CARANGUEJO

Caranguejo

Fora de Rabo de Peixe, rapexins. Rabopeixenses e rapexins, dentro. Em Terra, rabopeixenses. No Caranguejo, rapexins. Dois mundos. Opostos. Ignorando-se. Desprezando-se. Guerreando-se. Hoje, além de uns restinhos que ainda restam, restam ‘estórias.’ Que, à luz baça da distância, que tende a suavizar agruras, tornaram-se ou agridoces ou cómicas. Posto este arengado inicial, que terá o surf e o bodyboard (fulcro deste e dos trabalhos anteriores) a ver com isso? Tem, porque vou aqui (essencialmente) tratar dos filhos dos Homens do Mar de Rabo de Peixe (sobretudo do Caranguejo e do Barreiro) que se iniciaram nessas modalidades.

E, todavia, o nome da Terra vem do Mar. Acerca dele, Gaspar Frutuoso dá-nos a escolher entre duas origens. Uma primeira, derivaria do aspecto de uma rocha costeira dali: ‘(…) Por estar situado em uma ponta de terra e penedia, que sai ao mar, parecendo rabo de peixe (…).’ Uma segunda, viria de um gigantesco peixe que dera à costa: ‘ porque se achou ali no princípio, junto do mar, um peixe muito grande, sem se poder saber que peixe fosse, se era baleia ou de outro nome, e pelos mouros, que naquele tempo ali guardavam gado, foi dependurado o rabo dele em um pau e dali a dias perguntando a um de donde vinha, respondeu que do rabo de peixe.’ E rapexim? Terá começado por ser um vulgar tratamento dos moradores de Rabo do Peixe? Que adquiriria um sentido depreciativo? Foi assim? Não sei. Ainda que rapexim possa ter vindo de fora, a hipótese de ter sido inventado pelos Homens da Terra é plausível. Era uma forma deles se demarcarem dos Homens do Mar. Do outro. Chamar alguém de rapexim, seria chamá-lo de pedinte. De manhoso. Ou algo que o valesse. Uma comunidade segregada? Era então a regra (não a excepção) em toda a ilha (e além dela). É mesmo (dizem-nos os cientistas sociais) uma tendência muito humana das comunidades humanas. Dos animais em geral. Como terá acontecido isso? Há indícios, não certezas. Uns míticos outros com alguma base histórica, que apontam (porventura) para uma origem (mítica ou real, insisto) étnica e religiosa dos moradores do Caranguejo e da Cova da Moura. Mouros! Pior: Muçulmanos! Frutuoso fala de guardadores de gado Mouros. Que numa versão, teriam sido os que deram o nome de Rabo de Peixe. Há outros indícios na toponímia local: a canada da Meca e a Cova da Moura. E há casos (estórias). Uma dessas ‘estórias’ foi contada a Manuel Falcão Estrela ‘por uma pessoa mais velha, junto ao pau da luz, defronte da canada da Faveca.’ A forma arrastada (e, em certas ocasiões, gritada) do falar do Caranguejo poderá (eventualmente, interrogo-me com cautela) ser outro vestígio? Uma comunidade fechada por força das circunstâncias? Porque a pesca exigia proximidade constante ao mar. E disponibilidade absoluta. Não havia horários. Mesmo que quisessem sair normalmente, não poderiam. Porquê? Simples: os Homens do Mar barravam-lhes o acesso à Terra. O Barracão do Peixe (construído no século XIX ou já no XX) era uma fronteira que fora construída (de propósito) no limite (máximo) Norte do Caranguejo e no limite (máximo) Sul dos Homens da Terra. Era um espaço inevitável. Isso porque a Terra carecia dos produtos do mar e o Mar carecia dos produtos da Terra. Porém, era uma fronteira vigiada. A entrada principal do Barracão era feita pelo lado da Terra. Os do mar entravam por trás. Claro, os vendilhões de peixe circulavam pelas ruas da Terra. E bastava. Isolamento (supostamente) que poderá ter favorecido a manutenção daquela maneira (gritada e arrastada) de um mouro falar português? Não sei. Depois, o peso decisivo da economia da Terra em desfavor da do Mar. À vinha do tempo de Frutuoso e ao trigo cultivado nas ubérrimas terras do Pico da Pedra e das Calhetas, que só haviam entrado na Ribeira Grande depois de 1507, a partir de meados do século XVIII, acrescentou-se a fantástica fonte de riqueza da cultura da laranja. Exigiam um domínio de saberes distintos: uma coisa eram as artes do Mar (peixe de fundo, de superfície, mariscos) outra as artes da Terra (quintas, vinhas e terras). E uma forma diferente de encarar aquelas actividades: enquanto o Homem do Mar arriscava continuamente a sua vida no mar, o Homem da Terra, não. Tudo isso cavou um fosso entre as duas comunidades. Daí a distância social e cultural entre o Caranguejo e a Terra? As artes nobres da Terra contra as artes pobres do Mar?

