JÁ NÃO SE FAZEM BOATOS COMO ANTIGAMENTE

Disse-lhes então: dissecai-o e deixai-o ir!

Da comunicação precisa aos súcubos das mídias sociais

*Por Antônio F. Bispo.

Os documentos mais antigos já produzidos pela humanidade estão registrados em papiros, pergaminhos, blocos de argilas, estelas ou murais de grandes palácios, túmulos e outros monumentos cujo intuito ainda não se sabe ao certo qual a função real de tal feitio.

Era necessário protocolar um evento e assim o faziam com o que possuíam.

China, Índia, Egito, Pérsia, Grécia e Roma talvez possuam os maiores painéis em baixo ou alto-relevo, que, de tanta riqueza de informação, parecem um documentário moderno.

Episódios de conquistas, queda ou ascensão de impérios ou até mesmo a transição para o pós-vida de um rei ou seu povo podem ser apreciados nesses gravames.

O serviço era caríssimo e somente os “bilionários” da época podiam encomendar tais mausoléus.

Por intermédio destas obras, podemos ter uma noção de como era a vida naqueles anos.

Humanos, animais, insetos, o clima e criaturas misteriosas: tudo podia ser fotografado e impresso a cinzel ou usando algum tipo de pigmentação, se o imperador ou pagante da obra assim o quisesse.

...

Com o passar do tempo, a interação entre o reino e seus cidadãos foi-se aprimorando e a informação passou a locomover-se por meio de arautos, não ficando apenas estática, plantada em um só lugar.

BOATO era nome de um dentre tantos mensageiros daquela época, cuja bancada jornalística era móvel.

A pé e usando a própria voz, eles apregoavam os editos do rei e outros avisos importantes entre os vilarejos e povoados distantes.

Depois vieram os bardos e poetas, cancioneiros itinerantes, que apesar de enfeitarem ou diminuírem as qualidades do objeto aclamado, acabaram se tornando os primeiros informantes interestaduais e intercontinental dentre ricos e pobres.

Um tipo de reporte “free lance” que cobria os eventos e atualizava os povos sobre as notícias ao redor, com um espaço de meses ou até anos em relação aos fatos ocorridos.

De batalhas sangrentas à beleza de uma donzela; da bravura de um guerreiro à descrição da morte de um estimado pet... Tudo poderia virar informação cantada nas cordas vocais e dos instrumentos musicais desses andarilhos!

Tavernas, bares, acampamentos e vilarejos eram o reduto em que esses personagens podiam ser encontrados com maior facilidade.

Às vezes bêbados ou maltrapilhos, não muito raro dormindo com a esposa ou filha de algum nobre local, impondo vergonha à família da dama ou quem sabe fama proposital a esta que se deixara seduzir (ou fora a sedutora), com o intuito único de ter sua memória propagada, nem que fosse como uma vadia que se deitou com um sujeito de pouco prestígio social.

A ideia da fama e da glória momentânea ou de ser eternizado de alguma forma é algo que persegue a nossa espécie desde sempre.

Baseados neste conceito oco e por vezes improvável de real conquista, somos conduzidos ou capazes de conduzir todo um império em uma autodestruição, ou em guerras fúteis.

Quando não, movidos pela falsa ideia de estarmos lutando em nome de alguma divindade ou para elas expandindo este reino psicodélico, somos escravizados ou escravizamos a muitos com essa mentalidade doentia.

Como o desejo de glória induz facilmente à corrupção, basta-se encontrar o objeto a ser corrompido e daí por diante criar versões de uma realidade alternativa, intrometendo-se como senhor do destino nesse fantasioso universo compartilhado pelo difusor.

Os menestréis que antes narravam ocorrências épicas bem como atos heroicos verdadeiros, agora podiam criar e propagar situações que nunca ocorreram, louvando as glórias de senhores feudais, prefeitos e nobres da corte, pessoas cujos feitos nem de longe poderiam ser realizados, como o único alvo de virar notícia entres os povos.

Fale bem ou falem mal, mas falem do P. Marçal!

Pois é...

Mesmo com as informações correndo à velocidade e força de uma luz de vela, naqueles dias já havia “Marçais” ao seu próprio modo.

Gente que soube propagar a própria imagem de modo febril, tornando-se para o bem ou para mal, o assunto viral em quase toda roda de conversa.

Limites, não há limites para pessoas sem escrúpulos.

Se agir como um canalha não for o bastante para alcançar o que se deseja, podem juntar-se a isso outros meios impensáveis, desde que se chegue ao topo.

Imortalizar o próprio nome em escritos, contos ou repetido incansavelmente pela boca de um trovador era o consumo de muita gente, e ainda o é.

Com a invenção da imprensa no século XV, o registro de memórias elevou-se a um novo patamar e agora era possível ver não apenas os próprios dotes replicados em larga escala, como também o próprio rosto, ou gravuras do que se desejasse.

