Nosso canto de humanidade
Toda pessoa tem a particularidade de ter um canto de humanidade só dela
Disso decorre, sem ser egoísta, que é nesse instante que nos vemos sem as máscaras da aparência ou mesmo da falsa solicitude dos bajuladores.
Adriano, o imperador Romano, em suas memórias, ensina, como quem sabe o fim próximo, que houve momentos que preferia o silêncio da solidão. Era nesse momento que ele era só ele. Era ele instituído e constituído de sua existência humana sem as contingências da função e do poder da coroa. O homem em si, com todas as possibilidades e certezas da finitude da vida, e que, por ter ciência dessa irrevogabilidade do tempo, sabe que o peso da coroa não o faz imortal. Aliás, aqueles que assim se imaginaram, como se uma viseira vedasse os olhos ( e a alma, como consequência), resultaram arrogantes, autoritários e assassinos. A história está cheia deles.
Então, o que somos quando estamos defronte a nós mesmos? O que acontece quando nos vemos despidos dos apetrechos ornamentais que colorem nossas vidas e, em oposição, escondem nossas essências? Somos o resultado bruto do que as aparências, em nome ou defesa de uma convivência protocolar, nos impõe para que tudo transcorra sem os abalos previsíveis quando estão em tela interesses. Quem são esses homens quando só os vemos travestidos sob o manto do cargo senão seres protocolares, seres desumanizados, em essência, porque do manto nada mais se vê senão o próprio manto? O humano coberto de manto não aparece, pois, ao estar sob o manto, surge o monarca, o imperador. Vemos o outro na sua medida de poder. Vemos, sob o manto protocolar do cargo, um homem que não é ele, mas um outro instituído de poder que, sob outra circunstância, não diferente do serviçal, seria apenas um homem com todas as vicissitudes inerentes a qualquer mortal.
Será que algum dia paramos pra pensar o quanto de vida se perde na obrigação de seguir o protocolo? Será que nunca se pensou que entre o imperador e o serviçal mais simples do reino, o que os separa não é nada natural!? Que não há naturalidade quando se busca sobre o outro se impor, portanto, oprimir o outro para que a vontade do dominador seja cumprida. Ora, então, o que há entre o imperador e o serviçal não é a naturalidade, mas a imposição de uma vontade sobre outra. Todavia, se se olhar ambos em estado de sono, o que os difere? Não estarão ambos sujeitos e entregues às mesmas vicissitudes da vida? Nessa quase inexistência, que é o estado de sono, não estão ambos entregues às mesmas, e imprevisíveis, ocorrências, quando se dorme e não estão protegidos com as armaduras da vida política e social?
No estado de sono tudo que se é em vigília, se perde. No estado de sono não se tem o imperador, o serviçal. O homem encapsulado no e pelo poder deixa de ser o homem possuído de uma humanidade que, ao ser ofuscada pelas regras protocolares, se perde em suas vaidades e enlouquece (Nero foi um desses homens, Calígula, igualmente, fez um reinado de atrocidades). Ambos, o imperador e o mais simples dos serviçais estão entregues às suas condições de humanos. O imperador nada mais é que um ser humano que dorme. Um ser humano que sonha e quando acorda, entre o despertar e o cargo que ocupa, nesse ínterim de espaços e tempo, ele próprio se depara com a cama desarrumada, os travesseiros espelhados e, quiçá, seus odores espalhados no enxoval. O sono, essa suspensão momentânea de títulos e comendas, só difere da morte porque despertamos; sabemos que iremos acordar e seguir em frente, no mais, ambos acontecimentos suspendem nossas máscaras. No estado de sono, deixamos de existir. Desprotegidos dos protocolos, o sono escancara nossas fragilidades; somos nós em nossas medidas. Somos a frágil criança defronte a um mundo vasto e desconhecido e, por isso, assustador; em tudo igual ao imperador entregue ao sono profundo dos homens, como todo ser humano no seu canto de humanidade.