Sísifo Não Está Feliz

Desculpe, Camus, mas não consigo imaginar como feliz um homem condenado pelos deuses a empurrar, eternamente, uma pedra morro acima — só para vê-la sempre rolar de volta. Não consigo, e não quero, imaginar Sísifo feliz.

É preciso reconhecer: há dignidade em sua persistência. Há grandeza na consciência de seu fardo. A descida, para ele, pode ser uma pausa contemplativa, um intervalo de silêncio entre dois ciclos. Mas há um limite tênue — e perigoso — entre o reconhecimento da condição absurda e a transformação da dor em ornamento.

Mais que ousadia filosófica, converter a resistência em felicidade parece um disfarce. Um consolo palatável para uma realidade insuportável.

Imaginar Sísifo feliz é, nesse contexto, mais do que uma metáfora: é uma forma de resignação. É aceitar o castigo como destino legítimo, transfigurar a pena em virtude e recobrir a compulsão com o verniz da escolha. Trata-se de um gesto que, embora travestido de força, contém o risco de nos anestesiar diante do inaceitável.

Tal imagem pode nos cegar para as estruturas — históricas, sociais, simbólicas — que impõem a pedra. Pode nos desviar o olhar dos deuses — desses entes, simbólicos ou reais, que ditam os ciclos e assistem de cima.

O foco excessivo no sujeito que resiste apaga a mão que pune. E o questionamento que poderia subverter o sistema cede espaço à admiração romântica de quem suporta.

Talvez o mais urgente não seja imaginar Sísifo feliz, mas questionar a legitimidade do poder que o condena.

Por que aceitar como imutável algo só porque o chamam de divino? Se o próprio Sísifo já desafiou e enganou os deuses antes, por que não poderia fazê-lo de novo? O que torna o castigo eterno tão certo assim? Talvez não seja o ciclo que o aprisiona, mas a fé cega na autoridade que o criou.

No mais, não nego que a dor tenha algo a dizer. Encará-la com lucidez não é o mesmo que se curvar a ela. Pelo contrário: é uma forma de marcar seus contornos, de conhecê-la por dentro — para que não se torne um pano de fundo indistinto.

Há uma diferença fundamental entre aceitar a realidade e ser engolido por ela.

O que proponho não é uma recusa à possibilidade de sentido, mas à pressa em nomeá-lo. Talvez seja preciso sustentar o vazio por um tempo, reconhecer o gosto amargo sem diluí-lo, para que, se um dia houver doçura, ela não venha como engano, mas como contraste legítimo.

Se me for dado um copo de líquido amargo, não o brindarei. Mas tampouco o negarei. Beberei cada gota com lucidez, não por devoção ao amargo, mas para que ele permaneça como memória, como contraste necessário à doçura que talvez venha. E se não vier, eu ao menos terei experimentado a realidade.

É por isso que recuso a ilusão de que o fardo constante possa ser confundido com alegria. Tal ilusão anula a possibilidade de outro caminho, de outra vida, de outra lógica.

Prefiro encarar o real em sua inteireza — com tudo que tem de áspero, de denso, de belo. Prefiro ver Sísifo como ele é: exausto, ciente, não resignado. Talvez ainda esperançoso — não por uma dádiva dos céus, mas por uma pequena fresta de ruptura no tecido da eternidade.

E se não por Sísifo — que se cala, que sobe e desce em silêncio — então pelos que o olham e recusam transformar seu suplício em fábula edificante. Pelos que se indignam. Pelos que resistem à tentação de converter o absurdo em conforto. Pelos que, ao vê-lo, preenchem-se com o real, nu e cru — e por isso bom.

Como disse Pessoa:

“Tudo é real, e tudo está certo.”

Inclusive — e sobretudo — o que jamais deveria estar.