Águas da Ribeirinha - XVI
Águas da Ribeirinha - XXIV
Ribeirinha ‘com nome diminutivo por ser mais pequena que a ribeira Grande, sua vizinha.’ É uma única ribeira, mas na Ribeirinha tratam-na por ribeira Velha, o que pressupõe que haja uma nova, que pode ser o outro nome dado à levada da rua dos Moinhos; e nas Gramas - Lugar da Ribeirinha -, conhecem-na por ribeira das Gramas. De água permanente, é a terceira ribeira da Cidade. Nasce nas Lombadas, atravessa as Gramas de Cima e de Baixo, passa pelo centro da freguesia e cai no mar na Regueira. Com as ribeiras do Salto e do Rosário, que também nascem nas Lombadas, mas que se juntam a meio do percurso, forma uma segunda sub-bacia hidrográfica da Bacia Hidrográfica da Ribeira Grande. Esta última ribeira, termina nas Prainhas, secret spot de surfistas que (mercê de um excelente fundo rochoso) ali encontram ondas super boas. Águas que alimentavam uma levada idêntica à da Condessa, no entanto, enquanto a da Condessa atingiu 2500 metros de extensão, a da Ribeirinha atingiu 900 metros; enquanto a primeira chegou a ter catorze moinhos, a segunda, apenas três. Eram (porém) os três melhores da Ribeirinha. Águas que abasteciam (também) as levadas de muito menor dimensão (e individuais) dos moinhos de ribeira das Gramas à Rocha. E forneciam a água (de Maio - Junho a Setembro - Outubro) a quatro (extensos) canais de onde brotavam os regos que molhavam campos e quintas até à margem nascente da ribeira Grande. Nos seus tempos áureos, vistos do alto, estes quatro canais e regos, teriam o aspecto de uma gigantesca teia. Ao seu nível, essa fabulosa rede não ficará atrás de outras mais obras criadas pela mão do Homem, entre outras, a janela manuelina, a fachada barroca da ermida do Espírito Santo, o fontenário quinhentista abraçado (mas – caso raro -, não destruído) pela lava em 1563. Ou de obras criadas pela acção da natureza, entre outras, o Pico Arde e Vermelho (maravilhas da natureza a serem sistematicamente aniquiladas). Essa rede de canais, de regos e de levadas (graças à condição única geomorfológica do Graben da Ribeira Grande) constituiu caso único nesta Ilha e nas restantes oito dos Açores. Pode até dizer-se que sem ela, a Ribeira Grande não teria sido o que foi. Essa raríssima jóia deve merecer a nossa (incondicional) gratidão. E reconhecimento.
A Ribeirinha surge associada à Ribeira Grande já nos primórdios do povoamento do ainda Lugar da Ribeira Grande. Foi sempre (e ainda é) uma das jóias mais preciosas e úteis da (então Vila e hoje cidade da) Ribeira Grande: dela vinha a água da rega (para a banda nascente) e por ela a Vila se ligava ao exterior (através do porto de Santa Iria, hoje arruinado e abandonado pela Região). Nos seus tempos de maior glória, a água daquelas ribeiras - Velha e das Gramas -, incluindo a que corre na levada dos três moinhos, moveu (das Gramas à Regueira) uns onze a doze moinhos. Hoje, não há moinhos. Quero aqui (apenas) tentar perceber a Historia possível desses moinhos.
Vamos ao início (que importa a esta narrativa) da Ribeirinha? Já havia povoadores naquela área antes de 1474, porém, o grande empurrão no desenvolvimento (dali e de toda a Ilha) é posterior a 1474. Ficou a dever-se à acção do capitão do donatário Rui Gonçalves da Câmara (que adquiriu o cargo justamente em 1474). No que se refere à Ribeirinha, importa seguir os passos do filho António Rodrigues da Câmara (que se veio juntar ao pai e a outros dois irmãos). Na área da Ribeirinha, António Câmara possuiu uma vastíssima propriedade. Partia ‘da parte do Norte com barrocas do Mar, e da parte do Noroeste, com a Ribeirinha, e da parte do Levante com os Herdeiros de Rui Vaz do Trato [outro dos primeiros povoadores da Ribeira Grande. Que chega aos Jácome Correia e aos Hintze] (…), e da parte do Sul com as cumeeiras da Serra do Bulcão [Lagoa do Fogo em 1508 antes da erupção de 1563].’
