A Levada – XV

A Levada – XV

Os terramotos e os vulcões do Verão de 1563 e a cheia do Inverno puseram a Ribeira Grande de rastos. Havendo os moinhos da ribeira Grande sido destruídos ou danificados a ponto de não poderem moer, onde foi a Vila moer? À Ribeirinha? Haveria moinhos na Ribeirinha? Se já houvesse, era preciso que não tivessem sido danificados. Não havendo moinhos, podiam ter feito um ou outro provisório na Ribeirinha? Ou na ribeira do Salto, como já haviam feito por alturas da peste de 1526/7? Ou adaptado um moinho de pastel? Ou engenho de açúcar? Dificilmente (ou nunca) o saberemos. Fosse como fosse, nunca passaria de uma solução de recurso. Mesmo que as águas da ribeirinha e da ribeira do Salto fossem capazes de fazer mover os moinhos do capitão, aquela área da Ribeirinha não lhe pertencia. Seria (pois) um amanho provisório, nunca uma solução duradoura. Era (pois) urgente encontrar uma saída para o abastecimento da Vila da Ribeira Grande e da Cidade de Ponta Delgada. Ponta Delgada era (conforme nos dizem os documentos e os cronistas) o destino mais cobiçado das moendas dos moinhos do Capitão. Aquele que lhe trazia mais lucros. Nesse sentido, tornava-se inadiável encontrar uma solução à altura do problema. Em 1565, chega à Ilha o dono dos cinco moinhos arrasados da ribeira Grande. Confrontado com a alteração radical da ribeira (e das suas margens), D. Manuel da Câmara optou por construir uma levada fora do alcance da ribeira Grande. Construída de raiz ou adaptando regos de água que já existissem? Dos que regavam as quintas? Onde foram buscar a técnica? Após o Verão de 1563, as toneladas e toneladas de ‘cinzeiro e de pedra pomes’ que cobriram por completo telhados, ruas, terras e ribeiras da Ribeira Grande - e as da Ilha inteira -, (leia-se Gaspar Frutuoso) foram (também) limpas graças à água desviada das ribeiras e das levadas. O capitão Manuel da Câmara pediu (para terras suas) em várias ocasiões ao seu amigo Manuel Vieira. Ora, Vieira foi um dos que mais recorreu a essa técnica. Técnica (diga-se) a que já se recorrera quatro décadas antes quando se rasgou o caminho de acesso ao porto de Santa Iria. A ideia (inicial) desse tipo de levada, virá, provavelmente, das levadas madeirenses. A origem madeirense do capitão Manuel da Câmara (a partir de 1473/4 chegaram à Ribeira Grande vindos da Ilha da Madeira, Rui Gonçalves – o novo capitão da Ilha, os seus irmãos Pedro e António, acompanhados por familiares e criadagem) sustenta (e bem) essa suspeita. A escolha do local para a levada, construída a uma distância (tida como) segura da ribeira, de modo a protegê-la e aos moinhos das cheias cíclicas, terá obedecido (estou em crer) aos s critérios que lanço (sempre) como hipótese: a banda oriental da Ribeira Grande era ainda pouco povoada, o terreno por onde passaria, constituído por terra arável, areias, tufos e pouca ou nenhuma pedra, seria fácil de rasgar. Talvez até parte daquele espaço pertencesse ao próprio capitão. A solução provou ser acertada, pois, como se tem verificado ao longo de mais de quatro séculos, tem protegido os seus moinhos. Quando se começou a construir a levada? Acredito que, dada a urgência da sua construção, talvez tenha começado ainda em 1564, ano em que os moinhos (junto à ribeira) foram destruídos. O capitão (desejoso de estancar as suas perdas) poderia ter já enviado de Lisboa instruções nesse sentido. Ou (dado o carácter radical da sua localização) teria sido começada no ano seguinte, já com o capitão na Ilha. Entre 1564/65 e 1573, – ano em que o capitão regressa a Lisboa, poderia já haver mais do que um moinho (ou mesmo todos os iniciais) na nova levada. Muito embora possam ser boas hipóteses, e até terem correspondido ao que sucedeu, a primeira prova documental da existência de moinhos (e indirectamente da nova levada) data de 1578. A levada, cuja extensão actual rondar os 2.500 metros de comprimento por cerca de 2 metros de largura, criou riqueza a 15 moinhos, a uma fábrica setecentista de ‘panos de lã e (…) de meias de tear,’ a uma fábrica de fibra de espadana (já no século XX), a uma de licores, a dúzias de quintas e de pomares. Havia um agueiro que percorria regularmente as suas margens (servidões) – hoje (em parte) usurpadas pelas casas que a confrontam. Limpava o que pudesse ‘entupir’ os cubos e os caboucos dos moinhos, ainda não se ligava à matéria microbiológica e distribuía a água pelas quintas (fonte de rendimento).

