O caminho da transformação psíquica: A individuação junguiana em A Paixão Segundo G.H.
O caminho da transformação psíquica: A individuação junguiana em A Paixão Segundo G.H.
Myllene Bernardo¹
Tema
O tema deste ensaio acadêmico gira em torno da interseção entre a psicologia junguiana, mais especificamente o conceito de individuação, e a obra literária de Clarice Lispector, focando na análise comparada entre Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo de Carl Jung e A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector.
Resumo
Este ensaio explora as conexões entre o pensamento junguiano, especialmente os conceitos apresentados em Aion: Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, e A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector. A partir da análise comparativa, o texto explora como o processo de individuação e a relação com o arquétipo do Si-mesmo aparecem na vida da protagonista, destacando os paralelos entre as visões de Jung e as reflexões filosóficas de Lispector.
Palavras-chave
Literatura brasileira, pós-modernismo, psicologia junguiana, Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H., Aion, inconsciente, autoconhecimento, transformação pessoal, psicologia, psique, Psicologia analítica.
Objetivo
O objetivo deste trabalho é analisar e comparar as ideias de Carl Jung, especificamente as abordagens sobre a sombra e o si-mesmo em Aion: Estudos sobre o Simbolismo do si-mesmo, com a obra A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector, explorando como as experiências da protagonista, G.H., podem ser vistas como um confronto com sua própria sombra. Este confronto, como proposto por Jung, é uma parte essencial do processo de individuação e da busca pela totalidade do ser. Através dessa análise comparativa, busca-se evidenciar como esse processo de confrontação com a sombra não só contribui para a individuação da protagonista, mas também gera pensamentos profundos sobre a psique humana, revelando aspectos universais da luta interna para integrar as diferentes dimensões do ser.
Introdução
A obra A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, e os conceitos apresentados por Carl Jung em Aion: Estudos sobre o Simbolismo do si-mesmo dialogam profundamente sobre a psique humana, especialmente no que diz respeito ao processo de individuação e à busca pela totalidade do ser. Através da experiência de G.H., Lispector constrói uma narrativa de fragmentação e autoencontro, enquanto Jung, ao desenvolver seu estudo sobre o si-mesmo, propõe que a realização plena do indivíduo ocorre quando ele é capaz de integrar e reconhecer as diferentes partes de sua psique, incluindo a sombra. Este ensaio tem como objetivo explorar a interseção entre esses dois discursos, comparando a representação da psique em Lispector com a teoria junguiana, e investigar como o confronto de G.H. com sua própria sombra oferece reflexões sobre a luta interna que todos enfrentamos para alcançar uma verdadeira totalidade.
A partir dessa análise, propõe-se que a obra de Lispector, ao iluminar o processo de individuação de G.H., oferece ao leitor um caminho semelhante de autoexploração, ajudando a compreender não apenas a personagem, mas também a si mesmo.
Desenvolvimento
A psicologia junguiana e o conceito de individuação
Carl Jung, em Aion: Estudos sobre o Simbolismo do si-mesmo, define a individuação como o processo pelo qual o indivíduo se torna quem realmente é, integrando, assim, os aspectos conscientes e inconscientes de sua psique. Esse processo, que é fundamental para o desenvolvimento psicológico, permite, portanto, a reconciliação com partes reprimidas ou desconhecidas de si mesmo. Jung destaca, além disso, a importância da integração da sombra para o equilíbrio psíquico, sugerindo que, ao aceitar as partes sombrias da psique, o indivíduo alcança maior autoconhecimento. A sombra, por sua vez, ao ser confrontada e integrada, revela o potencial do inconsciente e aproxima o indivíduo da totalidade da psique. Como ele afirma: “A sombra é a parte da nossa psique que, ao ser ignorada, representa nossos traços mais sombrios, mas que, quando integrada, possibilita o crescimento e a transformação”¹.
O si-mesmo: compreendendo a totalidade da psique
O si-mesmo é o conceito central na psicologia junguiana, representando a totalidade da psique humana, isto é, a união de todas as suas partes conscientes e inconscientes. Jung argumenta que a individuação é o processo pelo qual o indivíduo se aproxima do si-mesmo, superando, assim, as divisões internas e alcançando a verdadeira realização. Ele explica que “o processo de individuação leva ao reconhecimento do si-mesmo, o qual é o centro da psique, onde se encontram as oposições e onde o indivíduo pode alcançar sua totalidade”². Esse processo, portanto, é uma metáfora para o encaixe das peças do quebra-cabeça da psique humana, onde o si-mesmo surge quando todas as partes se integram, permitindo, assim, uma versão mais autêntica do ser. Dessa forma, esse conceito de totalidade também se reflete na estrutura narrativa de A Paixão Segundo G.H., onde a fragmentação da experiência de G.H. ao longo da obra pode ser vista como um reflexo da psique que ela enfrenta. A narrativa não linear de Lispector exige que o leitor lide com a quebra de padrões estabelecidos, criando, desse modo, um paralelo com a própria desconstrução da identidade que G.H. vivência. Essa forma de escrita, assim como o processo de individuação junguiano vai além da simples reconciliação das partes da psique, ela proporciona uma vivência direta de como a integração das partes inconscientes e ocorre de forma tumultuada, mas necessária para a busca pela totalidade.
