O Deus humano
O homem não vive sem Deus. Na ausência de um Deus uno e sobrenatural, ele cria uma ordem material de caráter absoluto e universal para assumir o papel de "cosmos". (O termo "cosmos", em seu sentido filosófico e metafísico tradicional, refere-se a uma substância ou princípio totalizante que organiza todos os entes em um conjunto harmonioso e ordenado). Nesse sentido, a ética materialista (sem Deus) acaba assumindo a pretensão de guiar os comportamentos humanos em torno de princípios conectados à realização dessa convivência harmônica. Essa ética estabelece padrões invioláveis de convivência, criando, assim, um propósito para a vida e uma razão para o bem agir. Na prática, o efeito normativo acaba sendo similar ao da religião, com a diferença na substância que valida as leis.
Jean-Paul Sartre se debruçou sobre o problema da moral e da ética em um mundo sem Deus. Sendo um dos pensadores mais importantes da corrente existencialista, Sartre nos diz que "a existência precede a essência". Em outras palavras, isso significa que não há valor essencial anterior à experiência no mundo. Não existem normas naturais; tudo é criado por nós, humanos, a partir da existência e da convivência. Portanto, segundo essa perspectiva existencialista, somos responsáveis por criar nossos próprios propósitos, leis e ética.
Friedrich Nietzsche, filósofo renomado e anterior a Sartre, trabalha a concepção da "morte de Deus" em várias de suas obras, que posteriormente servirão de base para a formulação do existencialismo sartreano. Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche aborda o conceito de Übermensch, traduzido de forma lúdica para o português como “super-homem” (ou além-homem). O super-homem nietzschiano representa uma evolução além do ser humano comum, alguém que transcende os limites tradicionais impostos pela moralidade, pela religião e pelas convenções sociais. Essa noção se aproxima da perspectiva sartreana no sentido de que, para ambos, Sartre e Nietzsche, na ausência de Deus — ou seja, de um motor universal transcendente que coordena a realidade —, somos nossos próprios deuses.
Essas concepções também se chocam com os pensamentos do período clássico da filosofia grega. Nesse contexto, podemos citar uma frase atribuída a Protágoras, autoproclamado sofista: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são”. Esse trecho de seu pensamento reflete o embate da filosofia antiga entre o mutável e o imutável. Nos casos citados, o pensamento geral envolve a crença no homem como soberano de si mesmo.
Fiódor Dostoiévski, escritor russo, trará em suas obras uma crítica à noção do homem como seu próprio Deus. É possível resumir sua reflexão na seguinte frase: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. O que Dostoiévski, apesar de também preceder Sartre, apresenta pode ser tomado como um contraponto ao existencialismo sartreano, afirmando que, se todo ser humano é Deus, ou seja, senhor absoluto na formação de seus próprios propósitos e valores, não há valor absoluto. Portanto, não existe uma verdade ou uma lei universalmente válida, e tudo se torna subjetivo à interpretação. A partir dessa contestação de Dostoiévski, ao passo que o homem se torna seu próprio Deus, podemos dizer que ele também se torna seu próprio Diabo. O bem e o mal, pois, derivam de nós e em nós tomam forma.