Uma pitada de História da levada para não asneirar (assim tanto) no futuro? O livro de actas de 1578, o primeiro sobrevivente depois do de 1555, o mais antigo dos Açores, dá-nos conta da existência de sete moinhos na levada (todos na levada?). Frutuoso, provavelmente na década seguinte, contabiliza menos um: ‘leva dentro de si seis moinhos.’ E ao escrever ‘leva dentro de si,’ em vez de (como se referira aos destruídos) ao longo da ribeira, está a atestar a existência de uma levada? Sim. Apesar de serem seis os moinhos de Frutuoso, eram ‘cada um de duas pedras,’ e os ‘melhores e que melhor moem que todos os da ilha e Portugal (…).’ Voltando aos sete moinhos das actas de 1578: moeriam só cereais? Estariam todos situados na nova levada? Dois destes sete moinhos eram identificados pelo topónimo do local onde se encontravam: ‘Praia e rua do Alegrete.’ O primeiro deles (moinho da Praia) remete (claramente) para a nova levada. Dois outros moinhos, identificam-se em relação aos dois primeiros: ‘Novo e o de Cima.’ Onde ficaria o moinho de Cima? Já seria o moinho da Palha? Os três restantes, referem-se a nomes de pessoas: ‘Francisco Ferreira, Miguel Fernandes e Simão Gonçalves.’ Quem seriam eles? Não sei. Onde se situaria a foz da nova levada? Pela orografia da costa (baixa em contraste com as barrocas do lado Nascente), pela proximidade à foz da ribeira e (não menos importante) por ficar a caminho dos importantes Lugares a Poente e a Sul da Ilha, o meu palpite (posso estar enganado, claro) é que ficaria (mais ou menos) onde hoje fica. E a ‘mão’ (represa) desses (6 ou 7) moinhos quinhentistas? Aqui a resposta não é tão simples. Olhando para o que hoje se vê, mas descontando (na medida do que se conhece) as várias alterações sofridas (algumas bem drásticas) no leito e margens da ribeira (conforme nos autorizam os relatos das cheias de 1563/4, 1667, 1848, 1895 e 1919), há a possibilidade (simplesmente uma hipótese) de uma primeira ‘mão’ (ou das primeiras) ter ficado algures em espaço à volta do poço da Mãe (até pela origem possível do nome) ou ainda em local um pouco mais abaixo. Ou seja, muito abaixo da Mão e do Anel actuais. Já em 1645/6, o florentino Frei Diogo das Chagas, que andou pela Ribeira Grande, situa a levada mais acima do Poço da Mãe: ‘Pelo meio da outra parte da Vila que fica para a parte Poente corre a levada dos moinhos que se toma ao alto e princípio do cerro, que vai para o sertão da mesma ribeira e outras águas, que trazido por seus vales por terras e cerrados entra na vila por esta parte, e fendendo pelo meio se vai meter ao mar, na qual estão seis moinhos.’ Para Frei Agostinho de Monte Alverne (‘fuseiro’ que por aquela mesma altura, andaria por ali) a levada ficava (muito normalmente) por ali ‘onde hoje se vêem [os moinhos].’ Era tão normal estar ali, que em 1699 serviu (como ainda hoje serve) de divisão entre as freguesias de Nossa Senhora da Conceição e a de Nossa Senhora da Estrela: ‘(…) partindo da levada dos moinhos para a parte do poente (…).’ Nessa altura (voltando a Frei Diogo das Chagas e segundo ele) havia seis moinhos na levada. Em inícios do século XVIII, o conde constrói (muita certamente com água da levada) a sua fábrica de panos. Terá a construção obrigado a reajustes a montante na levada? Não sei. No que toca a moinhos, o já então Conde era ainda rei e senhor, porém, a Carta Régia de 15 Setembro de 1766, dirigida a D. Antão de Almada (Capitão e General das Ilhas) iria (começar a) abalar a sua posição dominante. Iria doravante permitir aos donos de ‘águas particulares’ – em querendo -, que as usassem para levantarem (construírem) ‘moinhos.’ O Conde vai (então) ter de defender (com tudo o que está ao seu alcance) o que lhe resta: a levada. São muitas as demandas.

