DESUMANIZAÇÃO EM TEMPO INTEGRAL

Primeiramente, este ensaio é parte de uma opinião pessoal, um desabafo de um profissional da educação, um observador ativo no “chão de sala de aula” com anos de experiência na rede pública de ensino básico, mais que isso, um pai de aluno matriculado em uma escola de educação integral na rede pública estadual de São Paulo. Não se trata de um pressuposto “tirada do nada”, mas de uma leitura minuciosa da sua vivência educativa, um alerta aos que não percebem ( ou fingem não perceber) a degradante empáfia de governos, gestores e políticos que internalizam, na mente de pessoas desprovidas de senso crítico e social, a banalização da educação, por meio da exaltação de um modelo que, na prática, não se cumpre de forma devidamente técnica, efetiva, eficaz e, pior de tudo, é desumana.

A ideia de Educação Integral no Brasil já existe há muito tempo, a exemplo, podemos mencionar o Manifesto dos Pioneiros, de 1932, cuja participação contava com grandes intelectuais brasileiros – tais como Cecília Meireles, Fernando de Azevedo, Roquette Pinto, Júlio de Mesquita Filho, entre outros grandes nomes – nesse documento, já havia uma crítica direcionada à escola tradicional, fixada a uma concepção burguesa, deixando o indivíduo em autonomia isolada e estéril, fazendo-se, assim, a necessidade de uma reconstrução educacional nacional.

Quase um século depois, incrivelmente, o Manifesto de 32 ainda se faz presente em nossa realidade. Certamente, todos anseiam por mudanças na Educação, e claro, mudanças para melhor. Dito isso, vemos modelos influenciadores que norteiam uma concepção de educação integral no Brasil são, de certa forma, “inspirados” em escolas européias e estadunidenses, porém a Educação Integral, ofertada como a “grande oportunidade” de formação, passa um pouco distante desses moldes imaginativos, que prezam pela autonomia, pelo desenvolvimento físico-intelectual, emocional e cultural dos nossos alunos.

De modo honesto, é preciso dizer que em sua essência, uma escola de tempo integral não deve ser apenas um mero aumento de carga horária (como se observa, em muitos casos), mas uma oportunidade ímpar de aprendizagem e desenvolvimento em diversas áreas, contemplando setores como cultura, esporte e tecnologias, garantindo a prática educativa e a formação cidadã de seus estudantes.

O fato é que o discurso fica muito bonito no papel (ou na campanha eleitoral), por esse motivo, quase como um mantra, todo político comunga com ele. “Em meu governo, o número de escolas em tempo integral será triplicado”, dizem eles. Verdade seja dita, quanto mais distante da realidade for o político gestor, maior será a promessa/aposta no modelo, entretanto, claro, não aos moldes do formato europeu (ou norte-americano) de educação em tempo integral, imaginado por muitos, mas no velho e já batido tapa-buraco improvisado, exponencialmente difundido em escolas públicas Brasil afora, com estruturas improvisadas, precárias e com baixíssimo potencial de cumprir o que realmente prometem.

Puxando o debate para o âmago da discussão: Estariam as escolas tradicionais ultrapassadas? Seria o momento de mudança? Penso que a resposta seja muito óbvia (sim), porém, caro(a) leitor(a), numa escola de meio período já é quase que uma “tortura” para todos (docentes e alunos), imaginemos o que seja passar, então, de 9 a 10h praticamente em cárcere; numa sala de aula fria e sufocante? Você tem alguma ideia do quão desconfortável são os assentos e carteiras de uma escola pública por um período de 9 a 10h? Responda-me com sinceridade: você se submeteria a passar por isso? Muitas vezes, na falta de professores, os alunos são obrigados a ficar sem ritmo de ensino curricular, alguns substitutos são improvisados em aulas nas quais não dominam determinados conteúdos, resultando em alunos mais desmotivados e improdutivos.

Calma, que essa ainda não é a pior parte… Pois um professor substituto até pode ser uma boa alternativa, caso ele consiga atingir uma boa dinâmica na sala, mas imaginem, agora, esse cenário (cansativo, exaustivo e desmotivador), sendo “turbinado” com a obrigação de "mergulhar" em atividades digitais... Isso mesmo… Alguém de “mente genial”, na Seduc SP, por exemplo, resolveu apostar alto na “boa ideia” de se jogar um tablet (ou um notebook da Positivo) na mão de um adolescente, acreditando, realmente, que ele irá “achar o máximo” passar horas, dias, meses de sua vida, realizando tarefas digitais, inclusive, leitura de livros olhando para uma tela, como se não fosse o suficiente o tempo em que ele já fica, naturalemte, em seu cotidiano, fora da escola.

Não se trata de ser contrário à escola de tempo integral, não mesmo, tampouco de ser crítico à escola tradicional, ou às tecnologias (que também devem ser utilizadas na escola), apenas se fazer preciso aplicar o princípio da razoabilidade, visto que não há a mínima possível em apoiar um projeto cuja única percepção, aparente, é um alongamento da carga horária em um ambiente mal aproveitado, algo muito distante do que podemos chamar de “prazer pelo saber”. Definitivamente, estamos fazendo um péssimo percurso no que se refere à material digital, mais voltado para metas de acesso do que para aprendizagem, ou seja, com altíssimo índice de desmotivação e desitimulo à aprendizagem, quase que no limiar de um crime contra a própria Educação.

