendo-nos despertarmos do piloto automático que é a nossa atenção racional e rotina cotidiana. Isto porque já na segunda metade do século XVIII o romance gótico inglês explorou ambientes macabros e horripilantes, tal como ocorre no Franckenstein de Mary Shelley (possivelmente o primeiro romance de ficção científica e a primeira história moderna de horror), onde o ambiente costumeiro era os sótãos, passagens secretas, porões, castelos, torres, tempestades, quartos fechados, quadros sinistros, labirintos, ruínas, prédios abandonados, e outros trechos sombrios, além do clássico laboratório, com seus tubos de ensaios, máquinas terríveis à vapor, elétricos, ou ainda rudimentares, instrumentos cirúrgicos, poeira e lençóis tapando os móveis, propiciando a criação do ser vivo através de pedaços costurados de cadáveres, reanimados pela força da faísca do relâmpago. O fato de a criatura híbrida ter se voltado contra o seu criador (Dr. Victor), questiona até que ponto a ciência pode subverter a ética e desafiar os princípios divinos e da natureza, subvertendo a ordem natural das coisas, tentando revelar mistérios até então inatingíveis. Esse gótico inglês foi fonte de inspiração de romancistas alemães no início do século XIX, que tinham como ideal representar a realidade subjetiva do nosso vasto mundo interior mental.

O fantástico foi variação das clássicas histórias de fantasmas, ambientadas em mansões decadentes, portas que rangem e batem sozinhas, mosteiros abandonados e castelos insalubres. Repleto de cenas noturnas em invernos terríveis, os fantasmas, ora sanguinários e vingativos, são, em geral, entidades sofredoras do gélido umbral do pós-morte. A modernidade também os descreveu em aparições urbanas, como os escritores Ray Bradbury, Tim Powers, Stephen King e Fritz Leiber. Outro lado das histórias de fantasmas é o lado policial, um gênero que apareceu assim como o gênero terror para diferenciar das ghost stories tradicionais. Assim foi Edgar Allan Poe, o mestre do conto policial, mesclando fantástico e policial, aventura e dedução, o raciocínio e o gótico. Esse autor do famoso poema O Corvo, descreveu em Os crimes da rua Morgue, o verdadeiro assassino das duas mulheres: um orangotango, e também escreveu o conto A Carta Roubada. Esses contos policiais são tão lembrados quanto O Gato Preto, O Poço e o Pêndulo, e A Queda da Casa de Usher. Freqüentemente, Poe descreve personagens doentios, obsessivos, vocacionados para o crime e para a morte, dominados por maldições hereditárias, seres que oscilam entre a loucura e a lucidez, num transe assustado de um terrível pesadelo. A narrativa dramática de Poe também nos leva a um mundo labiríntico subjetivo, deixando calafrios em leitores mais desavisados. Exemplo disso é o conto O Coração Denunciador, monólogo interior do assassino que mata o velho por simples pavor ao seu “olho de abutre... azul-pálido, coberto por um véu horrendo”, que tanto perturbava o assassino. O coração disparado do velho era audível até o momento crucial, em que o velho ficou “morto como pedra”, e, mesmo após ocultar o cadáver, o assassino que era incomodado pelo olho, agora é novamente incomodado pelo coração do velho, confessando o crime. Poe serviu de inspiração a autores como Conan Doyle (autor do famoso Sherlock Holmes), Maurice Leblanc, Baudelaire, Chesterton, Guy de Maupassant e Balzac.

