Recordações.

Há uns anos que não ia até ao parque central.

É certo que embora a morar numa das freguesias da Amadora, poucas eram as vezes que me levavam até ao centro da cidade.

Tinha morado durante fartos anos por aquelas bandas, mas as contingências da vida levaram-me até outras paragens durante uns tempos.

Do centro da Amadora, fui viver por cerca de um ano na Reboleira, e dali, fui para a margem sul do Tejo, mais precisamente por uns anos para o Montijo, e depois para o Pinhal Novo.

Por motivos a que não me vou reportar, durante alguns meses estive internado num hospital da região de Lisboa o que me obrigou de novo a voltar primeiro para a Capital, zonas de Sete Rios e Benfica, e posteriormente para a Venda Nova, freguesia do Concelho da Amadora como já disse.

Conhecia o Parque Central como as palmas das minhas mãos pois vira e acompanhara todo o processo que o criara, desde que fora morar nos anos 60 para junto dele.

Terra inculta por não ser trabalhada há muito, apenas servia para ali algumas ovelhas pastarem, e a miudagem ir dar uns pontapés na bola num pedaço de terreno por eles delimitado.

A família sua proprietária, destinava-o para construção civil, mas depois do 25 de Abril foi este expropriado por utilidade pública, para nele se construir um pulmão na grande cidade em crescimento.

Antes porem, e aquando do grande incêndio que devastou um grande numero de barracas no bairro degradado da Falagueira foi ali montada durante uns meses uma cidade de lona onde os deslocados daquele foram recolhidos, enquanto as casas em construção para os abrigar em definitivo, eram edificadas junto à Colina do Sol freguesia da Brandoa, nas traseiras do Cemitério de Benfica.

Fora eu nomeado pelo então Governador Civil de Lisboa seu coordenador.

Parei o carro junto à estátua do grande Zeca Afonso e dirigi-me ao parque.

A primeira surpresa que tive foi o verificar que a vedação que o rodeava e até protegia em certa medida quem nele passava umas horas de lazer havia desaparecido.

Não sei se tal foi feito em definitivo, mas quem o fez, não pensou certamente que o à vontade com que se podiam deixar as crianças por ali desapareceu, porquanto se estas se afastassem de junto de quem as acompanhasse só o poderiam fazer pelas entradas dos portões, e sem esta, deixou de existir essa segurança, o que até pode por em perigo a sua integridade física por poderem com facilidade ir meter-se debaixo das rodas de qualquer veículo que por ali transite.

Por outro lado, qualquer meliante que ali faça um furto tem agora a vida facilitada, pois uma corridinha e está aquilo que podemos dizer safo.

Tive a tentação de me dirigir de imediato ao Bar ali existente, até para ver se este ainda pertencia ao meu amigo Luís, e se nele se encontrava alguém conhecido.

Mas cortei caminho e subi até ao alto do monte que artificialmente ali fora construído com o intuito de se criar uma espécie de miradouro sobre o lago artificial construído em baixo.

Era um local onde os reformados se costumavam juntar não só para falar dos tempos idos, mas também para lá jogar à sueca, às copas ou a qualquer outro jogo de cartas que sempre algum levava na algibeira para o efeito.

Sentei-me na relva e recordava com saudade as vezes que ali me sentara em tempos, quer à tarde quer mesmo à noite no Verão a ver o Tiago o Tó a Joana e a Inês, por vezes acompanhados pelo Miguel, bem como outros miúdos e miúdas da zona, a rebolar na relva até ao fundo do declive.

Ali vimos crescer este belo parque, e com o tempo as arvores nele plantadas e também os gansos e patos que com os seus filhotes corriam pelas águas e margens do lago.

Como disse, estava eu a vasculhar o meu passado, quando senti alguém chegar junto de mim, e senti mais do que vi, me fitava com alguma insistência.

Olhei de lado e reparei que era uma jovem e bonita mulher que o fazia.

Embora as suas feições não me fossem totalmente desconhecidas, não me apareciam como se referentes a alguém em particular.

O tempo embora nos mude, deixa sempre alguns traços que se mantêm.