Com esse valioso património (sobretudo) fundiário, mas não só, António da Câmara instituiu em Abril de 1508 um morgadio e a Capela dos Santos Reis Magos na igreja de Nossa Senhora da Estrela (que ainda hoje lá está). De que dispunha essa propriedade? ‘(…) casas, terras, pomares, vinha, (…) engenhos, ribeira, casa e chãos, com todas suas entradas e saídas, direitos, pertenças, logradouros, servidões (…).’ E, para o caso que nos interessa: ‘uma água que se chama Ribeirinha com que mói o seu engenho de pastel.’ Um esclarecimento: serão os engenhos aqui referidos (de forma genérica) moinhos de cereais? Não. Quanto aos moinhos de cereais (que é o que aqui me interessa), só o capitão ou quem ele assim entendesse poderia tê-los. Pois, o pai de António Rodrigues da Câmara (e depois o seu irmão como novo capitão por morte do pai) gozava do monopólio dos moinhos de cereais: ‘haja para si todos os moinhos que houver em a dita Ilha de que lhe assim dou carrego e que ninguém não faça aí moinhos senão ele,’ mas (caso o desejasse) poderia haver excepções ‘ou a quem a ele prouver.’ Será que o pai - ou depois os irmãos -, lhe permitiram construir um moinho de cereal na Ribeirinha? Tanto quanto se conhece, não. Porque só o Conde podia legalmente construir (ou deixar construir) moinhos nas ribeiras, em 1819, estava a decorrer ‘uma acção de força contra António Lopes Pereira’ por haver construído um moinho na Ribeirinha (certamente de ribeira). Na perspectiva do monopolista (o Conde), não havia necessidade (nem interesse) construir moinhos na Ribeirinha, pois, os potentes moinhos da ribeira Grande davam bem conta do recado. Sabe-se (todavia) que isso aconteceu (pelo menos) numa situação dramática e excepcional. Como foi o caso da peste de 1526/7. Nessa altura, na ribeira do Salto, diz-nos Frutuoso, foi construído um moinho de cereais. O Capitão Rui Gonçalves, neto do primeiro Rui Gonçalves, na altura a residir no Cabouco, permitiu-o.
Quando terão (então) sido construídos os primeiros moinhos na Ribeirinha já com carácter permanente? A hipótese mais segura (por ora) é de terem surgido (algures) em data posterior a 1766. Porquê então? Porque a partir daquela data permitia-se aos donos de ‘águas particulares,’ que era o caso dos morgados sucessores de António Câmara, em querendo -, que as usassem para levantarem (construírem) ‘moinhos.’ Será que aproveitaram aquela lei? Tinham nascentes dentro dos seus terrenos. Não o terão feito porque dariam moinhos fracos? Pouco competitivos. Se não o fizeram então, antes de 1819, como antes se escreveu, António Lopes Pereira fez um (ilegalmente) de ribeira. Que apesar da acção do Conde movida contra ele, fruto dos novos ventos liberais que sopravam forte, pode ter continuado a existir. Onde teria construído aquele moinho? Junto à ribeira ou na levada que vai à rua dos Moinhos? Não sei. Seja qual for a resposta, pela primeira vez, aparece nos róis quaresmais desse ano a rua dos Moinhos. Por várias razões (mais indícios), suspeito que naquele ano já ali existissem dois ou três moinhos. Primeiro: diz-se rua dos moinhos e não rua do moinho. Segundo, aquela rua conduz aos actuais moinhos alimentados pela levada dos três moinhos em causa. Terceiro (e isso vem ao que me interessa): os terrenos por onde a levada passa pertenciam (quase de certeza) ao Morgadio instituído por António da Câmara em 1508. Por isso, admito a possibilidade de já ali existirem dois ou três em 1826. Em 1848, são mencionados (sem os identificar) três moinhos (aqui classificados como azenhas). Serão os três da levada? Se esses três ainda pertenciam ao sistema da levada da rua dos Moinhos, então quando surgem os primeiros moinhos alimentados directamente pela ribeira? Se por qualquer razão (sobretudo legal?) não existissem ainda moinhos de ribeira antes de 1846, quaisquer (possíveis) obstáculos legais seriam removidos pela Lei de 22 de Fevereiro daquele ano. É (precisamente) por essa altura que são construídos novos moinhos na levada da Condessa e na ribeira Grande. Livrando-se à guerrilha legal da bitola do anel da Levada da Condessa na ribeira Grande, na ribeira Velha e na das Gramas (na Ribeirinha e Gramas) constroem-se então cinco moinhos. Quatro destes cinco, pertencem à família Cabido e a Manuel Duarte Silva (este último construíra em 1852 um moinho na levada da Condessa na Mãe de Água). Ambos residem no centro da Ribeira Grande. Já então se verifica a dependência dos moinhos da ribeirinha aos da ribeira Grande. O que se explicará por várias razões: enquanto os moinhos da ribeira Grande chegaram (no seu auge) a dispor de quatro casais de mós (os da Levada da Condessa) e os da ribeira (três), os da ribeirinha/gramas apenas dois casais. Na ribeirinha, os dois melhores moinhos eram os da levada da rua dos Moinhos, sendo o mais potente o de Cima com seis metros de altura de cubo e o do Meio (o segundo) com cinco. Na ribeira Grande, o moinho do Açougue (de ribeira) tem mais de sete metros de cubo. Se os moinhos da ribeirinha, escaparam à guerra do anel, no entanto, não escaparam à obrigatoriedade de fornecer água à rega. A partir de Maio/Junho prolongando-se até Setembro (mais ou menos), a água da ribeirinha (e afins) era desviada para a rega. Não havia outro remédio senão os moleiros da ribeirinha irem moer aos moinhos da ribeira Grande.
