Poceirões & Calhau da Furna – XIX
Poceirões & Calhau da Furna – XIX
Onde ir tomar um (bom) banho de água salgada nas Calhetas? Aos Poceirões ou ao Calhau da Furna. Apesar de os Poceirões ficarem (já) no lado dos Fenais da Luz, a pouco mais de duzentos metros das Calhetas, era ali que iam (e ainda alguns vão) ‘da igreja para cima.’ Mas também lá iam (e vão ainda) os (vizinhos) do Farropo [Lugar dos Fenais da Luz] e do Pico da Pedra. Há (ali) ‘boas’ poças – piscinas, como diz o povo dali perto. Para alguns, até serão (bem) melhores do que as do Calhau da Furna. E esse, no coração das Calhetas, quase no final da rua da Boa Viagem e a dois passos do porto das Calhetas? Era mais frequentado pelos da igreja para baixo. E dos de Rabo de Peixe e Pico da Pedra.’ Dizem-me ainda. Lá em baixo na Volta (rua do Porto e próximo dela) davam-se mais com o pessoal da Cova da Burra (Rabo de Peixe). Que também iam ‘nadar’ no porto ao lado. Hoje o Calhau da Furna é frequentado (além do mais) por turistas do Hotel e dos alojamentos locais. E gente ao redor da Ilha. Isso vi eu. Deve o seu aspecto actual a obras realizadas na década de noventa. Por razões económicas, não se concretizou, em 2006-9, um (ambicioso) projecto de beneficiação. Ainda assim, conquistou (uma bem merecida) Bandeira Azul. Prova da sua excelência.
Dito isso, para conhecer os banhos das Calhetas, vou começar pelo princípio. Na Europa, o uso de banhos de mar (no início, apenas para fins medicinais) terá (segundo dizem) principiado em Inglaterra no século XVIII. Ainda naquele século, tanto ali como (também) em França, já se tomava banho de mar por puro prazer. Em Portugal, conhece-se (algum) uso (já) no século XVIII. Todavia, é (só) a partir do século XIX que se espalha o gosto (e a prática) de ir ao mar a banhos. Como terá (a moda) chegado a São Miguel? É possível que tenha aqui chegado por várias vias: através da colónia britânica aqui instalada, através de elementos das tropas liberais (que estiveram na Ilha) e que haviam estado exilados em França e em Inglaterra, através de micaelenses que viajavam para o estrangeiro, através de madeirenses ou (mesmo) de contactos com as outras ilhas dos Açores. No entanto, ao contrário do que já acontece para o caso de Portugal Continental, que irei seguir, há que admiti-lo, conhece-se (bastante) mal a sua história na Ilha de São Miguel. Tanto quanto consegui descobrir, descobri uma (muito recente) nota (introdutória) a uma exposição alusiva ao tema. E um artigo do meu patrício Ferreira de Almeida, que conhece tão bem ou melhor do que eu as (nossas) Poças e mais ainda o (desafortunado) porto de Santa Iria. Nesse (seu) trabalho, fala de dois dos primeiros locais (conhecidos) de banhos de mar da cidade de Ponta Delgada: Alcaçarias e Cerco dos Frades. Situam-se (cronologicamente) antes de 1870 e depois de 1845. Em 1870, diz-se que ‘se acham agravados os benefícios dos banhos d’agua salgada’ das Alcaçarias, devido aos despojos de uma fábrica de destilação estabelecida ali perto, na Rua do Calhau. Todavia, se a casa que o inglês John Bristow tinha no calhau do Cerco dos Frades (já) antes de 1839, lhe servia (também) de apoio a banhos e não (só) a outros fins, será possível recuar na data para (uma altura) anterior a 1839. Certo?