Perguntou-me se me podia fazer uma pergunta, ao que eu assenti, com um movimento de cabeça e por viva voz.

Claro que podia, e até lhe ficava a agradecer pois assim talvez me pudesse recordar donde a conhecia.

Disse então que embora as minhas feições lhe parecesse serem basicamente as mesmas, tinha agora muito menos cabelo que à alguns anos atrás.

Respondi-lhe que era eu efectivamente quando disse o meu nome, mas que me desculpasse por não estar a conseguir recordar-me como a conhecia, embora os seus traços me dessem a saber que não me era totalmente desconhecida.

--Sou a Carla, e é natural que não me reconheça, pois tinha eu cerca de 12 anos a ultima vez que o vi, disse.

Uma espécie de flash fez-me voltar cerca de 10 anos atrás, a uma manhã cinzenta, carregada de nuvens e até um tanto fria.

Tinha ido a casa do Saul, e como estava quase na hora do almoço, e a vontade de cozinhar alguma coisa não era muita, pois vivia nesse tempo sozinho, resolvi fazer horas para comer alguma coisa num pequeno mas limpo restaurante ali existente, e onde amiúde ia.

Mais para passar o tempo que por outro motivo qualquer, entrei no Supermercado Europa que ao tempo ali tinha uma loja.

Dei uma volta e parei na peixaria, onde pedi à funcionária ali de serviço que me guardasse uma pescada que iria buscar depois do almoço.

Por ser cliente habitual, assim o fez.

Reparei então em duas crianças que conversavam atrás de mim contando umas parcas moedas na palma da mão.

A miúda teria talvez uns 10 ou 11 anos, e o garoto uns 7 ou 8.

Dizia a miúda para o irmão: para levarmos a lata das sardinhas não podemos levar o açúcar, pois o dinheiro não chega e a avó gosta tanto de beber o chá doce.

Sorri, mais com aquele sorriso nervoso que por vezes nos faz ter arrepios pelas costas abaixo que por qualquer outro motivo.

Não me pude conter e perguntei aos miúdos: falta-vos muito dinheiro para levardes as duas coisas ?

A miúda com um esgar de mágoa respondeu, só temos mais 5 tostões…

Fomos pedir para a estação mas ninguém nos dava nada…

A funcionária que atrás de mim a tudo assistia chamou-me e contou-me que aqueles dois miúdos e ainda uma irmã mais nova viviam com a avó já muito velhinha e doente, pois o pai havia morrido numa obra de construção civil, e da mãe nada se sabia, apenas que tinha emigrado para França.

Ela e as colegas na hora do fecho da loja e com a autorização do patrão davam-lhes o pão que sobrava, o que nem sempre acontecia, pois por vezes era todo vendido.

Não era muito desafogada a minha vida, mas senti uma raiva mal contida invadir-me, mais por saber-me impotente para resolver a situação, do que por qualquer outro motivo.

Não fora para isto que se fizera a revolução de Abril.

Pedi aos miúdos que esperassem ali por mim, e fui buscar um cesto de metal.

Com eles a reboque desci à cave onde comprei fruta e legumes, subi as escadas e adquiri alguma carne, massa, açúcar, manteiga, margarina e conservas.

Ia comprar congelados, mas lembrei-me de perguntar se tinha frigorifico em casa, ao que me disseram que não, e mesmo não podiam ter, pois não tinham nem luz nem água.

A água iam busca-la ao chafariz todos os dias, com um carrinho com rodas que um vizinho lhes emprestava, mas luz só de candeeiro ou velas.

Uma garrafa de azeite, uns pacotes de leite e cereais completaram as compras, a que juntei dois sacos de rebuçados Dr. Bayard, pois constatara que o miúdo se fartava de tossir.

Dois cestos cheios de compras, faziam a nossa felicidade, sim a nossa, a minha, a deles e também as da funcionária da caixa que estava com as lágrimas nos olhos.

Já fora da loja, perguntei onde moravam, tendo-me eles dito que era ali antes da Falagueira junto ao jardim das águas.

Mandei-os então embora, e lá iam eles todos curvados com o peso mas felizes, dois sacos para cada um.