Em 1854, recuando a um, dois ou três ou mais anos, não sei ao certo, o Livro de Registo de contribuições pagas pelos moinhos ao Município da Ribeira Grande para 1854 - 1855, regista já oito moinhos na Ribeirinha. Dos quais, três, nas Gramas. No ano seguinte, são sete (menos um). Acontecem (porém) mudanças significativas: Jacinto Fernandes Gil (futuro Visconde do Porto Formoso) tem um moinho (ou seriam 2?) com quatro casais. Que podem ser os da levada da rua dos Moinhos. Jacinto Fernandes Gil (n. 1821-3? – f. 1892 – Ponta Delgada) em 1869 foi eleito pelo Círculo Eleitoral da Ribeira Grande (leram bem) deputado nacional pelo Partido Regenerador. E em 1871 foi feito Visconde. Voltando aos moinhos, em 1856, passam de sete para doze. E confirmam-se (para além de quaisquer dúvidas) quais eram os moinhos de Fernandes Gil: os três da levada da rua dos moinhos. Um salto de vinte e quatro anos para o ‘Livro de licenças para moinhos 1880-1886.’ Que diferenças se podem aí encontrar? Em 1880 são sete moinhos. De 1880 a 1886, oscilam entre sete (1881 e 1885) e nove (1881-82-1884). Em 1880, o nome de Jacinto Fernandes Gil deixa de figurar e em seu lugar aparece o do Conde da Silvã. Quem é o conde da Silvã (n. 10.2.1800 – f. 22.9.1883)? É ‘D. João de Melo Manuel da Câmara, 13.º e último senhor do morgado da Ribeirinha, primeiro Conde da Silvã.’ Havia recebido o título ‘por decreto de 3.11.1852.’ Em 1881, o Conde é proprietário de três moinhos (dos tais). O rol de 1885, identifica-os como sendo os três da levada da rua dos moinhos: moinho de Cima, do Meio e de Baixo. Em 1886, pelo menos dois daqueles três (D. João falecera em 1880) estão no nome (como proprietário? Ou rendeiro?) de ‘Jacinto Cabral Botelho e José Pimentel Frade. Por volta do ano de 1916, as Matrizes Prediais da Estrela (onde se incluía a Ribeirinha) registam onze moinhos. Sete décadas depois, enquanto a memória oral ainda ‘lembrava’ onze, apenas dois moíam. Em 1993, a situação ainda se mantinha.
Em Março de 1968, visitando Ribeirinha, Daniel de Sá rendeu-se ao aspecto da ‘praça ao pé da igreja.’ ‘O que lá mais nos prende a atenção é o leito da ribeira. Antes, era de ruim aspecto como todos que servem de estrumeira…agora, é um verdadeiro jardim (…).’ E agora? A Junta de Freguesia dignificando (e bem) a memória daqueles moinhos abriu em 2009/2010 – no moinho da rua Direita -, o Museu do Moinho. E a ribeira a montante e a jusante desse pequeno oásis? Infelizmente, padece do mesmo mal da ribeira Grande, da Seca e da Levada da Condessa: efluentes domésticos, vacarias, etc. E exige cura idêntica. Como disse recentemente o filósofo José Gil, ‘a qualidade de vida é agora.’
PS: A lindérrima vereda marginal à ribeira trilhada diariamente pelos operários da antiga Fábrica de tecelagem, hoje intransitável, pede que a devolvam às pessoas.
Pedra da Lembrança: e a obra prometida do Porto de Santa Iria? - Cidade da Ribeira Grande (continua)