Filosofia aplicada à musculação 1 Você não vai perceber onde termina a musculação e começa a filosofia.
Ontem uma pessoa da minha família me perguntou se já tinha tomado bomba. De fato é uma pergunta que já ouvi algumas vezes. Caso você visse uma foto minha perceberia que - em se comparando com influencers ou fisiculturistas - meu é físico bem modesto. Mas, em relação às pessoas com quem convivo, me destaco. Estou muito feliz com minha forma física, mas gostaria de ter um corpo trincado semelhante ao do Henry Cavill quando interpretou Super Homem. Então por que nunca tomei bomba? A esta pergunta tenho muitas respostas. A primeira é a saúde, temo o impacto de hormônios. Mas nem temo tanto assim, muitos amigos da minha adolescência tomaram bomba e muita gente da academia toma. Ademais, já passei dos 40 anos e tomar um pouco de reposição hormonal com acompanhamento médico não me parece tão perigoso.
Confesso que um dos motivos pelo qual não tomei bomba ainda é que tomar hormônios tiraria minha validade intelectual. Poucos meses após eu começar a treinar, uma instrutora da academia me interpelou e disse que eu estava treinando errado. Segundo ela, não faz sentido fazer tantos exercícios para um mesmo músculo (o tríceps). Posição inclusive defendida por um autor que eu acompanhava e que respeito muito, o Paulo Gentil. Mas, seguindo a orientação do Ben Pakulski eu tentava treinar o tríceps em todas as suas curvas de força (devo fazer um post explicando o embasamento deste treino algum dia). O ponto é: a instrutora fez pouco caso do meu treino e ficou criticando a minha prática de seguir youtubers. Paciência, persisti no que eu acreditava. Alguns meses depois, ironicamente quando eu estava fazendo o mesmo exercício que ela disse que é um exagero, ela me perguntou se eu estava tomando bomba! Fiquei bem feliz, foi um reconhecimento de que eu estava me desenvolvendo e que meu treino não é dos piores. Caso eu tomasse bomba o meu crescimento físico informaria muito pouco a respeito das minhas crenças em musculação.
E esta já é uma consideração filosófica! Escrevo ensaios de filosofia cética, um dos pontos que mais me desafia é: o que um dado pode informar? Repare, é bem difícil a partir de uma evidência positiva fazer uma afirmação categórica. Quando digo 'positiva' digo no sentido de ser um dado, não no sentido de boas energias. No exemplo a evidência positiva (observada) é, fiquei grande, a afirmação categórica seria meu treino é bom. Repare, se for o caso, se o treino realmente é bom, qualquer pessoa saudável que o faça irá crescer. É bem mais fácil a partir de uma evidência positiva fazer uma afirmação negativa. Fiquei grande (evidência positiva), logo meu treino não é ruim. Meu treino não ser ruim é uma afirmação bem mais fraca do que a afirmação categórica de que ele é bom. Eu poderia desenvolver esta ideia e fazer uma ponte com as ideias de Popper. Mas nestes ensaios de filosofia aplicada à musculação quero ser mais breve. Prefiro refletir a respeito de evidências anedóticas, evidências estatísticas e identidade.
É o seguinte: há que se notar que o resultado é muito específico, se refere apenas a mim mesmo. É apenas um caso. O nome disso é evidência anedótica. Uma anedota é um caso, às vezes um caso engraçado, às vezes uma piada. Curioso que aqui no Brasil tanto 'anedota' como 'caso' ("vou te contar um 'causo' ”) são sinônimos de piada. De qualquer modo, quando vejo um estudo em que há poucos participantes dou pouco crédito. Com uma amostra pequena a flutuação estatística, ou seja, a interferência de variáveis desconhecidas é muito grande. Agora imagine um estudo com apenas uma pessoa (eu)! Nem duplo cego tem! Aliás, não tenho rigor nenhum nos meus “experimentos”. Meus únicos instrumentos de mensuração são meu espelho e a reação das pessoas (me acusando de tomar bomba).
Ainda assim aprendo a partir dos meus treinos inventados. Aprendo que em alguns exercícios eu não consigo fazer a execução em alguns ângulos. Por exemplo, eu simplesmente não consigo agachar com as pernas fechadas, meus joelhos doem. Mas como é possível eu fazer generalizações (meu aprendizado) a partir da evidência anedótica (o treino apenas comigo mesmo)?
Agora vem o pulo do gato. Prepare-se! Pronto? Lá vai: não vejo meu treino como evidência anedótica. Vejo como uma evidência estatística de amostragem gigantesca. Por exemplo, eu aprendo sobre agachamento a partir de cada uma das vezes que faço um agachamento. Então a minha amostragem é gigante!
“Mas pera aí!” - alguém pode indagar - “você não acabou de afirmar que a evidência em uma única pessoa é uma evidência anedótica e que desconfia dela?”. Disse sim, e aí vai a reflexão a respeito da identidade. O que é uma pessoa? Usualmente temos como referência a continuidade física temporal de um corpo para definir uma pessoa. Mas em que medida este meu corpo de 12 anos atrás (em que eu estava sedentário) é o mesmo corpo de hoje? Ou o mesmo corpo de quando eu ainda era adolescente e não tinha rompido nenhum ligamento, ainda tinha meus meniscos? Em que medida desfrutamos de uma identidade relativamente consistente que me permite me identificar comigo mesmo, em que medida me transformo a cada minuto a ponto de que posso ser várias pessoas?
A minha resposta é: o contexto determina. Não posso dizer que para todo mundo o que funciona com base no que aprendi nos meus treinos. Isto é, até posso dizer o que funciona para mim, mas deixando bem claro a minha perspectiva subjetiva. Neste sentido (como uma lição para as pessoas em geral) o meu aprendizado com meus treinos é um caso anedótico. Mas, para mim mesmo, a minha experiência pode ser considerada uma amostra estatística muito rica. Pois tenho acesso a como meu corpo se comportou em cada um dos meus treinos durante anos. Está certo que meu aprendizado sobre mim mesmo não se dá com estudos formais, padronizados. Se dá mais intuitivamente. Mas isto é indiferente para a reflexão a respeito da identidade que é o tema deste primeiro ensaio.
Espero que gostem. Pretendo escrever ensaios a respeito de filosofia aplicada à musculação em alguma mídia social. Qualquer crítica é bem vinda.