O miúdo parou e voltando-se perguntou-me onde ia eu a seguir.

Apontei para a esquina da Rua dos Bombeiros Voluntários e disse: vou alem comer qualquer coisa.

Olhou, sorriu e disse: nunca comi numa coisa assim.

Chamei-os de novo e disse-lhes então: vão por essas coisas a casa e venham almoçar comigo, vão ter ali, eu fico à espera.

Mesmo carregados, pareciam ter asas nos pés a descer a Rua.

Cumprimentei o dono da casa e pedi para me porem três pratos e não um como era habitual pois ia ter dois convidados.

Passados alguns minutos chegaram eles com um ar de felicidade que só quem os viu pode avaliar.

A miúda, a Carla como soube então se chamava, entregou-me um Santinho que a Avó mandara para mim, (é uma figura de Cristo no Tumulo, com a Virgem Maria, Maria Madalena e o Anjo.)

Tenho perdido muitas coisas através dos tempos mas esse pequeno quadro ainda hoje anda comigo.

Almoçamos três bitóques, e pela maneira como tudo devoravam foi por nós todos, clientes e donos da casa, motivo também de felicidade e de satisfação.

Pouco ou quase nada falaram embora por vezes abrandassem no mastigar, como se à minha espera ficassem.

Os sumos foram bebidos em pequenos sorvos, como se quisessem que durasse por mais tempo o seu gosto.

No fim, foi a surpresa maior que podiam esperar, a dona do restaurante veio trazer-lhes duas taças de mousse de chocolate, oferta da casa.

A cara de espanto e alegria que fizeram, deu azo a que até lhes fossem batidas palmas.

Mandei-os então embora, mas senti dentro de mim, que algo fizera para ganhar um dia que até aí, nem me tinha corrido muito bem.

A Carla veio dar-me um grande beijinho e abraço dizendo-me, obrigada.

O Carlos, assim se chamava o miúdo um grande passou bem, mas nada disse, e senti que a voz não lhe saia mesmo que o quisesse fazer.

E lá foram.

Foi nessa altura que chegou o Saul, com quem tinha combinado ali tomar a bica, sendo então que quer a ele quer aos donos do restaurante contei a minha aventura do dia na integra.

Com o Saul fui falar com a Assistente Social do Centro da Segurança Social da Amadora, pessoa com quem trabalhara aquando do incêndio já referido, e a quem pedimos tentasse interessar-se por aquela família.

Como não tínhamos dados sobre os mesmos, fui com o Saul até junto das barracas onde me disseram moravam e meio encobertos pelos chapéus de chuva, pois começara a chover, lá conseguimos vislumbrar a porta onde eles se recolhiam.

Soube depois que uma Assistente Social havia tomado conta do caso e que passaram a receber ajuda quer a nível de alimentação quer de vestuário.

Passei a fazer uma coisa, de tempos a tempos, pela calada da noite metia uma nota de 50 ou 100 escudos, conforme podia por debaixo da porta.

Uma das vezes que o fiz, apanhei um grande susto, pois não sei como nem de onde apareceu um cão a ladrar ferozmente que me fez por a bater com os calcanhares quase nas costas.

A partir daí era com cuidados redobrados que o fazia.

De vez em quando encontrava os referidos miúdos que davam noticias das suas vidas, ficando a saber que já tinham luz em casa paga pela Assistência Social, e até livros e cadernos lhes haviam dado…

Felizmente estávamos na cidade de Abril, e onde algum espírito da revolução se mantinha.

Como sai da Amadora, perdi o contacto com essa gente, e só agora tantos anos depois iria saber o que entretanto se passara com eles.

A Carla sentou-se a meu lado, tendo antes chamado para junto de nós dois pequenos que ali próximo nos olhavam.

Mandou que me dessem um beijinho, e se sentassem junto de nós.

Soube então que eram seus filhos, e de um rapaz com quem casara quando tinha 17 anos, estando então já grávida do mais velho, agora com cinco anos. O outro tinha 3, e era a cara chapada do tio, que soube fora viver com a mãe, juntamente com a irmã mais nova para França.

