A classe trabalhadora depois do dilúvio neoliberal: “salve-se quem puder”!
Brasil é o retrato carcomido da sociedade civil depois do dilúvio neoliberal, para pegar de empréstimo o título de um artigo do Sociólogo Atilio Borón, de 1998. Datado, portanto? Parece que não. Os escombros deixados pelo neoliberalismo não só persistem como se tornaram mais degradantes, cenário de terra arrasada. Quais são as condições de existência da classe trabalhadora no sistema capitalista? Especialistas afirmam de forma contundente: estamos próximos do século XVIII, onde Friedrich Engels analisou de forma excepcional em seu texto “a situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (1845).
Tempo onde os trabalhadores não possuíam nenhum direito trabalhista, exercendo um trabalho superexplorado, degradante, em condições mínimas de dignidade nas fábricas, minas; salários irrisórios, com jornadas que ultrapassavam 16 horas, até mesmo para crianças e mulheres; não tinham moradia, tinham de morar em barracos, sem iluminação, faça-se frio ou sol, sem férias, sem aposentadorias. Essa foi a modernização da Revolução Industrial, do progresso. Progresso para quem? No Novo Mundo, o que hoje é a periferia do sistema capitalista, que continua sendo quintal para os desmandos do capital, as grandes potências estavam colonizando terras, explorando recursos materiais para pagar a conta da Revolução Industrial e construir suas riquezas derramando o sangue dos povos indígenas, escravizando pessoas africanas e consolidando a instituição da escravidão, que vigorou até anteontem, Brasil o último pais a abolir a escravidão em 1888.
Aqui, o liberal justificou e defendeu a escravidão nas câmaras legislativas (bem documentado) alegando o direito à propriedade, mantra do liberalismo do período Moderno, que entre outras coisas, pregava a liberdade. Sim, claro, a liberdade de ter o direito à propriedade, pensou o fazendeiro nas cadeiras da câmara do Brasil no século XIX. O africano era visto como coisa. Hoje os povos indígenas são vistos de forma semelhante, como praga que deve ser exterminada para poder abrir pasto para gado, soja, mineração, desmatamento para produzir madeira e outras comodities para enriquecer latifundiários.
O capitalismo em sua versão “renovada”, a roupagem carcomida e predatória representada no neoliberalismo, sim aquele que teve início nos governos do estadunidense Richard Nixon (1969-1974), imperialista e interventor dos países latino americanos, e da dama de ferro e rainha do capital financeiro e das privatizações, Margaret Tatcher, na Inglaterra dos anos de 1979-1990, que gerou uma degradação da sociedade, desemprego, pauperização. Colocado em prática também por Augusto Pinochet na ditadura Chilena (1973-1990) elogiado por Tatcher, financiado e apoiado militarmente pelos EUA. Pinochet além de torturar e matar cidadãos em uma das ditaduras mais sanguinárias, fez uma reforma da previdência que hoje a população está colhendo os frutos: idosos sem renda, não tem onde morar, cometem suicídio, o que se tornou uma onda massiva nos últimos anos. Essa reforma, vejamos, inspirou o ministro da economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, a fazer a reforma da previdência no Brasil nos mesmos moldes. Está vigente.
Neoliberalismo levado à cabo pela espada, ou melhor, pelos tangues e canhoes, empurraram de goela abaixo o progresso. Mais uma vez, para quem? Movimento executado no Chile no golpe de Estado apoiado pelos EUA que bombardearam o palácio de La Moneda e mataram o presidente eleito Salvador Allende (1973), um ato terrorista. O mesmo ocorreu em outros países, golpes e ditadura militares financiados pelos EUA aqui nas terras de Santa Cruz (1964); Argentina (1966); Bolívia (1964); Uruguai (1973). Aqui, o ingrediente da aliança entre militares e empresários foi selada desde o início, como também com os civis, o que ficou evidente na Marcha da Família com Deus pela Liberdade (1964), onde pediram a derrubada de Jango e depois voltaram às ruas para comemorar e apoiar os militares já no poder. Defendendo a constituição, a democracia e a ordem, diziam os cartazes erguidos. Marx já dizia em O 18 de Brumário de Luiz Bonaparte que a história se repete primeiro como tragédia, e segundo como farsa.