De onde virá o nome Caranguejo? Também não sei. Mas, talvez (talvez) possa chegar a uma (qualquer) resposta (mais ou menos) razoável por vias travessas: ‘O caranguejo era usado como isco e engodo e era apanhado à noite com a ajuda de lanternas.’ Disse-me o Sr. Manuel Maiato (mais adiante transcrevo o seu depoimento completo). E em dias de mar grosso, ‘o caranguejo fugia do mar em terra.’ Disse-me o Sr. José Vieira, um pescador (conversa que transcrevo mais adiante). E daí? Atiro barro à parede? Para os Homens da Terra, existiriam paralelismos (evidentes) entre o comportamento do caranguejo (crustáceo) e o dos Homens do Mar. Um aviso: uma verdade empírica que, para eles, bem como para o senso comum de então, seria um verdade científica incontestável. Evidente. Onde existiriam esses paralelismos? A começar, crustáceeos e humanos partilhavam o mesmo habitat: a rocha. O caranguejo movimentava-se aos magotes por cima das rochas. O mesmo sucedia aos apanhadores de isco. Os homens dependiam dos caranguejos (isco e engodo). O caranguejo reproduz-se em grande número. O mesmo acontecia aos Homens do Mar. Virá daí o nome Caranguejo? Infelizmente, não há provas. Nada de espantar. Numa sociedade em que a oralidade dominava, outra coisa não seria de esperar. Seja qual for a origem do nome Caranguejo, dizer que alguém é (ou era) do Caranguejo (isso é certo) nunca foi elogio. Muito pelo contrário. Carregava um peso negativo. Qualquer coisa como pouco ou nada civilizado.

Para quem conheça mal Rabo de Peixe, o bairro do Caranguejo vai da praça (do barracão) ao mar. Ora, se alguma vez foi assim, hoje já não. São três bairros: o do Caranguejo (propriamente dito) que vai (indo de Sul/Norte) da praça ao mar, terminando (a Nascente) na Foto Torres; o do Barreiro – ou bairro Novo -, que vai da Foto Torres ao Campo de jogos das crianças (a Nascente); e o do Biscoito, que vai do campo de jogos das crianças à Fábrica da Cofaco (a Nascente. O Caranguejo (em si mesmo) é formado por três ruas principais (mais travessas) perpendiculares (no sentido Norte/Sul) à rua de Nossa Senhora de Fátima (outrora rua da Ribeira Grande): a Rua do Pires (do Coreto para baixo); rua da Cruz (a do meio); e a rua Dr. Galvão de Carvalho (antiga rua dos Leitões) (do Café do José Carlos para baixo. Foram sendo construídos em épocas distintas: enquanto o Caranguejo virá (poderá vir) dos primórdios do povoamento, o Barreiro é da década de sessenta do século XX e o do Biscoito do pós 25 de Abril de 1974. Havia só pescadores naquelas três ruas e travessas? Consultando o Rol de Confessados de 1915-17, a resposta é (nestes três anos) não. Nos 73 agregados da rua do Pires, havia 29 pescadores para 15 camponeses; na da Cruz, em 70 agregados, 37 pescadores para 16 camponeses; e na dos Leitões (actual rua Dr. Galvão de Carvalho), em 73 agregados, 15 pescadores para 25 camponeses. O Caranguejo ocuparia toda a área daquelas três ruas e suas travessas? Também não. Da relação entre camponeses e pescadores, atrás referida, presume-se que o fosse só a partir de determinado ponto daquelas ruas. No ponto mais próximo do porto e da rocha? Possivelmente, por ser importante esta proximidade. Hoje, em termos demográficos, que lugar ocupam os três bairros do litoral (Caranguejo, Barreiro e Biscoito)? Dizem-nos os censos de 2011, que a maioria da população de Rabo de Peixe vivia naqueles três bairros. Em ‘1032 alojamentos,’ viviam ‘935 famílias clássicas, num total de 4.679 residentes. Homens 2431 (1605 adultos e 826 com menos de 18 anos) – 2248 mulheres (1455 adultas e 793 com menos de 18 anos).’ E que ‘95% das famílias ali residentes’ garantiam ‘a subsistência em actividades ligadas ao mar.’ ‘Na pesca, trabalham aproximadamente 1200 pessoas (verificando-se aumento em relação a 2001).’