Contexto histórico e literário de A Paixão Segundo G.H.
Considerar o contexto histórico e literário em que A Paixão Segundo G.H. foi escrita essencial para uma compreensão mais profunda da obra. Publicada em 1964, a obra de Clarice Lispector está inserida no contexto da literatura brasileira pós-modernista, marcada por uma introspecção filosófica e existencial. Nesse momento, o país vivia um período de repressão política, o que também influenciou, portanto, a busca pela autonomia do sujeito, tema central na obra. A literatura de Lispector, ao refletir sobre a condição humana de maneira subjetiva e desafiadora, se afasta das convenções narrativas tradicionais, buscando, assim, uma forma de expressão mais intensa e libertadora. Dessa forma, a personagem G.H. é moldada em uma época de profunda transformação cultural, refletindo, portanto, o dilema existencial que muitos indivíduos enfrentavam.
A Paixão Segundo G.H. e o processo de individuação
Em A Paixão Segundo G.H., Clarice Lispector apresenta a protagonista em um processo de crise existencial que pode ser interpretado como uma fase de individuação. G.H. passa por uma desconstrução e reconstrução de sua identidade, ao se confrontar com seus medos e angústias. Esse processo é, portanto, semelhante à experiência de individuação descrita por Jung, onde o indivíduo abandona velhas imagens e máscaras para integrar os aspectos inconscientes da psique. O confronto de G.H. com a barata simboliza, assim, o encontro com a sombra, o lado reprimido e desconhecido de sua psique. Ao matar a barata, ela não apenas lida com um ser repulsivo, mas também confronta sua própria capacidade de violência e alienação, um processo que, por conseguinte, a força a integrar essas partes sombrias e se aproximar de sua totalidade psíquica.
A narrativa fragmentada de A Paixão Segundo G.H. pode, então, ser vista como uma representação simbólica do processo de individuação de G.H., onde a desconstrução da sua identidade é acompanhada por uma estrutura não linear e quase caótica. Esse estilo narrativo, por ser fragmentado e sem uma linha temporal rígida, reflete, portanto, a desordem interna que G.H. experimenta ao se confrontar com sua sombra. Em vez de uma progressão lógica ou clara, a história é disposta em pedaços, que vão se encaixando gradualmente à medida que a protagonista começa a integrar as diferentes partes de si mesma. Essa fragmentação da narrativa não apenas espelha a desconstrução da identidade de G.H., mas também provoca no leitor uma sensação de interiorização, similar àquela que a personagem vive em sua busca por compreensão. Dessa forma, o leitor é levado a juntar as partes da história e a formar sua própria interpretação.
Assim, a narrativa torna-se uma espécie de espelho do processo de individuação junguiano, onde a ordem emerge gradualmente da desordem. Além disso, a ausência de uma estrutura linear e a escolha por uma escrita cheia de digressões e questionamentos existenciais induzem o leitor a um processo de introspecção e autodescoberta. A leitura, portanto, não é apenas uma observação da transformação de G.H., mas uma participação ativa no processo de reflexão, assim como a própria personagem. O estilo de Lispector faz com que o leitor, ao percorrer os fragmentos da história, também busque os fragmentos de sua própria identidade e compreensão do mundo.
A visão de Jung sobre o inconsciente e a representação literária em Lispector
A compreensão junguiana do inconsciente como uma parte vital da psique humana encontra paralelismos evidentes em A Paixão Segundo G.H., a qual a protagonista se vê envolta em um turbilhão de emoções e reflexões profundas ao confrontar não apenas a barata, mas também suas próprias sombras internas Para Jung, o inconsciente contém não só as características reprimidas, mas também os arquétipos, imagens primordiais que moldam o comportamento humano e influenciam as narrativas pessoais. Como ele afirma em Aion: Estudo sobre o Simbolismo do si-mesmo: “O inconsciente não é apenas um reservatório de conteúdos reprimidos, mas também um campo fértil de imagens arquetípicas que influenciam as nossas ações e interpretações da realidade”³ Dessa forma, a maneira como G.H. lida com suas percepções sobre a barata pode ser vista como um reflexo do processo de individuação, um estágio de desenvolvimento que se alcança ao integrar aspectos reprimidos da psique, incluindo aquelas partes que nos causam desconforto e repulsa. No livro A Paixão Segundo G.H., essa confrontação com o “outro”, simbolizado pela barata, ilustra como a protagonista é forçada a encarar as sombras de sua própria psique, um movimento essencial para a individuação.