A ditadura militar que para a sociedade foi péssima, para o capital, entretanto, foi projeto e dos mais bem sucedidos. Francisco de Oliveira em seu livro O ornitorrinco cravou: O desenvolvimentismo autoritário que tinha como discurso político tornar o Brasil um país grande, rumo ao progresso, produziu uma acumulação e concentração de renda nos setores da elite e em uma classe média alta, e por assim dizer, “não houve nenhuma redistribuição para baixo, nem em termos de beneficiamento dos estratos médios, nem muito menos, como é óbvio, dos estratos baixos” (OLIVEIRA, 2003, p.98).
Se o “milagre” econômico foi bom para as elites que comeram o bolo e não dividiram com ninguém, no mesmo processo histórico, arrasou com a sociedade civil, com índices de pobreza, desigualdade e inflação alarmantes. Além de fechar os espaços políticos e de manifestação, de matar opositores ou não, repressão e opressão nas ruas, perseguição e silenciamento até mesmo dentro das empresas com a cooperação de empresários que torturaram trabalhadores nos porões da próprias empresas, denunciavam ao DOPS qualquer cidadão que reivindicasse melhorias, até mesmo financiamentos na repressão e tortura, vide Henning Boilesen, dono da Ultragaz que financiou junto com outros empresários vinculados a FIESP (Federação de Indústria das Indústrias do Estado de SP) a Operação Bandeirante (Oban), um esquadrão de extermínio do exército do Estado ditatorial feito para exterminar grupos de esquerda. Seu método era simples: sequestro-tortura-execução.
Temos aqui a aliança entre o capital e os ditadores com o mesmo propósito, promovendo a hegemonia do capital reprimindo qualquer tipo de reivindicação social e tornando ainda mais predador a exploração do trabalho, onde os trabalhadores tiveram seus direitos reduzidos e seus salários congelados, vivendo em extrema pobreza sem acesso aos serviços públicos que ficaram sem investimentos. A exploração de recursos minerais, desmatamento de florestas e genocídio indígena por fazendeiros e pelos militares foi intensa, sustentado pelo Estado autoritário para avançar em seus projetos de construção de “um Brasil grande”, que na prática significou muitos viadutos, poucas casas; mais rodovias, menos escolas, hospitais; mais desmatamento e avanço de latifúndio, mais gente passando fome.
A aristocracia agrária e as elites brasileiras até hoje, filhotes da escravidão e da ditadura que são, operam ainda hoje sob as mesmas práticas de predação, extermínio e exploração. Os fazendeiros do agronegócio (pop, tec tudo?) ateiam fogo nas florestas e cobrem o país com fumaça, degradando o meio ambiente, destruindo biomas e florestas, poluindo como forma de “protesto”. Arcaicos, sim. Desmoralizados? Parece que não.
O agronegócio recebe financiamentos, créditos e incentivos fiscais bilionários pelo governo para degradar o meio ambiente, desmatar, poluir com mineração, com agrotóxicos, para exterminar indígenas, só lembrar o caso dos povos Yanomami, genocídio praticado durante governo Bolsonaro. E na outra ponta, há um discurso em torno da crise climática combinado a investimentos pífios destinados às áreas de proteção ambiental. Veja, quem causa toda essa putrefação no país tem incentivos fiscais e créditos astronômicos enquanto que áreas essenciais como o meio ambiente, saúde pública, educação, possuem incentivos nenhum amarradas pelo arcabouço fiscal, e, os produtores sem-terra são criminalizados.