Como é Rabo de Peixe na memória de quem lá vive? Fui falar com o Sr. Manuel Maiato. Nasceu há 85 anos, a dois passos do porto, na rua do Pires. É um dos (poucos) que (então) saíram do Caranguejo. Teve uma vida profissional de muito sucesso. Entre outros cargos que desempenhou, foi vereador na Câmara da Ribeira Grande e Presidente da Junta de Rabo de Peixe. O pai era pescador. Não tinha barco seu, fazia parte de uma campanha. Iam pelas ruas, batendo às portas, ‘pro porto,’ já sabiam que era trabalho. O caranguejo era usado como isco e engodo e era apanhado à noite com a ajuda de lanternas. Assim encandeava o caranguejo. Será daí que vem o nome do bairro do Caranguejo? Não sei. Nunca ouvi qualquer explicação a esse respeito. Dizer que alguém era do Caranguejo não era um elogio? Não, não era. Os da terra tratavam os do mar de forma superior. Não havia mistura. Eu fui o segundo ou o terceiro a casar cá em cima. Havia uma separação completa entre os Homens do Mar e os da Terra. Aos poucos, abriram-se brechas.

E a versão de um homem da terra? Fui conversar com o Sr. José Maria do Amaral. Tem 84 anos, trabalhou com meu pai no Registo Civil da Ribeira Grande: ‘frequentei no Continente um seminário das Missões. Mas, no final do 2.º ano, vim de férias e não regressei.’ Começou a ir na romaria aos 9 anos. O pai era o mestre. Depois, foi mestre. Pescadores? Diferentes dos homens da terra. Em quê? ‘Na maneira de falar diferente. Arrastado. Falavam alto. Muito. Hábito do mar. Termos diferentes.’ Tais como? ‘Puxa para riba.’ O falar de Rabo de Peixe, como fora de Rabo de Peixe se dizia generalizando? ‘Sim.’ Os cá de cima, não falavam assim? ‘Não. Distinguiam-se.’ Não seria para se diferenciarem? Digo eu. Continuou: ‘Trabalham de modo geral à noite e dormem de dia. Percebem um bocadinho do tempo. Viviam lá em baixo. A campanha a isso obrigava. Não havia telemóveis. Quando iam para o mar, era bom que residissem por perto. Iam de porta em porta avisar. Os homens da terra eram diferentes. Achavam-se superiores. Olhavam de cima para os do Caranguejo.’ Isso ia ao ponto de ‘ao pé da Praça, um Senhor Leonel e outro de apelido Faúlha, fazerem por impedir os pescadores de subirem e os da terra de descerem. Hoje já não é assim, Alguns pescadores, ainda que poucos, trocaram a vida do mar pelo do campo.’ Iam nos romeiros? ‘A maioria era do Caranguejo e dali de baixo.’ E as procissões? ‘Vão lá baixo a de Nossa Senhora do Rosário, a do Sr. Dos Passos - há um Passo lá em baixo, a de S. Pedro Gonçalves.’