Além das histórias de fantasmas, há as histórias em que o mal se transfigura num ser, num objeto ou num processo, interferindo em nosso mundo. Há a necessidade do herói restaurar a paz social e a harmonia rompida. Os seres dos Mitos de Cthulhu, de H.P. Lovecraft, representavam esses seres extraordinários, extraterrestres e malignos. O mito do Dr. Fausto, desenvolvido por Goethe, Thomas Mann e outros escritores, também nasceu de um pacto sinistro com o próprio mal. Quem mexe nesse ínterim, acaba por se corromper. Serve o papel literário de advertir aos mais descuidados. No conto The jolly corner, Henry James apresenta o fantasma do protagonista como sendo o próprio personagem, embora mudado, pois aquela era a imagem da vida dele se tivesse outro curso. No conto O Homem de Areia, E.T.A. Hoffmann apresenta o personagem Natanael, que, apesar de adulto, carrega os pesadelos da infância, como se ficasse preso ao passado. A leitura do Homem de Areia inspirou Sigmund Freud a escrever um famoso ensaio sobre o “estranho”. O mundo vai sendo derrotado sem resistência a essa materialização do mal. Por estar carregado de improbabilidades, o fantástico é o modo narrativo onde emerge com mais desembaraço o inconsciente. Como nossos olhos só enxergam os reflexos iluminados, nossa consciência só assimila o que reflete linguagem. Apesar do aparente paradoxo de transcrever imagens inconscientes para a ficção, com imagens oníricas, absurdas, criativas, mas sem comprometer a boa fluência da narrativa, iluminando com a força da linguagem os lugares do inconsciente até então intocados, o fantástico consegue vencer a tenção entre o racional e o irracional, expulsando os temores de uma terra inacessível ao homem comum, mostra ainda que se há diversos limites no mundo, não há limites em nossa imaginação.

Percebe-se que a arte, principalmente a literatura de ficção científica, possui o poder de antecipação. Temos vários exemplos disso, tal como a viagem à lua, o designe de espaçonaves, a biotecnologia etc. A questão dos clones, apesar de não estar presente diretamente no livro Admirável Mundo Novo, do escritor inglês Aldous Huxley, onde a sociedade futurista e totalitária propaga a vida sexual e promiscua dos humanos, sendo gerados em laboratórios e conceber crianças em laboratórios, numa parafernália que produz os “clones” com o seu destino já pré-definido nas castas. Basta a luta heróica do personagem “selvagem” que consegue abolir diversos preceitos do Super-Estado, que desencadeia todo um processo revolucionário para se desvencilhar das garras daquele sistema. A inventividade é nitidamente observada nessas histórias. Um dos grandes escritores, talvez o pai da ficção científica, Herbert George Wells, autor do famoso conto Em Terra de Cego, em seu romance A Ilha do Dr. Moreau, o cientista Moreau se isola numa ilha deserta para realizar experimentos que visavam mesclar, ou melhor, hibridizar características humanas com animais, gerando criaturas bestiais e incontroláveis, que, assim como Frankenstein, acabam destruindo o seu criador. Wells, apesar de sua criatividade, sempre se preocupou em mostrar a moralidade do mundo, deixando um recado para a ciência: não se deve subverter os limites impostos pela natureza. Além disso, o conto filosófico de Voltaire foi crucial ao desenvolvimento do fantástico, onde o linear intenso e cortante não oferece nada gratuito: tudo possui um pretexto e desenvolve um final. Em vida, Voltaire tinha mais fama de sua verve ferina de uma irônica e sutileza incomuns. Apesar de conhecido por suas obras (Cartas filosóficas, Tratado sobre a tolerância, Ensaio sobre os costumes, Espírito dos povos, dentre outros), melhor que suas peças teatrais são seus excepcionais e pouco falados contos, dentre eles Zadig e Cândido.

