Você não é superior por escrever poemas

Contra qualquer divinação ao autor de poemas. A favor da decomposição do imaginário do poeta como senhor do próprio destino.

Quando se fala em poesia, imaginamos o arquétipo do escriba, o poeta como alguém de aura mística. Ser iluminado que nos ensinará a (re)descobrir os mistérios do mundo. De fato, a poesia tende a intensificar a beleza das coisas, mas esquecemos que ela não se restringe ao recurso específico utilizado em sua transmissão: a linguagem em versos. Podemos categorizá-la numa tríade concisa, porém útil a valor de sua história: 1) a suspensão da linguagem denotativa para uma conotativa, com auxílio de sensações imagéticas e sonoras com propósitos estéticos; 2) a representação, a sugestão ou a transformação da realidade perante ela própria através das belas artes (literatura, cinema, pintura e música); e, o autoconhecimento e o conhecimento das sutilezas da existência.

Portanto, com uma breve definição, podemos analisar não a partir desta arte, mas do papel de quem a exerce. Desde sempre a poesia teve papel importante na trajetória dos povos, desde muito antes da materialização do papel. Mas em certo período da literatura, a imagem do escritor, ainda mais o poeta, ganhou espaço na cultura popular. Tal período só poderia se dar no romantismo, onde houve a sobreposição do eu-lírico sentimental como parte substancial da literatura. Não mais falaram sobre a importância nacionalista do homem e sua pátria, da ciência, da metafísica ou da filosofia. Dessa vez, o homem perscrutou mais a própria individualidade, a subjetividade como força motriz do ato de escrever. É justo nesse momento que se formou, ou pelo menos intensificou, a imagem do poeta como um ser aquém dos homens comuns. Um erro crasso, pois isso traz a ideia, mesmo que indireta, de uma suposta superioridade literária perante as outras. As pessoas até hoje têm a crença de que a criação poética se dá com o coração, ou melhor dizendo, com a resplendência sobrenatural da inspiração. Colocam ela como pedestal e como consequência, segrega inevitavelmente quem consegue versar poemas e quem não consegue. Afinal, se há os patronos da criação que sem esforço trazem belos versos, os que não conseguem são indignos dessa brilhante arte? Outra problematização que é possível de se fazer é o acanhamento do entusiasta de poemas. Quem não tem essa romântica inspiração que recai sobre a cabeça no instante que se propõe a escrever pode se sentir inferior, como se fosse incapaz de realizar tal tarefa.

É irônico imaginar que essa romantização é também o assassinato da própria. Ora, quando se pensa em prosa, analisamos (até mesmo os leigos) a estrutura, o ritmo, o psicológico dos personagens etc. Julgamos e criticamos a forma como a história se mostra aos olhos. Para quem escreve prosa, a tendência é estudar, praticar e pensar para além da impressão imediata da obra. Ou seja, existe um processo intelectual que permeia toda a atividade do prosador. Ele passa da postura passiva de leitor comum para crítico. Por que na poesia seria diferente? Por que na prosa é sabido que o estudo e a prática intelectual com a própria obra são necessários, mas na poesia a responsabilidade é apenas do leitor que deve sentir os versos lidos? Isso não soa desrespeitoso a poesia, dado que para um, precisamos nos esforçamos para a melhoria da arte, mas já na outra, não?

É de importância urgente a desconstrução desse imaginário, porque apesar da poesia precisar de algo sutil como a delicadeza dos sentimentos, ela precisa passar pela castração do pensamento. Devemos enxergá-la como um processo inconsciente, mas que se não for lapidada conforme as regras formais do raciocínio, ela perde boa parte de sua potencialidade transformadora no ser humano. Todavia, para os mais avançados em matéria de processo de escrita, como por exemplo, as oficinas de escrita, a técnica da poesia não se restringe na pequenez da forma. A existência de um verso “ideal” passa da imaginação do escritor e culmina na flexibilidade como se enquadra no restante da estrofe ou poema como um todo. A construção da logopeia* presente, o ritmo, a ideia e a emoção. Quando se fala em composição de poemas pouco tem a haver com relação direta com os versos fixos e o esquema de rimas. A modernidade e pós-modernidade nos mostrou que a métrica fixa e as rimas são dispensáveis muitas vezes, o poema consegue ter melodia mesmo sem rimar ou ficar engessado num esquema quadrado de sílabas.

Pensar a poesia não apenas como sensibilidade estética, mas como a transformação individual de cada ser. A poesia é uma arte democrática, mas a languidez do esforço racional também é de sua essência autoritária.

* ver Abc of Literature, de Ezra Pound

Reirazinho
Enviado por Reirazinho em 20/09/2024
Reeditado em 20/09/2024
Código do texto: T8156046
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