O agro pop produz commodities que são negociadas na Bolsa de Valores, soja para alimentar porcos, gado para vender carne na Europa e Ásia. Sim, estamos destruindo o país para isso e não há produção de alimento para a população brasileira pelo agro. Mais de 80% do desmatamento na Floresta Amazônica é feito para abrir pastagem, sendo o Brasil o maior produtor de carne para exportação do mundo, com monoculturas aos rodos pelo país. A produção de carne altamente degradante, que para produzir 1 quilo de carne, é preciso utilizar 15 mil litros de água, e você aí preocupado com seu banho... Não há nenhum retorno desse negócio privado para as contas públicas, muito pelo contrário, o retorno é resolver as crises e os problemas que daí advém.
A pesquisadora Larissa Bombardi que está exilada do país em decorrência de ameaça de morte por publicar o atlas geográfico do uso de agrotóxico no Brasil, em seu livro Agrotóxico e Colonialismo químico mostra que esses agrotóxicos que envenenam as comidas, solos, fauna, flora são, em sua maioria, produzidos na Europa. E adivinha, lá eles são proibidos e exportam aos países da periferia do capital, África, América Latina, Ásia. Em matéria do site O Joio e Trigo, mostra que produtos da alimentação infantil como Mucilon exportados ao Sul Global são piores, contendo índices altamente elevados de açúcar e outras substancias que não contém nos mesmos produtos e marcas vendidos na Europa. Na mesma toada, o nível tolerado de agrotóxico pela PL do veneno por litro de água aqui na América Latina é mil vezes maior do que permitido na União Europeia. Aqui, fazendeiro do agro utiliza para desmatar florestas o agrotóxico da família do agente laranja, que foi utilizado pelos EUA na guerra contra o Vietnã. A área desmatada por este criminoso chega a ser mais de 80 mil hectares, maior do que a cidade de Campinas tendo sido jogado também sobre comunidades indígenas. Foi absorvido pela justiça.
Em relatório do Idec, foram detectados venenos em diversos alimentos processados, como o glifosato, proibido em diversos países. Os produtos da categoria biscoito maisena apresentaram maior número de resíduos de agrotóxicos, biscoito de sal Vitarella foi encontrado mais de 9 resíduos, outras marcas como Trunfo, Vitarella, Zabet, Marilan também foram encontrados resíduos de agrotóxicos. Farinha de trigo, “ingrediente encontrado na crosta dos empanados, no biscoito maisena e no macarrão instantâneo, continua sendo um ingrediente com alta prevalência de contaminação por agrotóxicos” (Relatório IDEC). Bolachas: Bono, Trakinas com mais de 7 resíduos, Negresso, Nesfit, Oreo também foi encontrado. O agrotóxico glifosato e o glufosinato foram mais frequentemente encontrados em todos os produtos. O Fipronil foi encontrado na bebida láctea pirakids, agrotóxico que está relacionado com a morte de abelhas; Hamburguers Sadia, Seara, Perdigão, Aurora todos apresentaram resíduos de agrotóxico; bisnaguinha Pullman, Panco (com mais de 9 tipos de agrotóxicos), Seven Boys; também empanados de frango como Nuggts; requeijão da Vigor apresentou 7 resíduos; Itambé 3; Linguiça Seara e mortadela Perdigão e Seara também apresentaram resíduos; Salsicha: Sadia, Perdigão e Aurora também. O agronegócio não é tão pop assim...
É a dinâmica do capital destruindo meio ambiente e matando pessoas, literalmente, agindo sem nenhum escrúpulo erguendo uma fachada discursiva e ideológica apoiada, defendida e propagada pela mídia burguesa ignorando as atrocidades desse ator, manipulando fatos, escondendo outros e criminalizando quem aponta para essas aberrações e faz o inverso, como o Movimento Sem Terra. Os papéis são invertidos e o vilão se torna herói.