Criticando a filosofia otimista de Liebniz com o personagem Pangloss, dizendo que tudo caminha o melhor possível e que não há efeito sem causa, discutindo sobre o Universo, os males morais e físicos, a origem e a natureza das coisas como a alma, a harmonia preestabelecida, a liberdade e necessidade, a política e a sociedade, o destino humano e o livre-arbítrio, Voltaire consegue uma proeza literária: conectar assuntos filosóficos e culturais numa história repleta de ação e peripécias, onde personagens morrem e depois surgem vivas como num milagre, e os capítulos, em geral, finalizam deixando o leitor curioso pelos próximos capítulos. O conto (que é um mini-romance, com cerca de 100 páginas) não permite parada. O estilo irreverente com a ironia afinada e sutil, longe das ironias “pesadas” de Gregório de Matos, por exemplo, deixa no texto um tesouro em entrelinhas. Cândido, em suas aventuras por todo o mundo, sempre em busca do amor platônico e para resgatar a sua bela Cunegundes, descobre a tragédia da vida e do tempo, vê o orgulho consumir seus atos, mas aprende que o trabalho afasta três males: o tédio, o vício e a necessidade; afinal, “que importa que haja mal ou bem? É preciso cultivar o nosso jardim. Trabalhemos sem filosofar!” Na literatura fantástica também não importa que haja um herói falido, uma sobrevivência ameaçada, algo divino ou maligno. Pois o nosso inimigo é real, muitas vezes é o próprio homem e suas mesquinharias e mediocridades, mas outras vezes o inimigo é abstrato, trava-se uma luta espiritual e a grande batalha é travada na mente. Por isso é que o conto fantástico, nos dizeres de Italo Calvino, é também filosófico. O conto fantástico não só cultiva, mas faz o jardim produzir seus frutos e os expõe.

A sensação de estranhamento é o que torna o fantástico inesquecível, posto que foge do lugar comum e de uma simples história clássica, com início, meio e fim. Exemplo de estranhamento é o que ocorre com Gregor, personagem de Franz Kafka, em A Metamorfose, após uma noite de sonhos conturbados, acorda transformado numa enorme e monstruosa barata, não podendo mais sustentar os pais e a irmã, já que o ser asqueroso e sombrio era incapaz de trabalhar, ainda mais viajando e sendo caixeiro de uma firma que “a menor falta já suscitava a maior suspeita”. Os familiares, por nojo e preguiça, demonstrando a maior ingratidão, não queriam cuidar do filho que tanto os manteve para simplesmente desfrutar do ócio. Recebia mais cuidados da empregada do que da própria família. Além disso, o final trágico de Gregor pareceu um alívio. De resto, Gregor se livrou da prisão e do fardo familiar. Na verdade, todo o estranhamento é uma crítica à hipocrisia humana. Por isso é que se diz que o fantástico consegue explorar muito bem esse outro lado.

Dar vida a criaturas inanimadas faz parte da história, da literatura, das religiões e das mitologias. A regra de a criatura voltar-se contra o criador, como Frankenstein, o Golem (que em hebraico significa embrião incompleto) surgiu de maneira inexplicável e se tornou uma das exceções a essa regra. O rabino Rabi Loeb (uns falam em Judah Loew) criou um boneco de barro, soprou no nariz dele e sussurrou um nome que seria capaz de dar vida e tirá-la do Golem. A criatura recebeu a missão de salvar os judeus dos massacres no gueto de Praga, porém, tornou-se extremamente violento, sendo o responsável pela carnificina. O judeu ordenou em oração que o Golem retornasse. Obedecendo a ordem do rabino, que proferiu o nome, o Golem teve sua vida retirada, voltando a ser um boneco de barro, podendo ser encontrado no sótão de uma sinagoga, envolto por uma terrível teia. Esta história foi contada pelo escritor polonês I. L. Peretz no conto O Golem. Diz a lenda que a criatura teria adquirido consciência e emoções, após liquidar os inimigos dos judeus e teria se apaixonado pela filha do rabino, que retirou-lhe a vida, prendendo-o no sótão da sinagoga Altneuschul de Praga. Na verdade, segundo a Bíblia, Deus moldou um boneco de barro e deu-lhe um sopro de vida, criando o primeiro homem (Adão) à Sua imagem e semelhança, cabendo ao homem se reproduzir, não sendo tarefa humana nenhum trabalho divino, pois o homem ao pó pode retornar. Apesar disso, é natural que a razão e a inteligência procurem testar e supor os limites e mistérios universais, numa busca incessante até encontrar o seu devido lugar, missão e papel neste mesmo universo. A literatura fantástica já nasce preocupada com essa busca, com o encontro do homem, superando os seus medos, num jogo de luz e sombra que engloba a própria fé sagrada, a ideologia e a credulidade individual.

