A Existência é uma Sinfonia

A Existência é uma Sinfonia

Ludwick Bolach

06/05/2017

Introdução

A existência é uma sinfonia. Estranho, esquisito isso ler.

Em sua partitura, o ritmo marcado pela rotina, ora produz som, ora não.

A melodia é marcada pela ação, em intervalos diferentes são realizadas ações diferentes.

A harmonia desperta ou apazigua sentimentos, nem todo som é agradável, algumas canções são tediosas, porém basta soar uma nota a mais ou a menos para tudo mudar.

A composição é e vem da cultura, sua música dela sai.

O timbre mostra as individualidades, cada qual com sua forma de produzir som.

A intensidade depende de quanto poder tem cada instrumento, o choro de uma criança sofrendo, mesmo que quase inaudível, soa forte como o trovão.

A altura mostra o semelhante e o diferente, de instrumentos diferentes surgem semelhantes vibrações.

A densidade depende de cada lugar, no centro de uma cidade movimentada há muitos instrumentos tocados simultaneamente.

A duração é a importância dada a cada som, há pequenos suspiros que duram uma vida inteira enquanto grandes barulhos nem são percebidos.

Partitura

Quase todos têm certeza de sua maestria nesta canção: grande erro. Quando muito, temos a certeza de sermos músicos. Tocamos nossa música marcada pela rotina. A partitura e o maestro nós mal sabemos quem ou o que são, nem mesmo se existem.

Quando percebemos que fazemos música, somos a platéia, afinal percebemos ou não os ritmos, notando ou não a música. Tem horas que a mais bela canção atrapalha nossos pensamentos, soando como um ruído. Sem platéia, não pode haver música, alegre ou não, que invoque sentimentos diversos.

Quando fazemos a música, somos os músicos. Mas em uma orquestra, até o músico que silencia contribui com a execução da partitura, não deixando de ser membro da platéia ao ser músico. Não há músico que não seja membro da platéia, nem membro da platéia que não seja músico.

Mesmo quando aquele que deveria silenciar-se toca, faz ele com que aquela execução da partitura seja única. Nós que queremos que a partitura seja seguida vemos nisso um erro, mas cabe a nós a escrita da partitura da existência? Pode tanto ser um erro quanto ser o que deixa a música por completo em harmonia. Pois ou comandamos, mesmo que em parte, a partitura ou não a comandamos.

E o que chamamos rotineiramente de música, pessoas tocando seus instrumentos seguindo ou não uma pauta, não é uma canção em separado da existência, onde toda música acontece.

Dela é pertencente. Ao menos em sua definição e elementos, pois deve ter instrumentos, músicos, ritmo, melodia, harmonia... no que enquadramos como música, esta ação de tocar e produzir sons harmoniosos, a existência não é em nada diferente, ao contrário, ela é uma canção pela própria definição da música.

E a partitura, em ambas não sabemos como ou por que são criadas. Não há música sem imagem, pois sempre que vemos está presente algum som.

E uma imagem nunca é vista duas vezes, então não há mesma imagem. Somente o fato de permanecer olhando uma imagem já é o bastante para ela se modificar. Modifica-se em nós um sentido de olhar uma imagem para olhar a mesma imagem, mudando o significado inicial. Assim, não há imagem sem música, nem imagem sem tato ou qualquer outro dos sentidos. E o cego, este se encontra como aquele que ouve uma gravação de música, enxerga o que pode e não o que estava presente no momento da gravação.

Quando a orquestra prepara-se para tocar há diversas imagens. E esta ação conjunta, o musical e a imagem, despertam sensações e anseios, ao passo que podemos dizer que nós permitimos ou não que despertassem. Mas como já dito, não há membro da platéia que não seja músico. Até esta permissão faz parte da partitura, da qual nem ela nem seu maestro nós conhecemos.

Quantos aos sentimentos gerados ao escutarmos uma canção, estes acontecem juntamente com os outros sentidos e com a interpretação que damos a cada parte desta música, há para a mesma canção pessoas que choram enquanto outras riem, ódio enquanto outras amam, isto vêm da experiência e cultura de cada indivíduo. Da mesma forma que o ruído é para algumas pessoas música e vice-versa. Quanto ao estilo, cada qual tem o seu e vive de acordo com ele, inclusive alternando entre vários se assim desejar.

Alguns mais agitados enquanto outros mais lentos, uns quase saindo da linha do compreensível, outros totalmente aleatórios. Podemos dizer que a existência não tem a mesma harmonia que a música como conhecemos convencionalmente. Porém, não se alcança exatidão total dentro de música alguma, apenas aproxima-se ao Maximo do que se deseja. E apesar de falarmos que algumas situações de nossa existência são caóticas, há nelas, na mesma medida que há na música convencional, harmonia. Mesmo vendo um flautista desafinando, conseguimos perceber uma harmonia no conjunto restante.