Era um processo bem mais caro, porém de abrangência maior e mais palpável, atingindo desta feita a maioria dos nobres e pessoas escolarizadas.

Muito dinheiro, fama ou poder era preciso para que alguma ideia sua fosse editada, publicada e redistribuída.

Aquele amontoado de lâminas, papéis e tintas movendo-se com rapidez, fazendo em alguns minutos o que um copista não faria em um ano inteiro, era um como se um portal para um novo universo estivesse se abrindo bem diante da sociedade medieval. E de fato assim o foi.

Há milênios que a humanidade tem como verdade aquilo que de alguma forma está escrito e pode ser conferido por mais de uma pessoa.

Tão sagrado quanto a arte de escrever, era a arte de interpretar o que estava escrito.

A leitura era privilégio dos nobres, não apenas de bolso, mas acima de tudo, de alma.

Escritos eram difíceis de se produzir e conservar, desse modo eram muito valiosos e até certo ponto sagrados.

Essa concepção é tão antiga quanto nossa própria cognição de sapiens.

Costumamos convalidar escrituras, mesmo que não as conheçamos. Tanto é que, dos 8 bilhões de humanos no planeta, quase 95% destes conduzem suas vidas por meio de textos tão antigos quanto a própria civilização, e que, de modo irracional, chegam a atestar veracidade em tudo o que neles há, mesmo diante do inutilismo de algumas teses e contradição daquilo que pregam. Ainda assim, só por estar escrito, certamente é verdadeiro.

Depois de Gutemberg, a imprensa criou deuses que jamais serão esquecidos pela humanidade, pessoas cujo poder, riqueza e fama vieram somente porque seus feitos foram catalogados em alguma edição impressa.

Tanto no campo acadêmico, das artes, da religião ou da política, costumamos apreciar tais obras. Quanto mais antiga, mais venerável esta será.

...

Com o surgimento do cinema, do rádio e da TV, o número de “semideuses” que nossa espécie fabricou nos últimos 100 anos elevou-se em milhares de vezes, se comparado aos últimos 5 milênios desde Babel até Lutero.

Em apenas 1 século, fomos capazes de fabricar mais “heróis” e “deuses” que em 5 mil anos de história mundial.

Vê-las falar em tempo real em telas, ouvi-las por ondas de rádio, bem como poder levá-las para casa em um VHF, vinil ou outros meios de registros para reprisar as sensações de convívios com as “divindades”, fez com que essa “experiência gastronômica” fosse ainda mais prazerosa.

Indústrias de fama como Hollywood, CNN, Globo, BBC, Al Jazeera, Sony Music e festivais como os de Cannes, Oscar e tantas outras “fábricas de ídolos” fizeram pulular a terra de “criaturas sagradas” no reino dos mortais.

Ocorreu então, e de forma abrupta, o surgimento de pequenos grupos de privilegiados, cuja riqueza, somada, pode ser maior que a de alguns países inteiros em subdesenvolvimento.

Gente que passou a ser conhecida não somente por suas atuações em papéis distintos, mas acima de tudo pelo estilo de vida extravagante, seus carrões, mansões e muitos servos que possuíam. Coisa comum aos deuses das mitologias de quaisquer povos.

Toda essa construção baseada na simples ideia de ter seu próprio nome projetado em alguma tela, rótulo de produto, mídia impressa ou falada, como se isso as tornasse melhores que as demais pessoas no globo.

Apesar da fantasia criada (principalmente pela legião de fãs), tais deidades são meros humanos, feitos da mesma essência que os demais e só estão ali por uma projeção coletiva.

Eles também sangram e definham como qualquer um de nós.

Fora a fome, o frio ou falta de teto, todas as mazelas do mundo também podem contê-los ou neles estarem contidos.

...

A voz humana que inicialmente fora desenvolvida pela necessidade de salvarmos reciprocamente, alertando sobre predadores escondidos nas savanas, agora serve-nos para cativar as massas, criando exércitos de abobalhados ao redor do nada, louvando pessoas iguais a nós (ou até pior que nós mesmos), tudo isso em nome conceitos que podem ter sentidos distintos, a depender do intelecto de quem as buscam.

Foi nos últimos 20 anos, porém, que com a produção e comercialização global de aparelhos eletrônicos e acesso irrestrito e por vezes sem regulação à Rede Mundial de Computadores, que o universo dos semideuses e sub celebridades explodiu, passou às dezenas de milhões em todo o globo em um curtíssimo espaço de tempo. Milésimos de segundo, se comparado com a saga humana.

Pessoas que vieram do nada e que se tornaram “tudo”, oferecendo “lotes de comunicação vazia” para seus espectadores e recebendo milhões de horas de serviços prestados e recursos essenciais ilimitados como pagamento (sim, é isso que o dinheiro representa, apenas isso!).