E o que diz disso alguém que nasceu e vive no Caranguejo? José Vieira, 80 anos, é pescador desde criança. Como era costume. Mora na rua do Porto, uma rua secundária. A casa encostada ao Café do porto. É só atravessar a rua e já se está na Lota. Antes das obras, o mar chegava à sua porta, e quando estava muito bravo, passava da sua porta. Aquilo ali era terreiro. O pai foi pescador. O avô foi pescador. E o pai dele. Começou por um barco a remos. À vela. Iam até aos Mosteiros. À Maia. Quando o mar estava ‘ruim’ no Norte, iam pescar ao Sul. Levavam o barco num camião. ‘Andei com o meu tio no mar. Em 1985 comprei um barco. O Apolo 168. Com motor de oito cavalos.’Conhece muito bem os pescadores da Ribeirinha e da Ribeira Grande. E os da Ilha. E conhece de uma ponta à outra a Ribeira Grande. Porque é que isso aqui se chama Caranguejo? ‘No tempo do meu avô era já assim.’ O caranguejo vinha aqui? ‘No tempo do meu pai e já do meu, antes das obras aqui, quando o mar estava ruim o caranguejo subia cá para cima. Fugia do mar.’ Vocês davam-se bem com os lá de cima? ‘Era pancadaria!’ ‘Não deixavam a gente ir lá para cima. Os lá de cima também não vinham cá para baixo.’ Mas vocês andavam juntos na escola: ‘O professor separava a gente.’ E na igreja? ‘Era também separado.’ E no futebol e no voleibol? ‘Pancadaria.’ Porquê? ‘Não sei. Era a gente e os lavradores.’

E o que diz disso um pescador de quarenta anos que nasceu lá mas já não vive lá? Alexandre Miguel, de 43 anos, tem barco, pai pescador, avô e sempre para trás: De Abril/Maio a Setembro pesca no Norte. No resto, está no porto de Vila Franca. Tem um casal de gémeas. Jogam no Vitória. Ele próprio joga nos Veteranos do Vitória. Estudou na Básica Integrada. Na Escola Profissional da Ribeira Grande.’ A malta nova adere à pesca? ‘70%. Felizmente. Não o meu filho. Hoje, a pesca está muito diferente. Muita hora de trabalho. Não há horários. De dia, de noite. Tudo depende das várias artes.’ Artes? ‘Atum, palancra, lula. Troley. Rede.’ Pedindo-me desculpa por abreviar conversa, disse: ‘Vou ter de ir embora: vou fazer o almoço para as minhas filhas. Que estão na Escola Profissional.’ Quem diria! A mentalidade do antigo pescador, graças à escola (sobretudo a Escola Profissional da Ribeira Grande) tem mudado comportamentos. O porto é o maior dos Açores. A comunidade piscatória é a maior dos Açores. Os mais esclarecidos, apostam na valorização do preço do pescado, na apanha do sargaço, e no turismo de pesca.

A Terra deve muito ao Mar. Até o nome. A água que bebia (salobra) vinha de um poço da beira-mar. A equipa de futebol é mais conhecida por clube dos Pescadores. E com justiça. Apoiam-na no campo. E patrocinam-na do seu próprio bolso. Se o (fabuloso) apoio que Rabo de Peixe conseguiu se destinou (essencialmente) aos do Mar, por tabela, beneficiou também os da Terra. Ironicamente, foi a série Rabo de Peixe (de 2023) que ao ficcionar o episódio real (e dramático) da cocaína de 2001, contribuiu para trazer visitantes (locais e estrangeiros, sobretudo no Verão) ao Caranguejo. O que, porventura, terá ajudado a criar (alguns) dos 71 alojamentos locais e a mantê-los lotados. A estátua do pescador, inaugurada em 2004 marca o aperto de mão das duas comunidades de Rabo de Peixe. Gesto de gratidão. E de reconciliação. Vendo de perto, bem de perto, restam dúvidas: será que aquele aperto de mãos simbólico foi um sonho tornado realidade logo ali? Ou apenas um primeiro passo para que o sonho se venha a concretizar? Nem todos em Rabo de Peixe (e fora de Rabo de Peixe) terão visto assim o gesto. Só (porventura) alguns poucos, da Terra e do Mar terão percebido o gesto. O preconceito é nódoa que não sai de um pé para a mão. A cerca sanitária imposta ao Caranguejo (Barreiro e Biscoito), deixando de fora a Terra (de cima da Praça) é prova disso. Tirando isso, falta criar o Museu (multipolar) da Terra e do Mar, onde, de forma científica, se explicaria a vida e a história do Homem do Mar e da Terra.

PS: Trilhando o bom caminho, no dia 7 do corrente, na 8.ª edição do Prémio Cinco Estrelas Regiões, Rabo de Peixe foi premiado com um ícone na categoria vilas e aldeias. Parabéns!

Caranguejo (Vila de Rabo de Peixe – Concelho da Ribeira Grande)

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 08/04/2025
Reeditado em 20/04/2025
Código do texto: T8304927
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