A servidão voluntária
Uma democracia sólida, não depende de um herói ou de um “protetor” externo para sua manutenção, porque sua própria sustentação repousa na participação ativa e consciente dos cidadãos. Esses mesmos cidadãos, que contribuíram para a criação e consolidação do sistema, são os responsáveis por mantê-lo, defendê-lo e aprimorá-lo continuamente. Essa defesa se materializa através da noção plena do que são “direitos”, do exercício do voto, da crítica construtiva, do engajamento político e do compromisso diário com os valores democráticos.
Ao adotar um líder que se propõe a ser o “protetor da democracia”, parte dos cidadãos abdica de sua responsabilidade. Essa atitude revela uma compreensão superficial da liberdade — uma liberdade que não vem com privilégios ou tutelas, mas com deveres. Quando se transfere para um único personagem a função primordial que deveria ser coletiva, ocorre um desvirtuamento dos princípios democráticos. Historicamente, a dependência de um “salvador” muitas vezes prenunciou o aparecimento de regimes autoritários, nos quais a centralização de poder suprime a participação cidadã e os freios necessários à manutenção de uma sociedade livre.
Devemos ficar alertas para a complacência e para a ignorância que podem se infiltrar na sociedade ao negligenciar os próprios deveres e as conquistas democráticas. A verdadeira liberdade exige vigilância constante, educação política e engajamento social. É a prática diária, o debate, a crítica e o esforço coletivo que previnem o surgimento de lideranças que, embora possam parecer carismáticas ou prometer soluções rápidas, podem, na prática, minar o sistema que lhes conferiu legitimidade para atuar. Essa entrega de responsabilidade, ainda que aparente segurança ou ordem imediata, na verdade, fragiliza o pilar fundamental de qualquer regime democrático: a participação ativa dos cidadãos na gestão de seus destinos.
A manutenção de uma democracia depende da maturidade cívica. É preciso compreender que a liberdade plena não significa ausência de limites, mas exige um pacto voluntário entre os cidadãos, onde cada indivíduo tem o dever de zelar não só por seus direitos, mas também por assegurar que os direitos dos outros sejam respeitados. Esse equilíbrio entre liberdade e responsabilidade é o que impede a democracia de se transformar em um sistema de apego a líderes ou figuras protetoras que possam centralizar o poder e, inadvertidamente, permitir abusos.
O verdadeiro escudo de uma democracia eficaz é a própria sociedade bem informada, crítica e participativa. A dependência de protetores externos renuncia ao esforço coletivo indispensável para a preservação dos valores democráticos e pode levar ao comodismo, abrindo espaço para o autoritarismo.
Quem eu seu juízo normal pode acreditar na ideia absurda de um “administrador da democracia”?
Que “democracia” é essa que é concedida em doses homeopáticas e direcionada de acordo com cada momento e grupo social envolvido e que permite a divulgação de opiniões apenas de acordo com o humor de seu “administrador”?
De que canto escuro da mente humana teria nascido essa interpretação do mundo?
“Um povo se escraviza, corta sua própria garganta quando, tendo a escolha entre ser vassalo ou ser homem livre, deserta suas liberdades e assume o jugo, dá consentimento a sua própria miséria, ou melhor, aparentemente a acolhe.”. (Discurso da servidão voluntária - Étienne de La Boétie).