E sucessivos erros conseguem ser harmoniosos entre si, assim como não sabemos o motivo da própria harmonia em uniões de notas diferentes. Assim, da harmonia que a música tem a existência esta repleta. A música ensina e faz recordar. Pensamos que é apenas para nossa satisfação, mas a não ser que se separe em músicas de ensino e músicas para satisfação, então teríamos que dizer que a primeira nem música é, pois todas as músicas parecem nos ensinar algo, no mínimo como reproduzi-la. (...) apesar de haver quem não concorde, que, mesmo sem emitir som algum, nós falamos enquanto intimamente pensamos as próprias palavras em nossa mente; assim, com as palavras nada mais fazemos do que chamar a atenção; entretanto, a memória, a que as palavras aderem, em as agitando, faz com que venham à mente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais.1

As imagens não são semelhantes às palavras, assim como os outros sentidos? Quando vemos algo, damos seu significado. Por estes motivos que a existência em nada difere da música, ao menos como definimos o que é música. Isto literalmente, não como metáfora.

Procriar

Muito som, agudos, graves, canção de sentimentos a flor da pele. Após um breve período de aparente silêncio acontece. Aparente silêncio, pois dentro dela o som da vida continua. Em direção a formação humana segue não um, milhares. Porém, quase sempre apenas a um é concedido o fim de seu cantar.

A esse, o silêncio de seu caminhar é concedido, ao menos momentaneamente. Os outros morrem do lado externo tentando entrar, uma última canção agonizante é cantada, pouco a pouco os instrumentos se calam e o último ecoa a nota final seguida da morte. Justamente a morte deles permitiu o surgimento da vida.

Aquele que entrou volta a cantar e os dois instrumentos agora se tornam um. Instrumento que toca quase imperceptivelmente. Cresce e seu som é percebido, aumenta o seu poder, aumenta a intensidade, mudou-se o timbre, começa a compor. Quando chega o fim dos meses de espera, tudo está preparado para o ápice da canção e como se fosse o maestro dando o sinal, a mão desperta o choro em harmonia inesquecível.

Aos poucos, deles se aproximam outros sons, tornando o ambiente um concerto completo. O tempo passa, o timbre muda diversas vezes, assim como muitas das coisas que o compõe. E cada parta de sua vida é uma parte da partitura, ora alegre, ora triste, ora surpreso, ora tedioso. Em uma canção gera outro instrumento, deixando assim a canção continuar, nunca igual, porém semelhante.

Isso se no meio da canção não houver uma parte triste que interrompa e o silencie. E após muito cantar, silencia-se.

Mas a canção não acabou, somente seu timbre mudou, pois assim como era dono de seus sons, participava de uma canção maior.

E esta canção não se sabe qual o maestro, qual a partitura, tampouco se há maestro e partitura. Bem podem os instrumentos tocando e conduzindo por conta sua música. E dele sai som, pois sua carne agora hospeda milhares de outros insetos produzindo música, ou mesmo com o toque do fogo fez sua carne estalar.

Nota Final

Dizer que a existência é uma música é dizer o que a música é.

Não há arte alguma cuja existência não demonstre e dependa de todos os sentimentos humanos.

Quando paramos para observar uma música, estamos observando o que somos.

Aceitamos na música uma harmonia baseada na partitura e na execução, pelos músicos e maestro. Porém, em nossa existência, quem é maestro ou qual é a partitura a ser seguida não nos é revelado, tampouco sabemos se estes existem.

“A utilidade da música é conhecida. Serve para animar soldados nas marchas e nas batalhas, para fundo de filmes cinematográficos, animação de festas sociais, Ambientação de bares e restaurantes e alienação do paciente enquanto o dentista lhe trata dos dentes.”

(Hipertrofias artísticas. 1967).2

Não sabemos por que nem como cantamos. No fundo, nem o que a música é.

“Não estou cantando só, Cantamos todos nós, Mas cada um nasceu, Com a sua voz(...) Pra dizer, pra falar De forma diferente O que todo mundo sente.” 3

Porém, todos têm certeza de cantar.

1 Santo Agostinhos, De Magistro. Tradução de Angelo Ricci, Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1973.

2 Millôr Fernandes, O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr. L&PM , 2007.

3 Ave Maria da Rua, Composição de Raul Seixas e Paulo coelho. 1976.

Referências:

-Ave Maria da Rua, Composição de Raul Seixas e Paulo coelho. 1976.

-Santo Agostinhos, De Magistro. Tradução de Angelo Ricci, Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1973.

-Millôr Fernandes, O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr. L&PM , 2007.

-Berkeley, George. Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano, tradução de Antônio Sérgio, Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1973.