Jorge Luis Borges afirmou que “o realismo não passou de uma excentricidade recente e que o fantástico sempre foi a linguagem preferida dos escritores, já que possibilita não só uma nova descoberta, mais uma nova maneira de descobrir”. Há, no fantástico, uma sensação de mistério a ser investigado nesse mundo ilusório. Posto que, o mundo real não existe, é uma ilusão; a nossa vida é um ritual que nos escapa, cuja finalidade jamais poderemos saber; somos sombras ou reflexos de criaturas mais complexas, que se deslocam num universo superior a este; ou ainda as vidas humanas estão destinadas a cumprir um roteiro traçado em outro plano, em outra realidade. Essas sensações podem ser encontradas em textos de João Guimarães Rosa, Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortazar e Osman Lins. Além do essencial mistério, o fantástico tem uma porção de magia. A magia pressupõe uma ritualística de aproveitar a melhor maneira dos acontecimentos, com o vislumbre das conexões de vários mundos, vários homens, num estágio cíclico, encantado. São mágicas as descobertas de culturas, lendas, seres folclóricos da mitologia brasileira, em Monteiro Lobato, o cordel rico nordestino, que inspirou Ariano Suassuna, até mesmo o anti-herói Macunaíma de Mário de Andrade. Não só mágico, como belo.

No conto A desintegração da morte, Orígenes Lessa desintegra a morte e faz ocorrer um apocalipse no mundo. Também matei a morte no conto O tempo, o espaço e as sombras, no meu livro de contos As sombras do dia, nove histórias explorando o fantástico. Um autor goiano que explorou a vertente do fantástico foi José J. Veiga, autor do romance A hora dos ruminantes, como uma crítica ao Militarismo de 1964, onde a metáfora de os bois terem invadido a cidade, serve de pano de fundo à dominação política pelos militares. O autor do livro de contos A Máquina Extraviada, e Os Cavalinhos de Platiplanto descreve a fala típica do caboclo interiorano, mas consegue retratar a humanidade universal com todos os seus lapsos e virtudes. Alguns objetos passam a influenciar os novos possuidores, mantendo a essência de seus antigos donos, tal como a cadeira e o espelho. O reflexo do espelho que passa a revelar a realidade das pessoas, mostrando a hipocrisia e a falsidade em que o homem costumeiramente se finge. Paralelamente à lenda do imperador Amarelo, descrita também no Livro dos seres imaginários, de Borges, no meu A Reflexão dos Espelhos, a personagem vê o seu reflexo tendo vida autônoma, e decide não mais copiá-la, causando verdadeira revolução e tragédia. Isso é um exemplo de que o fantástico pode causar espanto com reflexões e não só o temor oriundo do simples terror.

Se a literatura serve de alimento do espírito, é porque quando se abre um livro, uma nova janela se abre para revelar outras dimensões de um novo mundo. O tempo momentaneamente pára. É real a sensação de nos afastarmos desse mundo louco e superficial, que, num frenesi constante, nos exige respostas imediatas a problemas urgentes, onde barreiras são apenas etapas a serem vencidas em eterna competição. Não, o mundo não é todo assim. Apenas uma parte inconsciente daquele nosso piloto automático que é a nossa atenção racional e rotina cotidiana, uma vertente da chamada máquina humana. Por isso é que o realismo não é o único capaz de interpretar o Brasil e o mundo. Aliás, o fantástico serve melhor para quebrar esse inconsciente, suas sombras deixam rastros iluminados para nos livrarmos de forças que vão além da razão. Há limites no mundo, mas não há limites para a nossa imaginação. A realidade, vez por outra, é um assombro imenso; a vida é muito mais bela e complexa do que pode compreender nossa extraordinária razão.

Leonardo Teixeira é escritor, membro da União Brasileira de Escritores, pós graduado em direito público, foi cronista semanal do jornal O Popular e autor dos livros Mergulhando no Pensamento (1998, poesia), Afinadores de Piano (2003, contos) e As Sombras do Dia (2004, contos). É cronista semanal do jornal Diário da Manhã (www.dm.com.br). E-mail: escritorleo@gmail.com