À caça de ‘migalhas’ úteis (à nossa história) vamos ‘radiografar’ (o mais possível) duas (preciosas) notícias de 1845. Daqui se retira (como se verá) alguma informação (valiosa) sobre os (primórdios dos) banhos de mar em S. Miguel. Saem no Açoriano Oriental. Pela atenção que dedica ao assunto, é possível que tenha sido (até prova em contrário) o grande defensor dos banhos de mar. A primeira notícia é de 16 de Agosto. Numa nota curta no meio de outras dedicadas a outros assuntos, o jornal reclama ‘Um local para banhos, o mais próprio possível.’ Considerando-os ‘salutíferos banhos de água salgada.’ O local escolhido é o das ‘Alcaçarias.’ Estavam ‘aforadas a Thomas Hickling [n. 21.02.1745 – f. 31.08.1834],’ que havia falecido há onze anos. ‘A Câmara Municipal,’ ‘visto não tira(r) lucro nisso’ (…) (queria) converter (aquele local) ‘em utilidade pública.’ No entanto, ainda que fosse ‘uma obra tão desejada para a comodidade pública,’ o jornal (como bom arauto do liberalismo) afasta a iniciativa pública (Câmara) apelando (antes) à iniciativa particular: ‘se houver algum empreendedor que queira especular por sua conta.’ Passados menos de um mês sobre a primeira nota, a 13 de Setembro, sai uma segunda. Tal como a anterior, será da lavra do editor do jornal, F. J. P. de Macedo, ou de outro seu colaborador ou (até) de um leitor. Quem a redige queixa-se do facto de ‘numa cidade tão rica e comercial como esta nossa, é pena que ainda não hajam lugares próprios para banhos de mar, à imitação do que acontece noutras terras mais afortunadas, é verdade, porém menos populosas que Ponta Delgada.’ O que se poderá (porventura) retirar destas duas notas? Quanto a mim, primeiro, que o primeiro apelo caíra em saco roto. Logo, era preciso ‘espevitar’ o bairrismo (adormecido) da Cidade (leia-se de Ponta Delgada). Segundo, antes de Agosto /Setembro de 1845, já haveria locais onde tomar banhos de mar fora da Cidade. Mas onde? Na ilha? É provável que se referisse à ilha. Mas onde na Ilha? Ainda no Concelho, em São Roque? Fora do Concelho, no da Lagoa? No de Vila Franca? No da Povoação? No de Nordeste? No da Ribeira Grande?
Talvez por não ter obtido a resposta esperada à sugestão das Alcaçarias, o autor da nota muda (entretanto) de estratégia. Passa a sugerir a constituição de uma associação privada e escolhe um novo local: o Cerco dos Frades. Após ter dado um valente puxão de orelhas no (evidente) desinteresse da Cidade, oferece uma solução a quem o possa ler: ‘Se se formasse nesta cidade uma pequena associação, que tivesse por fim aproveitar o extenso calhau do – Cerco – para nele mandar construir algumas casas de banhos; estamos persuadidos que quem tal coisa empreendesse não perderia o seu tempo, nem o seu dinheiro, e seria isso um benefício que o público muito apreciaria.’ O ‘calhau do Cerco’ era um bom local para banhos, pois, ‘além de ser extenso (…) tem muitas poças, grandes e pequenas; e, por esta razão, próprio para nele se construírem banhos, de diferentes dimensões.’ O que acontece também na Poça/Poças da Ribeira Grande. Ou nas das Calhetas. Como (adiante) tentarei mostrar. Para convencer os (que descriam) do interesse (comercial) daquele investimento, fornece-lhes razões inquestionáveis: ‘No tempo das calmas, isto é no Estio, e parte do Outono, haveria ali grande concorrência de pessoas, que a troco que 40, 60 e 80 reis,’ e repare-se ‘como se faz e Lisboa, não deixariam de ir refrescar-se a qualquer hora do dia.’ Não esconde (porém) a ameaça (muito concreta) do mau tempo (habitual) de Inverno, que causa (invariavelmente) destruição. A solução passava por construir-se ‘as mesmas casas com a maior segurança possível, e já o mar as não danificaria nem destruiria.’ Prova disso é o que ‘(…) aconteceu a uma [casa] que o sr. John Bristow, inglês, possui no mesmo calhau, o mar, em 5 de Dezembro de 39, quase que a cobria; mas, serenada a tempestade ficou a casa no mesmo lugar sem defeito, quando pelo contrário algumas moradas da estrada de Santa Clara sofreram grande dano, não obstante ficarem mais distantes do mar.’ Chegou a haver banhos nas Alcaçarias? Sim. Como se viu, em 1870 (apesar das queixas) estavam a funcionar. E no cerco dos Frades/Estradinho? Ali ou por ali perto, ainda funcionava na década de sessenta do século XX.
