Cronista: poeta do Cotidiano
As coisas só passam a existir para nós quando damos a essa coisa algum significado. Só aprendemos o mundo quando ele significa algo pra nós – do contrário – o esqueceríamos, ele passaria batido aos nossos olhos, seria indiferente. Não nos importa se morrem 30 ou 40 pessoas por dia na guerra do Iraque. Esses números não possuem nenhum significado para nós, não nos desperta ternura, não nos desperta tristeza – enfim, não nos desperta emoção. No máximo, nos dão uma vaga noção de grandeza, de quantidade, de proporção.
Quando lemos jornais dizemos “foda-se” silenciosamente após a constatação desses fatos e desses números. Números não nos despertam emoção, não nos cativam, talvez possam ter um maior significado para um matemático apaixonado ou para um ávido capitalista louco por dinheiro – esse capitalista insano que converte todo significado do mundo em cifras, quantidades, punhados de dinheiro –, mas para as pessoas em geral esses números não significam nada senão um número, resultados úteis de nossa abstração, para organizar e conceber a idéia da grandeza de algo, úteis para cálculos e para medir coisas.
As 30 ou 40 pessoas que morrem por dia na guerra do Iraque, só poderão nos cativar no dia que tiverem algum significado para nós, e esse significado não é uma coisa que a linguagem jornalista nos oferece. Não cabe à linguagem jornalística essa função, cabe à linguagem jornalista ser precisa e objetiva, apenas. É mais ou menos como nos falou Charles Chaplin no discurso do Grande Ditador: “Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela”. Essas pessoas que morrem no Iraque só poderão nos despertar interesse, só passarão a existir para nós a partir do momento em que nos libertarmos dessa velocidade que nos enclausura. A crônica tem a capacidade de nos deixar ligeiramente suspensos sobre a realidade, permitindo que a gente se dê conta daquilo que não percebemos na correria do dia-a-dia. Dessa forma só tomaremos conhecimento do que sentem, com que sonha cada pessoa, do que gostava cada uma, se dermos um tempo pra refletir sobre elas. Assim, só existirão para nós a partir do dia que tiverem algum significado, quando deixarem de ser números – dado estatístico - para se tornarem gente.
Mas a própria dinâmica do mundo capitalista não permite que o jornalismo se humanize. Sua linguagem possui a função de informar, precisa ser veloz, direta, sem muita prosa ou rodeio. A linguagem jornalista deve encarar as pessoas do mesmo modo que um burguês lida com as suas coisas: tudo é expresso por quantidades, tudo é manipulado como dados, às vezes de uma estatística. A linguagem jornalística exprime um conceito de leitor que se confunde com a massa, não tem rosto e nem coração. Ora, a missão de humanizar não cabe à linguagem jornalística, essa missão o cronista chama para si. Ele se solidariza a partir do momento que supera a indiferença e capta o significado e o sentido presente nas coisas ignoradas. O cronista encara cada coisa na sua singularidade. O cronista se engaja na luta contra o embrutecimento das relações humanas, da rotina dos centros urbanos, o cronista é um poeta do cotidiano.
Vale frisar que a linguagem da crônica é híbrida. Ela incorpora tanto as características da linguagem jornalística como da linguagem literária. É como se a crônica fosse um jornalismo aspirando à literatura. Pois ela lida com os fatos do cotidiano e atribui a esses fatos a sua opinião, a sua subjetividade, e carrega esses fatos de significado, provocando no fato corriqueiro uma explosão de significados, a chamada plurissignificação presente na linguagem literária. Portanto a linguagem da crônica, no que se refere à forma de abordar um fato, é o avesso da linguagem jornalística: enquanto a jornalística é precisa e objetiva, a crônica é, por sua vez, imprecisa e subjetiva. Tendo em comum a abordagem de um fato cotidiano, se distingue desta pela forma como aborda o mesmo fato. A crônica é por excelência o espaço da imprecisão, do rodeio, da prosa, da conversa fiada. O proseado da crônica é aparentemente despretensioso, às vezes com suaves transposições líricas, como as de Rubem Braga, às vezes com uma boa dosagem de humor, como as de Fernando Sabino.
O cronista muitas vezes escreve como se estivesse dialogando com o leitor, às vezes o cronista só divaga sobre as coisas: mas geralmente tem-se a leve impressão de que o cronista não quer chegar a lugar nenhum, não quer dizer nada, só conversa furada, à toa, de camarada em praça pública. Mas por detrás de toda essa aparente despretensão ele esconde todo o seu propósito, o de “significar o cotidiano”.
