Ainda estou aqui (2024). Dir. Walter Salles
Ontem fui assistir ao filme. Não foi fácil. Entendi completamente por que foi indicado ao Oscar: ele expressa muito bem toda a arte cinematográfica – os enquadramentos, a sutileza na expressão dos atores, a pesquisa de elementos históricos para a montagem cenográfica... Levaria fácil também o Oscar de melhor Direção.
Mas eu acredito que o termo que mais identifica Ainda estou aqui é “sutileza”. Conseguiu representar um dos piores momentos da história brasileira sem um tiro sequer, sem mostrar um corpo sem vida sequer. Toda a violência daquela era é mencionada e nos damos conta bem dela sem uma cena explícita de violência sequer. E o roteiro decidiu não mostrar um segundo sequer da maior alienação da época: a Copa, ou qualquer outro tipo de ufanismo.
Alguns, mais velhos, serão teletransportados para aquela época, ou pela presença da lata redonda e achatada da cera Poliflor, bem ali, ao alcance da vista, ou da presença das “baratinhas” (Fuscas-viatura da polícia militar) ou dos famigerados camburões da rota, que aparecem ao longe, como se fizessem parte da paisagem. As roupas, os penteados, as músicas... compõem essa mesma atmosfera, em que, em um momento, você poderia estar muito seguro em sua casa ou na rua com os amigos, e, em outro, sua vida, a vida de familiares ou amigos poderia estar em risco, para sempre...
Eu chorei a maior parte do filme, não que ele tenha sido feito para isso. Eu vivi os últimos suspiros da ditadura – ainda dava pra sentir no ar uma névoa escura daqueles tempos. Minha mãe, com seu pouco estudo, sempre me alertava: “Nunca cante o Hino nacional na rua! Nunca! Se não ‘eles’ te levam!”. Um pedido estranho, não é? Mas só quem viveu naquela época sabe. Ou não: há algum tempo, um motorista de aplicativo, de cerca de 35 anos, me disse que, para seus pais, “a época da ditadura foi a melhor que viveram; muito progresso, muita segurança... Uma maravilha.”. Como diz Carol Capel, “iludido é pior que doido”.
Meu pai, naquela era, ganhou vário adesivos com a bandeira do Brasil com o slogan dos militares. Eu cresci vendo aquela bandeira pouco acima da porta de casa. Mas cresci sabendo também que meu pai, um nacionalista declarado, também era subversivo: ele manteve os dizeres “Brasil, pátria amada” (ou seria “Pra frente Brasil”? não lembro), mas passou a tesoura no “Ame-o ou deixe-o”. Para o meu pai, lugar de brasileiro é no Brasil. A menos que não queira. Ele nunca disse isso, mas sei que era o que pensava.
Ainda estou aqui é sobre isso também. Sobre o que não dizemos, sobre o que não podemos dizer. Sobre o que não precisamos dizer. Sobre o que é melhor não falar.
Rubens Paiva foi muito bem representado – a doçura que Selton Melo coloca na voz nunca foi tão bem explorada. Na cena em que ele se prepara para ser levado pelos militares à paisana, consegue, pelo tom de voz – e uma pequena mentira – tranquilizar a filha. Como não se emocionar?
O pavor que percebemos nos “personagens” de Ainda estou aqui é muito real – as pessoas não sabiam o que podia acontecer, mas sabiam que algo terrível podia acontecer... Especialmente às pessoas com um pouco mais de ilustração – vale observar que os personagens “da luz”, que querem o bem, para si e para a sociedade, sempre têm ao seu redor muitos livros, esses “objetos” tão valiosos, tão poderosos, normalmente associados a sabedoria. Rubens Paiva sabia o que podia lhe acontecer naquele momento em que entram em sua casa e coíbem sua família. Não é possível saber como ele verdadeiramente agiu naquele momento, mas, na arte, encarnado por Selton, foi a pessoa mais doce desse mundo.
Eu 2008, trabalhei na revisão de uma tese** que trata sobre os desaparecidos políticos – foi um dos trabalhos mais difíceis de que participei na vida. A vontade é de não acreditar que tudo isso aconteceu, bem aqui, bem do nosso lado... Infelizmente, a história de Rubens Paiva não é um caso isolado - os dados oficiais são absolutamente imprecisos, adulterados, procurando mascarar a realidade e protegendo algozes – a vala de Perus, por exemplo, foi descoberta pelo empenho e sagacidade de um jornalista***, que, sinceramente, merece muito o abraço de cada familiar que até então estava sem ter qualquer notícia de um ente querido “desaparecido”.
São mais de 10 mil famílias que ainda “não sabem o que aconteceu”, mais de 10 mil famílias que esperam, como dona Eunice, por um atestado de óbito, por um pouco de respeito – seria o reconhecimento de que o Estado deu cabo de suas vidas, e não uma ou outra mentira que foi por muito tempo divulgada nos meios de comunicação.
Ainda estou aqui refere-se também às mentiras que nos contam. As mentiras “oficiais” que nos contam, que, por não estarmos despertos, não termos como estar despertos, acolhemos como verdade. Mas, se prestarmos um pouquinho de atenção, só um pouquinho, percebemos, sentimos...
Eu fico honrada por Ainda estou aqui ter sido indicado ao Oscar: melhor filme “estrangeiro”, melhor filme, melhor atriz... Merecia também melhor direção e cenografia. Essas indicações fizeram com que nós, brasileiros, olhássemos com um pouco menos de desdém para os filmes brasucas.
Mas eu acredito que será muito irônico se “nosso filme” ganhar uma daquelas estatuetas – será muita ironia ganhar um prêmio do país que promoveu, patrocinou os golpes na América Latina, instruiu, adestrou os militares latinos nas técnicas de tortura e os armou. Um país que alcançou o poder mundial de forma tão torpe. Esse, sim, merece nosso desdém. Por isso, é, no mínimo, irônico.
Ainda estou aqui já cumpriu seu papel, de forma bem sutil: vai chegar a quem tem de chegar - não é preciso mais nada. Mais que isso é só ilusão.
E, como se diz, iludido é pior que doido.
**SANTOS, Sheila C. A Comissão Especial sobre Mortos e Desparecidos Políticos e a reparação do Estado às vítimas da ditadura militar no Brasil. PUC-SP, 2008. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/3911/1/Sheila%20Cristina%20Santos.pdf
*** Caco Barcelos. Ver matéria sobre o tema: https://www.cedem.unesp.br/#!/noticia/503/ha-31-anos-era-descoberta-a-vala-clandestina-de-perus-/