Enquanto não se faz a (necessária) história balnear de todos os concelhos da Ilha, centro-me no (pouco) que sei do da Ribeira Grande. Tanto as poças do mar como os poços da ribeira, as levadas dos moinhos, os areais e as termas (tudo o indica) terão sido (sempre) locais (privilegiados) de banhos. Sem muitos ou nenhuns apoios. As Poças/Poça, é bom dizê-lo, eram frequentadas (já) antes de 1867. Então, pela elite (masculina) da rua Direita e pouco mais. Uma notícia, datada do verão de 1867, é (bem) prova do que afirmo: ‘O sítio da Poça está sendo muito concorrido para banhos de mar, para que se pedem para ali alguns melhoramentos.’ Um aparte (a propósito, creio): os banhos mais concorridos (para a elite) eram e continuariam a ser (por muitos e bons anos) os das ‘termas das Caldeiras e (os) banhos da água prodigiosa da Ladeira da Velha.’ Ainda o disse Francisco Carreiro da Costa em 1949. Apesar disso, o interesse pelos banhos do mar ia-se (aos poucos) afirmando. Indo além da Poça, estender-se-ia (sem quaisquer condições) aos areais e a Santa Iria. O interesse seria maior entre os mais jovens? Provavelmente. Sobretudo homens. Gente mais aberta (e atenta) ao que se fazia fora da Ribeira Grande. Que melhorias eram pedidas em 1867 para a Poça? Uma notícia comentada, datada do ano seguinte, bem a tempo de preparar o verão que se avizinhava, mostra (com clareza) o que se pretendia. É de Teófilo Ferreira e sai em O Fórum. Jornal da Ribeira Grande. De Teófilo e de Francisco Maria Supico. Conta-se assim. Numa quarta-feira, dia 22 de Abril, o engenheiro da Junta Geral Ricardo Júlio Ferraz (n. 26.05.1828 – Funchal – f. 24.12.1880 – Funchal) (entre outras visitas efectuadas na mesma ocasião na Ribeira Grande) foi ‘examinar o sítio, onde a nossa Câmara projecta fazer os banhos de mar.’ O jornalista, professor e antigo tipógrafo Teófilo Ferreira - que pode ter acompanhado a visita ou sido informado por quem a acompanhara -, depositava pouca (ou nenhuma) confiança no resultado da visita, não (provavelmente) por duvidar da competência do engenheiro Ferraz, mas por ela ter sido feita na pior altura possível: ‘pouco se pôde decidir, visto que havia muita ressaca.’ E só por essa observação coxa, feita em ocasião imprópria, ‘(…) o sr. Engenheiro foi de opinião, que se poderia arranjar um banho sofrível na poça, que fica ao lado da em que usualmente se costumam lavar, aprofundando-a um metro e limpando as pedras, que a mesma tem.’ Quais poças? Se já (lá) utilizavam umas? As poças Velhas, local onde se construíram as piscinas (actuais)? Não sei ao certo. O Poço do Castelo? Esse seria o que já havia? Sinceramente, também não sei a resposta. Nesse do castelo, em 1875, o ‘engenheiro Miguel Henriques projecta(va) fazer um varadouro (…).’ Ferreira, prudente, aconselhava a realização de uma nova visita, desta vez, com mar calmo: ‘porque só assim pode conhecer o plano, que convém adoptar, pois é certo que é melhor esperar mais algum tempo, e fazer a obra boa, do que repentinamente consumir dinheiro sem proveito.’ Abrir-se-ia (antes de mais) o assunto à discussão pública: ‘Antes, pois, de se deliberar, definitivamente, acerca desta obra, a ilustre Câmara Municipal deseja ouvir a opinião dos seus munícipes e por isso lhes franqueamos desde já as nossas colunas, para a discussão deste negócio.’ Não há certezas de que as obras tivessem sido executadas, porém, sinal de que algo (muito ou pouco) tenha sido (lá) feito, é que, em 1871, os banhos das Poças/Poça já eram referidos no Regulamento policial Municipal. Na década seguinte, surge (nova) prova (evidente) de que (entretanto) haviam sido feitas obras. No ano de 1885, o Noticiarista, (outro periódico da Ribeira Grande) cujo editor, proprietário e tipógrafo era Manuel de Frias de Castro (n. 2.12.1882 – Rabo de Peixe), sob o título Poças (agora já no plural), além de informar que ‘os banhos do mar têm sido este ano muito frequentados pela nossa melhor sociedade,’ prova que (lá) se haviam realizado obras. Escreve assim. Não obstante, ‘a poça acha(r)-se muito melhorada, é verdade, mas sentimos que por pouco tempo, pois é de esperar que no próximo inverno fique novamente entulhada com a pedra que dela tiraram pela proximidade em que foi lançada.’ Portanto, melhoramentos precários.
Com o passar dos anos, foram sendo introduzidas (ali novas) melhorias/reparações (necessárias). A vereação de 1886, por exemplo, ‘salvo erro,’ acrescenta o autor da memória escrita em 1900, ‘construiu uma plataforma quadrangular (…) de cantaria para ali colocar algumas barracas,’ mas ‘fosse por falta de meios, ou por qualquer outro motivo, essas barracas foram ao princípio feitas de lona, afim de se deslocarem diariamente ao terminar o serviço balnear (…).’ Como se degradassem, foram (então) ‘substituídas por uma grande barraca de madeira, com vários compartimentos internos, que seria desarmada e arrecadada ao terminar a estação, se antes desse tempo um vendaval não a destruísse completamente.’ No entanto, como esta última solução tivesse (também) falhado, a vereação de 1900 decidiu construir barracas de pedra e cal. Que ainda hoje se mantêm de pé. Assunto que (para melhor perceber o Calhau da Furna) pretendo aprofundar no próximo trabalho.
Biblioteca Municipal Daniel de Sá (Cidade da Ribeira Grande) (continua)