É como se o cronista flagra-se o mundo ainda em estado bruto, destituído de significado. Todo o esforço do cronista está voltado para a superação deste mundo embrutecido, onde imperam nas relações humanas a impessoalidade e a indiferença. Fernando Sabino, mestre do gênero, na “Última Crônica [1]”, título de uma crônica sua publicada em 1965, explicita a perspectiva do cronista diante do mundo e a sua missão. Eis aí um exemplo de crônica que reúne explicitamente o propósito e o método (da aparente despretensão) do cronista:
"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
***
Como se vê, o cronista queria recolher e restituir a humanidade dispersa que se perdeu na impessoalidade e na indiferença das relações humanas. Cabe ao cronista, com seu apelo poético, encher esse mundo embrutecido e rotineiro com um novo significado – atribuindo às coisas esquecidas e pequenas desse mundo um valor e uma grandeza insuspeitada. É como se o cronista fosse um Midas do cotidiano: a coisa tocada pelas suas mãos logo reluz seu brilho de ouro. Assim o cronista converte aquilo que era para o jornal apenas um dado estatístico, um número, em algo cheio de significado, com algum valor, uma relevância, acabando por nos despertar uma insuspeitada ternura em meio a frieza das relações; e aquilo que no cotidiano era ignorado passa a cativar o coração humano. Cativa justamente por ser belo, por ser humano.
E é num lugar comum, num botequim da Gávea, tomando seu café, que Sabino flagrará fora de si uma circunstância, um fato corriqueiro, simples, que lhe servirá de assunto para sua próxima crônica. Um casal de pretos se sentará à mesa do Botequim junto à filhinha, uma pretinha de três anos, com um laço na cabeça, toda arrumadinha no seu vestidinho pobre. O cronista passará a observá-los atentamente, renunciando ao seu individualismo e se lançando para fora de si, superando a indiferença, a fim de recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, aquilo que a faz mais digna de ser vivida. E captará naquela alegria fugaz, efêmera, circunstancial, a pureza que se esconde no sorriso daquela família e daquele pai, contente por estar comemorando o 3º aniversário da filhinha. O cronista chega a expressar no fim da sua crônica uma ternura incontida: “Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.”
É como naquele poema de Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea”, em que o poeta ver uma flor brotar do asfalto, ainda que esta flor seja uma flor feia.
No jornal, na pequena parte destinada à crônica, ele, o cronista, manifesta o seu apelo poético. A matéria jornalística, inserida na lógica do mercado capitalista, precisa – para ser lida - se comportar como mercadoria. A linguagem jornalista, nascida da necessidade de vender diariamente noticias à massa (e o seu próprio leitor alvo, como já foi colocado, é enxergado como massa), precisa ser ligeira, direta e objetiva. Por essas características necessárias, conseqüentemente torna-se uma linguagem fria e impessoal diante dos fatos e das pessoas que participaram do fato. Faz-se necessário ressaltar aqui que essa “impessoalidade” do jornalismo não é uma característica voluntária assumida pela linguagem jornalística – é algo necessário, visto que o jornalismo parte da premissa de que é necessário vender, e para tal faz-se necessário buscar alguma “informação” que seja atraente e vendável como notícia. Não chega a ser, de certo modo, uma postura imoral do jornalismo, mas do próprio sistema.
Ao longo deste século alguns grupos jornalísticos procuraram reformular a sua linguagem partindo de princípios éticos ou de valores que se imponham sobre as leis do mercado – leis que são na sua essência desumanas. Nem sempre conseguindo atingir tal objetivo, o jornalismo que se pretende inovar acaba malogrando nesse propósito, e a própria lógica do sistema acaba contribuindo para esse fracasso.
Cabe, portanto, ao cronista restituir a humanidade perdida na linguagem jornalística. E cabe à linguagem jornalista agradecer à crônica, pois só esta é capaz de humanizar aquele triste e efêmero jornal, que amanhã servirá para forro de caixa de sapato, para embrulhar o peixe comprado na feira ou para proteger o assoalho do fusquinha.
Para fechar essa exposição vale a pena fazer a leitura da crônica desse jornalista que é considerado pela crítica como sendo o maior cronista brasileiro, o capixaba de Cachoeiro de Itapemerim, Rubem Braga. E não é porque a crítica o consagrou, mas a crônica desse sujeito é muito gostosa de se ler. Eis aí uma delas para provar que não estou mentindo:
Os Jornais [2]
Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:
- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime. “Durante os três primeiros anos o casou viveu imensamente feliz...” Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:
“Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idade, aproveitou-se de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para abraçá-la alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-lhe longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: “Meu amor”, ao que ele retorquiu: “Deolinda”. Na manhã seguinte, Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7,45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para concertar a gaiola de um canário-da-terra de propriedade do casal”.
A impressão que a gente tem, lendo os jornais – continuou o meu amigo – é que “lar” é um local destinado à prática de “uxoricídio”. E dos bares, nem se fala. Imagine isto:
“Ontem cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar “Flor Mineira”, à rua Cruzeiro, 524, em companhia do seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambos entregaram-se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu, seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi bastante fresca, tendo dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14, senhora que sempre foi muito friorenta, chegado a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada”.
E meu amigo:
- Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal que ninguém se lembra: a vida...
Citações:
[1] - Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.
[2] - In: BRAGA, Rubem. A borboleta amarela. Rio de Janeiro: Record, 1980, p. 74 - 76