Farroupilhas, maragatos ou chimangos?
Afinal, de onde o gaúcho, consolidado no século XX, é herdeiro, de fato? De 1835/45 ou de 1893/1923? Que tratado mais nos determinou: Poncho Verde, Pelotas ou Pedras Altas? Quais foram nossos grandes líderes: Bento Goncalves, Gaspar Silveira Martins, Júlio de Castilhos, Assis Brasil ou Borges de Medeiros? David Canabarro, Antônio Neto, Gumercindo Saraiva, Pinheiro Machado, Honório Lemes, Zeca Netto, Osvaldo Aranha ou Flores da Cunha? Quais das ditas "revoluções": a Farroupilha ou a Federalista?
O Rio Grande do Sul cultua a Revolta Farroupilha como seu mito fundante, principalmente ocorrida após as comemorações de seu centenário em 1935, organizadas por Getúlio Vargas. Por isso o 20 de Setembro e a Semana Farroupilha. Antes, o resgate do gaúcho como nosso gentílico foi definido nas reuniões dos intelectuais da Sociedade Parthenon Litterario, em Porto Alegre. O gaúcho, aquele teatino, peão sem dono, do mundo e de si, foi resgatado do pejorativo e enaltecido.
Penso que a Revolta Farroupilha, mui longe no tempo e afeita a todo tipo de interpretação, foi, por isso mesmo, ressignificada e mitificada a ponto de caber numa identidade gaúcha ficcional para o século XX, longe, todavia, do que, de fato, realmente foi. O gaúcho estabelecido no século XX passa muito longe dos farroupilhas, mas está diretamente ligado aos maragatos, pica-paus e chimangos. Foi nas revoltas de 1893 e 1923, principalmente na primeira, a gênese do gaúcho do século XX. Somos todos herdeiros do lado vencedor, o de Júlio de Castilhos. Gaspar Silveira foi derrotado e Bento Gonçalves (o de hoje) é um mito. Castilhos, sim, esse foi o grande pensador republicano e positivista do qual diretamente descendemos. Dele vieram Borges de Medeiros, Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola.
O pensamento político autoritário e positivista castilhista, que Vargas levaria para o Brasil em 1930, é o que nos define. Claro, tudo isso entraria depois em relação com o furacão ideológico desencadeado pela (essa sim, uma) Revolução Russa de 1917, a partir dos mesmos anos 30 no Brasil, com o comunismo e o socialismo. Resumidamente, eis o gaúcho XX, no seu contexto regional, nacional e mundial. A Revolução Federalista (1893), a Guerra da Degola, foi o ponto fundamental de nossa identidade no século XX, consolidada em 1923, com nova vitória dos pica-paus/chimangos contra os maragatos. O grande conflito armado foi em 1893, eis que a luta em 1923 foi breve e desigual. Contudo, não podemos esquecer que foi em Pedras Altas que a unidade política gaúcha foi selada para depois tomar o Brasil com Vargas - a República, não esqueçamos, era igualmente militar e positivista, uma ordem e progresso versão brasileira, eis que sem o amor do filósofo francês Auguste Comte.
Logo, somos, todos, chimangos. Pica-paus e chimangos. Esse apelidado pejorativo que o senador Ramiro Barcellos colocou em Borges de Medeiros no poemeto campestre Antônio Chimango, onde assinou com o pseudônimo de Amaro Juvenal. O que era o chimango? Uma ave que comia bosta! Ramiro, o dono charqueada Meridional, às margens do Jacuí, onde hoje fica Charqueadas, o tornou célebre e histórico.
Mais do que farroupilhas, chimangos e castilhistas, com uma pitada, claro, de maragatos, pois algo do vencido sempre fica no vencedor.