A mãe soubera pela Segurança Social, que entretanto fizera uma pesquisa para o efeito, que o Pai deles tinha falecido e veio a Portugal busca-los.

Ela ficara, até porque alguém tinha que ficar a tratar da avó doente e velha, a quem alem da ajuda da Segurança Social, a nora agora mandava uma certa importância todos os meses.

A Câmara da Amadora deu-lhes uma casa, no bairro social da Falagueira, e assim o seu nível de vida deu um salto, para melhor.

Conheceu então o Pai dos filhos como ela dizia, que foi viver com elas, e como trabalhador da Câmara da Amadora passou a ajudar também no sustento da casa.

A avó já não viu nascer o segundo bisneto, pois falecera entretanto, num hospital de Lisboa para onde fora levada por estar muito definhada, mas que não se cansava de dizer, ter gostado muito dos últimos anos da sua vida.

Havia duas perguntas que eu sempre fizera a mim próprio e a para que nunca achara resposta.

Fi-las então: O que se passara em casa quando eles ali chegaram com os sacos do supermercado ? E quando chegaram do almoço ?

Foi entre gargalhadas nervosas que ela me contou que a avó ajoelhara junto da mesa e pondo as mãos rezara.

Quando chegaram do almoço, perguntou-lhes tudo o que se passara, e disse-lhes que a coberto do chapéu de chuva os tinha ido espreitar pela montra, para ver que não lhe haviam mentido.

Nessa noite antes de se deitarem, tinha-os feito rezar por mim, e disse-lhes acreditar que desse dia em diante tudo iria melhorar nas suas vidas.

Quando começou a aparecer o dinheiro por baixo da porta, soube que era eu que o lá punha, e assistiu aflita pela janela da porta, eu a fugir do tal cão, tendo exigido ao dono do mesmo que o deixasse amarrado a partir daí, dizendo-lhe que tinha sido ela a ser atacada pelo mesmo naquela noite.

Fartei-me de rir então ao recordar essa noite, e ao contar-lhe a ela o que sentira então.

Ainda gozou com o facto a safada, rindo tanto que as lágrimas lhe correram pela cara abaixo.

Fomos com os miúdos lanchar ao “Papalagui”, assim se chamava o bar nos meus tempos. Ali bebi uma loirinha, ela outra e os pequenos um leite com chocolate.

Comemos as famosas tostas mistas da casa, e que nos deliciaram.

Depois, bem depois fomos até ao tal supermercado onde nos conhecêramos, mas já não reconheci nenhum dos funcionários de outros tempos.

Ao cimo das escadas comprei dois carrinhos para os miúdos, e também, vejam lá, um saco de rebuçados Dr. Bayard, para cada um, tal como fizera 10 anos antes.

A Carla, disse-me então que o irmão adorava esses rebuçados e chegava a juntar dinheiro só para os comprar.

Como passaria ele agora em França sem eles ?

Ao passar junto à peixaria, recordei-me então de que não fora buscar a pescada que havia mandado guardar…

Será que ainda está no frio à minha espera ?

Na caixa perguntei á empregada que ali estava se a pescada que eu pedira para me guardarem há 10 anos atrás ainda lá estaria, mas a cara de fastio que ela fez, sinceramente não foi de modo algum a deixar-me boas recordações e vontade de lá voltar.

À porta foi com um grande abraço e votos mútuos de felicidades que nos despedimos com as lágrimas nos olhos.

Foi então que ela me disse que se não fosse eu ter aparecido, nesse dia a vida deles nunca teria mudado da maneira que mudou.

Talvez sim, talvez não, nunca sabemos o que o minuto a seguir nas nossas vidas nos reserva.

Ela desceu em direcção à Falagueira, enquanto os miúdos cada um seguro pelas mesmas mãos que antes transportaram dois sacos se voltavam para trás a dizer adeus.

Eu segui em frente até junto do carro que esperava por mim.

Para vós Carla e família, vai um abraço e os votos de que tudo na vossa vida corra de feição, tal como aquela vossa carinhosa avó um dia previu, dia esse que nunca esqueceremos certamente.

António Freire