Procura-se então nesse novo modelo de comunicação e fabricação de "super humanos", qualidades até então essenciais aos deuses antigos, a exemplo do útil, do épico, do lúdico, do belo e daquilo que se possa instruir as gerações futuras e quase nada pode se achar entre estes, recém-saídos do Olimpo (não seria do Hades?), porém, nada se encontra. O vazio existencial é o que abunda entre eles.

Saímos de grunhidos e bastões, das cavernas às savanas, defendendo-nos de predadores que de nossa carne queria alimentar-se, para novamente com grunhidos e bastões nos grandes podcasts e “BBBs” da vida, consumirmos “a carne” uns dos outros, comendo os de nossa própria espécie, transformando uma simples interação humana em algo desnecessário e doloroso à sanidade coletiva.

Um recinto onde pessoas, que apesar de vivas ou mortas, serão servidas como prato principal num banquete de indivíduos que mais se parecem com ogros do que com cavalheiros, damas ou cidadãos civilizados.

Por outro lado, a exemplo dos “Marçais da vida”, boa parte dos que vivem desse modelo de negócio precisam “enfeitar-se e cobrir-se de temperos de todos os tipos” para que se tornem palatáveis e sejam digeridos por um público de gosto duvidoso.

Se para isto será necessário introduzir em algum orifício do próprio corpo um farolete brilhante ou gigantesco, isso não importa, desde que atraia público.

Consumir a honra, a moral e a dignidade de outrem é o que dá mais retorno nesse modelo de “comunicação direta”, principalmente quando se veta o direito de defesa imediata dos estão sendo devorados, ordenando-se, que caso estes queiram recompor-se publicamente, que procurem por sua vez, uma bancada de advogados e juízes para se reerguerem ou lucrarem com isso.

Quando o objeto de ataque, de modo colérico, cria vídeo-respostas com ameaças e xingamentos ao ofensor, achando estar se defendendo, os “consumidores de lixo” vão à loucura. Entram em frenesi total e contam as horas para que uma contra-reação seja dada e as agressões se estendam por dias ou semanas a fio...Às vezes penso ser isso, algo combinado para gerar audiência.

— UMA DELÍCIA!

Diria uma alma sebosa, gente de alma vazia que encontra no destempero dos outros, o sabor de sua própria existência!

CRUZES!

Nos grandes modelos de entretenimentos modernos, nada gera tanto faturamento quanto confinar algumas pessoas numa mesma casa, fazendo com que estas convivam sob pressão, sejam estimuladas a extravasarem os instintos mais primitivos, como a ira, a defesa por território, recursos ou atenção.

É um ambiente perfeito para predadores ensandecidos.

Gente incapaz de arrumar o próprio quarto ao levantar-se ou de cuidar da própria higiene pessoal, mas que se julga grande o bastante para administrar a vida alheia, bem como suas decisões dentro e fora da casa.

O polegar que antes usávamos para equilibrar o porrete ao esmagar a fera que almejava nos comer, agora o usamos para estraçalhar nossos “inimigos”, apertando uma tela de cristal líquido ou o controle da TV à nossa frente. PIOR: nos sentimos poderosos como isso!

De hábitos diurnos, saímos para modos noturnos, desprezando o sono reparador, para que, prejudicados pela insônia, tenhamos uma desculpa maior para inebriarmos de uma ira descomunal contra pessoas que nem sabem que existimo, mas que julgamos ter o poder de cortar o fio do destino de suas vidas.

Após milênios, agora possuímos do poder dos deuses nas nossas mãos e nem nos damos conta disso!

Até 50 anos, antes da invenção do celular (digo os primeiros modelos), nem mesmos o maior dos imperadores do passado com todos os seus recursos, poderiam obter o que até uma criança favelada possui atualmente sem nenhum esforço próprio: INFORMAÇÃO INSTANTÂNEA E ILIMITADA DE QUALQUER PARTE DO MUNDO.

Nem Julio César ou Gengis Khan com sua enorme rede de batedores e espiões espalhado por vários reinos, poderia usufruir de tais artefatos.

O mais triste é perceber que não sabemos usar tais recursos e por eles somos alienados.

Quando não, aprisionamos nossos semelhantes ou construímos divindades abobalhadas, que se alimentam de likes e rates e usam toda energia a eles direcionada para transformar em lucro. Valor que será usado posteriormente para vencer eleições, corromper autoridades, corroborar com a idiotização das massas, etc.

CONTINUA...

Texto escrito em 27/10/24.

Obs.:

Esta é a parte 2 do texto OS GRANDES INDUSTRIAIS DA IMBECILIDADE, publicado nesta mesma página, algumas semanas atrás.

Procure-o aqui caso queira apreciá-lo, ou chame-me no privado que o enviarei.

Aos que querem e podem contribuir financeiramente com esta obra, o QR Code para doações está em algum lugar deste texto ou da página REVEJA SEUS CONCEITOS.

Meu muito obrigado a vocês, que muito contribuem para este canal.

Ferreira Bispo
Enviado por Ferreira Bispo em 27/10/2024
Código do texto: T8183504
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