No livro de Clarice, a experiência de G.H. não se limita a um confronto simples, mas se transforma em uma intensa reflexão sobre os limites da linguagem e da identidade. A busca de G.H. por significado e compreensão reflete, portanto, o próprio processo de análise psicológica que Jung propôs: uma fase de transformação e autoconhecimento, na qual a realidade da pessoa é moldada pela interação com suas sombras internas. Assim, essa abordagem psíquica da obra de Lispector pode ser compreendida à luz da psicologia analítica de Jung, uma vez que enfatiza não apenas o confronto com o mal, o “outro” ou o impuro, mas também a reconciliação dessas imagens com o próprio eu. Desse modo, as reflexões do livro estiga o leitor entrar nesse processo de individuação, fazendo com que o leitor sinta as mesmas sensações dos questionamentos do próprio ser.
Relevância da sombra no processo de autodescoberta e o papel da literatura
O romance A Paixão Segundo G.H. representa uma exploração única do processo psicológico de autoconhecimento. Como discutido ao longo deste ensaio, Clarice Lispector emprega os conceitos de sombra e individuação de forma literária e sutil, permitindo que o leitor também entre nesse processo. Ao contrário de uma abordagem puramente teórica ou clínica, Lispector oferece um vislumbre direto de como o processo de individuação e o confronto com a sombra podem ser dolorosos, confusos e, ao mesmo tempo, profundamente libertadores. Jung, em Aion: Estudo sobre o Simbolismo do Si-mesmo, afirma que “o processo de individuação é um caminho tortuoso, muitas vezes marcado por dificuldades e resistências, mas essencial para alcançar a totalidade” (Jung, 1951). Essa citação reflete o paralelo entre a jornada da protagonista e os desafios do processo de individuação, onde a luta interna é central para a transformação pessoal.
Além disso, a autora faz uma crítica ao olhar superficial que se tem da psique humana, propondo uma análise introspectiva mais profunda. A própria construção literária da narrativa reflete o caminho de G.H., cujas reflexões não são lineares, mas fragmentadas, o que representa a luta de uma pessoa tentando integrar o consciente com o inconsciente. Jung destaca em Aion que “a individuação só se completa quando o inconsciente é trazido à consciência, e o ego finalmente aceita integrar os conteúdos ocultos da psique”⁴
Conclusão
Para concluir, a análise comparativa entre Aion, de Carl Jung, e A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, podemos perceber como ambas as obras abordam de maneira profunda do processo de autoconhecimento. Jung apresenta o processo de individuação como essencial para a integração dos aspectos conscientes e inconscientes da psique, com destaque para a sombra, enquanto Lispector ilustra esse processo de forma intensa e existencial através da crise vivida pela personagem. Ao confrontar a sombra, simbolizada pela barata, G.H. passa por uma transformação interna que a aproxima da totalidade do ser, refletindo a teoria de Jung sobre a integração da psique. Como Jung afirma em Aion, “o inconsciente nunca é totalmente assimilado ao ego, mas a integração dos aspectos sombrios é uma parte vital do desenvolvimento humano” ⁵.
Ademais, a autora torna o conceito de individuação mais acessível ao leitor por meio de uma narrativa gradual e natural, que reflete a desconstrução da identidade de G.H. e coloca o leitor diante de um processo semelhante de autocompreensão. A leitura de A Paixão Segundo G.H., portanto, espelha o processo junguiano de individuação — um caminho tortuoso, mas profundamente transformador. Como Jung coloca em Aion, “a transformação só ocorre quando o ego enfrenta o inconsciente e, assim, inicia um processo de integração que não é linear nem simples”⁶.
Em síntese, a narrativa de Lispector, ao subverter as convenções literárias, convida o leitor a vivenciar, simbolicamente, o processo de integrar as partes sombrias e reprimidas de si mesmo. Dessa maneira, a autora não apenas descreve a transformação de G.H., mas também nos envolve ativamente no processo de autodescoberta e autotransformação. Esse movimento contínuo de reflexão e integração, que ocorre ao longo da obra, ressoa com a teoria de Jung sobre o processo de individuação, ao nos conduzir, tanto quanto à protagonista, em direção a uma totalidade mais autêntica e integrada. Portanto, A Paixão Segundo G.H. não apenas retrata uma experiência individual, mas também propõe uma reflexão profunda sobre a própria jornada do leitor em busca de autocompreensão.
¹Letras português –Literaturas Universidade Federal do Rio de Janeiro.
²Carl Jung, Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo (São Paulo: Cultrix, 1988), p. 75.
³Carl Jung, Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo, p. 82.
⁴Carl Jung, Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo, p. 120.
⁵Carl Jung, Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo, p. 87.
⁶Carl Jung, Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo, p. 110.
REFERÊNCIAS
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