Sim, o país da “democracia racial” depois de 400 anos de escravidão, terra de latifundiário que assassina indígena com o mesmo modus operandi de um bandeirante até hoje, do agronegócio, da política como produto da ditadura militar que resolve os conflitos com bala, não à atoa, temos representados no congresso as forças políticas que comandam este país (ainda quando não era um país) desde 1500: a bancada da bíblia, da bala, ruralista do agro, e hoje, da milícia. Todas elas muito bem representadas nas fileiras e esquinas do congresso, presidindo a câmara, judiciário, e não por coincidência, teve há pouco tempo representado no executivo em uma só figura a síntese de todos esses elementos que constituem as forças políticas, ideológicas e de poder no Brasil desde muito: Bolsonaro.
Monstrengo, filhote grotesco da ditadura que não desmamou, é sujeito desse processo histórico e representante da política da extrema direita com elementos fascistas e agente do capital, dos bancos, dos fundos financeiros, das empresas, unidos em uma só missão, privatizar todo o sistema público, tornar o Estado um párea para servir de fiador ao capital financeiro, bancário, alimentando empresas, latifúndios cada vez mais predatórios, fazendo da política um agente dos interesses do capital. Paralelamente, acabando com todas as assistências sociais, aposentadorias, trabalho com direitos, com condições mínimas de trabalho cada vez mais precarizadas. Isso já não existe, a (des)reforma trabalhista veio para colocar fim na “mamata” do emprego com vínculo CLT. Isso é coisa de varguista, diria o outro. Hoje o bom mesmo é ser “empreendedor”, isto é, pegar seu carrinho, vincular a um aplicativo, dirigir levando pessoas por mais de 15 horas, custear todos os gastos por conta própria, não ter férias, nem auxílios, assistências, pausa para descanso, nem descanso semana, feriado, e também sem aposentadoria. Olha, empreendedor mesmo, não trabalha. É parasita, explora a força de trabalho.
Passado o dilúvio neoliberal, o que restará? Qual será o futuro das pessoas pobres? Da classe trabalhadora? Existirão florestas, rios, biomas, ar puro? Cientistas dizem que não. O avanço da extrema direita e do atrofiamento da esquerda combativa, se aproxima da constatação final de Borón: “a instalação de uma cruenta e indesejada ditadura militar de novo tipo” frente ao esfacelamento da democracia liberal que tentam eliminar as capacidades do Estado de construir políticas necessárias para a população frente aos escrutínios da classe burguesa. Ditaduras, fascismos são os oráculos que o capital recorre quando querem retomar ou avançar em seus interesses, a história se mostrou assim.
A democracia liberal é uma fachada institucional, perfeitamente conciliável com a extrema pobreza, com desigualdade, opressões, e toda sorte de violências para que o capitalismo continue cumprindo seu papel: gerar lucro. Não é preferível para as elites uma democracia plena, se isso fosse possível. Como pode existir democracia, igualdade em um sistema que só se sustenta se produzir desigualdades? O Estado, instituição que serve aos interesses da burguesia, nunca esteve tão às claras de sua função historicamente constituída. O esfacelamento das políticas públicas, direitos e assistências estão escancaradas e a população subalterna se encontra na berlinda entre o acirramento das contradições inconciliáveis de classe e o “salve-se quem puder”.
Trabalho sem direitos para extrair ainda mais-valia e obter maior lucro; sem previdência, com sistemas públicos essenciais privatizados, como saúde, educação, água, energia, transporte. Em São Paulo o que ainda não foi privatizado foi saúde e a educação (ou parte). População sem moradia, com imóveis entregues ao capital financeiro, se constrói para especular, gerar valor, há mais imóveis vazios do que gente com casa, lugar onde dois milhões passam fome e mais da metade vive em insegurança alimentar, cenário esse replicado em todo o país de forma piorada, tudo isso como projeto da extrema direita que continua avançando, enquanto temos um governo que dizem de centro-esquerda, que continua aplicando a agenda neoliberal, da austeridade, do teto de gastos que impede investimentos nas áreas essenciais. Quando temos um governo de extrema direita, se aplica a agenda neoliberal, se temos um governo de “esquerda”, se aplica a agenda neoliberal. Arre, estou farto!