O silêncio da crítica e o avanço do obscurantismo
Nos últimos anos, o Brasil presenciou uma dramática inversão de papéis no campo do discurso político e jornalístico. Figuras outrora conhecidas por sua capacidade analítica e rigor crítico tornaram-se, aos poucos, defensores de estruturas que anteriormente combatiam. A mudança de postura do jornalista Reinaldo Azevedo, em especial, tem sido interpretada por muitos como um sintoma de um fenômeno mais amplo: a captura das vozes críticas por projetos de poder sustentados pelo financiamento estatal, pela manipulação ideológica e pelo medo do ostracismo.
Em Responsabilidade e Julgamento, Hannah Arendt (2004) nos alerta que "quando todos estão culpados, ninguém o está". O silenciamento da consciência crítica não é apenas uma traição ao papel do intelectual, mas uma forma de banalizar o mal, permitindo que regimes autoritários avancem mascarados de democracia. Reinaldo Azevedo, que em 2004 denunciava com lucidez o projeto de poder do PT e o autoritarismo latente de Lula, passou, duas décadas depois, a defender esse mesmo governo com veemência.
Esse tipo de transição não é um fenômeno isolado. Antonio Gramsci (2001), nos Cadernos do Cárcere, apresenta o conceito de "intelectual orgânico": aquele que se alinha à hegemonia do grupo dominante, atuando para perpetuá-la. Quando a imprensa tradicional se torna dependente de verbas estatais para se sustentar, como nos casos notórios da Jovem Pan e de outros conglomerados midiáticos, o que vemos é uma adaptação forçada das vozes antes críticas à narrativa oficial.
O exemplo da Jovem Pan é emblemático: atacada por setores do Judiciário, desmonetizada e cerceada, a emissora viu-se obrigada a demitir analistas como Tiago Pavinatto, que se recusou a se retratar por criticar um juiz que absolveu um pedófilo. A emissora, como Reinaldo Azevedo, optou por "pedir arrego", buscando reinserção no circuito de financiamento estatal.
Zygmunt Bauman, em Cegueira Moral (2014), define a modernidade como um período de liquefação de valores. Para ele, a perda de sensibilidade moral diante das pressões do sistema se torna regra. Não é preciso imaginar que todos os que se rendem ao discurso dominante o fazem por corrupção direta; muitos o fazem por medo, por comodismo, ou mesmo por vaidade intelectual.
Michel Foucault (1979), em Microfísica do Poder, mostra como o poder se infiltra em todos os níveis da sociedade, inclusive na linguagem, nas verdades consagradas e naquilo que se pode ou não dizer. Quando um jornalista deixa de criticar o governo por medo de ser cancelado, ele não está apenas se autocensurando; está colaborando com o mecanismo que transforma o dissenso em crime.
George Orwell, em 1984 (2009), já havia profetizado esse cenário: "A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Se isso for concedido, todo o resto se segue." O desaparecimento da verdade objetiva, substituída por narrativas convenientes, é a primeira vitória do totalitarismo.
Camus, em O Homem Revoltado (1999), afirma que o verdadeiro rebelde é aquele que, mesmo em face do absurdo, escolhe manter-se fiel aos seus princípios. Ele prefere o exílio à conivência, a solidão à traição de si mesmo. Reinaldo Azevedo, outrora rebelde, preferiu o conforto da adesão ao risco do isolamento.
Theodor Adorno, em Educação após Auschwitz (1995), dizia que o principal objetivo da educação moderna deveria ser impedir que Auschwitz se repetisse. Para isso, seria necessário formar indivíduos críticos, resistentes ao conformismo, ao autoritarismo e à cegueira ideológica. Quando nossas vozes mais críticas se calam, estamos não apenas permitindo que o obscurantismo retorne, mas ensinando novas gerações a aceitarem o silêncio como virtude.
Slavoj Žížek (2012), em Vivendo no fim dos tempos, afirma que vivemos uma era de cinismo ideológico: sabemos que o sistema é falho, injusto e opressor, mas seguimos fingindo que acreditamos nele, porque é mais conveniente. A inteligência rendida à conveniência não é menos culpada que a ignorância inocente.
Guy Debord (1997), em A Sociedade do Espetáculo, oferece talvez o mais contundente diagnóstico: não vivemos mais em uma sociedade da verdade, mas em um teatro de imagens, onde o que importa não é o que é dito, mas quem o diz e como isso será monetizado. A imprensa transformada em "maquiadora oficial" do poder se tornou um dos personagens principais dessa peça grotesca.
Quando os pensadores que mais admiramos traem sua própria lucidez, não apenas se perdem como referências: eles contribuem ativamente para o desmonte da inteligência pública, da consciência coletiva e da esperança em uma sociedade que ainda valorize a verdade.
O silêncio das vozes críticas não é apenas um sintoma: é o próprio sinal do início das trevas.
Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
> Analisa o papel da educação na formação de consciências críticas para evitar o retorno do totalitarismo.
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
> Reflete sobre o julgamento moral em tempos de conformismo e autoritarismo.
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
> Estudo seminal sobre como os regimes autoritários se estruturam com base no silenciamento das vozes dissidentes.
BAUMAN, Zygmunt. Cegueira Moral. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
> Discute a perda de sensibilidade moral em uma sociedade movida por interesses pragmáticos.
CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1999.
> Apologia à consciência individual e à fidelidade a princípios num mundo que tende ao conformismo.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
> Crítica radical ao papel da mídia na formação de realidades fictícias.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
> Explica como o poder atua de forma capilar, inclusive na produção da verdade.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
> Introduz os conceitos de hegemonia e intelectual orgânico.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
> Uma distopia sobre o totalitarismo e o controle da verdade.
ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no Fim dos Tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.
> Descreve a fase atual da ideologia como um cinismo úpico, onde o sistema se sustenta na indiferença consciente.