Não seria falso afirmar que algumas escolas atuam como uma espécie de depósito humano, um local onde pais "depositam" filhos apenas por um mero “momento de liberdade”. Obviamente o ambiente escolar deveria ir muito além desse propósito. Não é preciso ser muito esperto para entender que o mundo está em evolução, que estamos a ser quase que “engolidos” pelas constantes transformações tecnológicas e “mudar é preciso”. As mudanças já se fazem presentes e muito do que compartilhamos como entendimento de mundo, ou “comportamento humano”, passa por transformações significativas (em diversos setores do mercado), porém ainda é tempo de acreditar, piamente, que a Escola não pode perder essa luta e se deixar ser extinta por uma IA, pelo menos em sua essência, porque enquanto ainda houver um mínimo fragmento de humanidade entre nós, ainda será preciso viver em sociedade, compartilhar experiências e vivências, ou seja, contato, corpo, sentidos e sentimentos, elementos que apenas a instituição Escola (seja ela integral, ou não) poderá oferecer às nossas crianças e jovens. Mais que um prédio frio e amplo, a escola é um espaço para o entendimento de vida em sociedade. Assim ela foi ontem, ainda é (com toda a sua precariedade) hoje, e deverá, para o bem da nossa própria existência, ser amanhã.

Já que escola é uma instituição “sui generis” em nossas vidas, porque não a entendemos como ela de fato deveria ser? Por que não nos “desintoxicamos” de opiniões "dogmáticas" e nos ocupamos apenas com a real necessidade de salvá-la? Desprovendo-nos, inclusive, de máscaras ideológicas? Até quando nutrir meros discursos rasos e superficiais acerca do que seja, de fato, a Arte de educar? Por que não entender, em todo esse processo, a importância do profissional de educação, dar ouvidos a quem, de fato, vive e sente a desfragmentação do sistema na própria pele?

Já que um estudante precisa passar tantas horas do dia numa escola, o que será ofertado lá? Auditórios (com proposta de oficinas de teatro, música, dança)? Quadras poliesportivas em bom estado (com opções desportivas diversificadas)? Possibilitará, ao seu aluno, uma perspectiva em sua formação como atletas, artistas, músicos, poetas, escritores, técnicos, etc? Há uma real oferta (e estrutura) de conhecimento em tecnologia /TI /Robótica, compatível com quem precise passar tanto tempo de sua vida em um único local? Será que parte desse tempo é aproveitada em uma real formação humana e construtiva?

Independentemente, do que todos possam imaginar, esses tópicos deveriam estabelecer o verdadeiro modelo de Escola Integral aplicado em nosso país, porque em países com alto índice de desenvolvimento educacional, é assim que funciona.

É com angústia que muitos professores são observadores da trágica derrocada da escola (todas elas), entretanto junto a essa percepção, vem um lamentável sentimento de que toda uma forma de viver em sociedade também sucumbirá. A pergunta que fica é: estamos, realmente, preparados para as consequências de tudo isso? Faz-se mister que todos entendam, que os modelos de escolas atuais estão em decadência e, honestamente, existem motivos diversos para entender: o fato de serem de tempo integral (ou não), cívico militar (ou não), é uma questão muito vazia, porque os principais graves problemas das Escolas, e dos modelos de educação, passam muito distante de serem tão simples.

Modelos de séculos passados (academicistas e metódicos) estão ultrapassados, ou não convém (em boa parte dos casos) ao atual momento, mas acreditem, esse ainda não é o nosso maior problema. Chegamos a um ponto extremo, no qual o foco é salvar, literalmente, a entidade Escola (da degola tecnológica e do descaso social) para que possamos salvar o pouco do que ainda nos restará de humanidade em sociedade, e acreditem, não estou exagerando.

Ademais, as tecnologias fazem, e certamente farão melhor, muito do que se “perde tempo” aprendendo a fazer em escolas tradicionais, mas há algo que elas jamais farão: serão tão humanas como nós, ou seja, vivemos um “divisor de águas”, não mencionarei filósofos, fontes ou estudos, a questão aqui não é ser tecnicista ou acadêmico, mas é inegável que, há milênios de anos, a humanidade sobreviveu a vários desafios e ameaças porque ela aprendeu a viver em grupo, promover “reuniões” e compartilhar “ideias” entre si. Sim meus caros, a Escola está entre nós há muito mais tempo do que possamos imaginar, diferente, mas igual em sua essência.

Desumaniza-se cada vez mais, esse distanciamento humano é parte, claramente, de uma ameaça à nossa própria existência. Raramente se vê uma família fazendo sua refeição reunida, em torno de uma mesa, ou mesmo quando todos compartilham um programa de TV, ou filme, aparentemente juntos, mas cada um com seu respectivo dispositivo eletrônico em mãos, isolado em seu “mundinho virtual”. Paulatinamente, a sociedade se torna “chata”, mimada, egocêntrica, cada um só quer ver a “sua verdade”, tudo é um flash, tudo é indiferente, a imbecilidade passa a ocupar o vazio deixado pela intelectualidade, nisso, a vida segue como se problemas complexos fossem resolvidos em um post de 30 segundos.

Chegamos à reflexão final: A Escola vai muito além de metas, gráficos, resultados e dados… Vai além de modelos, gestores e governos “salvadores da pátria”. É um ambiente “sagrado”, de humanidade em sua própria fundação, de ternura em sua prática pedagógica, de orgulho em sua história e, por essa razão, funde-se no que se concebe como sociedade, quase que como carne e unha, os problemas sociais podem ser entendidos como os problemas da escola (virce-versa), sem esse sóbrio entendimento, tudo é vago, tudo é raso, um mero pixel, apagado em uma grande tela.

Edilson Neres
Enviado por Edilson Neres em 09/09/2024
Reeditado em 22/09/2024
Código do texto: T8147539
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