A Arte de Esquecer
Ativar a memória, aprimorá-la constantemente, torná-la excelente, eis o que é considerado ideal. Sem dúvida, é louvável manter uma ótima capacidade de memorização envolvendo dados, datas, fatos, nomes, números, imagens, fórmulas e tantas coisas mais. A esse tipo de memória denominamos memória objetiva.
Entretanto, esta reflexão trata da memória subjetiva, psicológica. É a capacidade de reter lembranças de acontecimentos, ordinariamente negativos, ou interpretados desta forma. As pessoas que desenvolvem este tipo de memória jamais esquecem uma ofensa, um fato negativo, um acontecimento que as deixou amargurada. Carregam pela vida afora o fardo, cada vez mais pesado, repleto de recordações eivadas de intrigas, maledicências, questões mal-resolvidas, falsas interpretações da realidade.
Assim, as pessoas, de tempos em tempos, podem trazer à tona lembranças remotas, escondidas nos escaninhos da mente, envolvendo suscetibilidades, feridas abertas. E interlocutor, surpreso, poderá dizer: “Mas isso é coisa do passado! Já havia me esquecido completamente! Por que reviver algo que não acrescenta nada de positivo, algo que pode reabrir velhas feridas?”
O mesmo acontece naquela estória envolvendo dois monges. Andavam eles a peregrinar por uma região campestre, quando chegaram à beira de um largo córrego, ornado de rochas e cachoeiras. Então, deparam-se com uma formosa donzela que pretendia atravessar a correnteza, mas sentia-se temerosa, incapaz de realizar sozinha tal proeza. Por isso, implorou aos cenobitas que a conduzissem à margem oposta. O mais idoso, sem a menor hesitação, tomou-a em seus braços, e, com firmeza e energia, atravessou o riacho, deixando a jovem segura em terra firme. Ela agradeceu, comovida, e seguiu seu caminho. Os monges continuaram sua rota, em silêncio. Porém, a certa altura, o mais jovem, que até então andava aflito com seus pensamentos e interpretações, censurou o colega: “Meu irmão! Como é que você toca numa mulher? Segundo nossos sagrados princípios, isto é pecado!” Ao que respondeu o outro: “Veja bem, meu prezado irmão: eu larguei a moça já faz bastante tempo, lá longe, na margem do riacho. Por sua vez, você continua a carregá-la, ao menos em seu pensamento!”
E é isso exatamente o que fazem as pessoas, em inúmeras e variadas circunstâncias: continuam a carregar pensamentos, e suas distorcidas interpretações, depreciando a vida e os relacionamentos.
Considerando este singular fenômeno, enfatizamos a importância de se desenvolver a “arte de esquecer”. Ou seja, banir da memória todo e qualquer resquício de maledicências, frustrações, conflitos, negatividades. Enfim, tudo o que não contribui para o enriquecimento do espírito, das relações humanas, da qualidade de vida. Suprimir, ou melhor, reduzir ao ínfimo e depositar em algum lugar praticamente inacessível da mente, toda memória psicológica, toda e qualquer lembrança que somente traz prejuízos à nossa vida. E isto é verdadeiramente uma arte que precisa ser aprendida, exercitada, elaborada, dia após dia, durante a vida toda.
Do livro do autor "A Arte de Viver"