Em 1769, uma acta da vereação da Ribeira Grande identifica (como moinhos da Vila, acho que se refere aos da levada) não os

seis que Diogo Chaga indicara (sem os identificar) mas cinco (cremos ser ainda todos do Conde). O Conde (apesar das violações aos seus direitos) vai-se aguentando (geralmente bem) até 1821. Em Abril de 1819 tem processos a decorrer (desde quando?) contra prevaricadores da Ribeirinha a Vila Franca ‘por haverem construído Moinhos nas Ribeiras públicas desta Ilha dos quais o Excelentíssimo Suplicante tem Mercê Régia para só edificar com a exclusão de toda e qualquer pessoa. A situação tendia a piorar, pois, sendo a mercê que lhe dava esse direito extinta com a morte do Conde ocorrida em Janeiro de 1820, o novo conde – uma criança de dois anos -, em Outubro de 1820 ainda não recebera nova mercê. Do que resultava ‘então cada um podia ter os seus moinhos visto não haver nova mercê’ O seu representante na Ilha, talvez por circularem boatos nesse sentido, receava mudanças: ‘Queira Deis com este novo Governo [A Revolução Liberal do Porto. O levante militar começou na cidade do Porto, em 24 de Agosto de 1820] não haja alguma implicância com esta casa de Sua Excelência.’ O que se veio a concretizar em 1821. Nesse preciso ano, devido à enorme pressão de quem queria fazer moinhos, são abolidos os Direitos Banais: mais um rombo no monopólio multissecular (da vala) do Conde. Três séculos e meio depois de os moinhos terem (por precaução) sido mudados para a levada, talvez ainda nessa mesma década de vinte, são construídos novamente moinhos nas margens da ribeira Grande. O Conde dispunha ainda de uma cartada importante: dele dependia ir mais ou menos água para a ribeira. Daí as muitas guerras do Anel (bitola de água à entrada da levada) que se seguirão. Escapando de forma ‘esperta’ às disputas, talvez ainda na década de vinte, um deles, pelo menos, particulares levantam dois moinhos acima da mão da levada do Conde. Trata-se dos moinhos da Longaia. ‘O lugarejo da Longaia’ hoje totalmente desaparecido, distava ‘1/3 de légua da Vila da Ribeira Grande.’ Entre a primeira e a segunda décadas do século XIX, teria uma população de ‘36 almas’ vivendo ‘em 9 fogos.’

Sem desistir, na sua tentativa (que viria a provar ser inglória) de impedir o aparecimento de novos moinhos, o Conde continuará a recorrer, por mais de duas décadas, a expedientes legais e a outros estratagemas. Mexer na bitola de entrada da água (no Anel) de modo a ir menos água para a ribeira, foi o expediente que acabaria por ser contrariado (sobretudo pela Câmara). Os proprietários dos novos moinhos da ribeira e as lavadeiras que usam a água da ribeira, queixam-se da ‘falta de água (…) por ocasião da usurpação que dela fazem os rendeiros dos moinhos do Conde.’ Tomando partido pelos queixosos, a Câmara manda ‘construir um ladrilho por debaixo do anel estabelecido na levada do referido Conde (…).’ É a guerra total do Anel. O Conde reage de pronto, o Juiz de Direito, dando-lhe razão, manda repor a bitola do anel. A Câmara contra-ataca (sempre). Uma outra forma de o Conde tentar vencer a concorrência dos moinhos da ribeira, foi o de ele próprio construir um moinho na ribeira (ou teria apenas recuperado um que fora destruído em 1563/4?). O moinho do Açougue (com os seus soberbos cubos e situado junto ao coração da terra) acabou por ser o melhor moinho da ribeira. Mesmo assim, o Conde iria perder finalmente a guerra com a Lei de 22 de Fevereiro de 1846. Que declarava (mais uma vez) abolidos todos os Direitos Banais. Certamente vindo da anterior (ou mesmo de décadas anteriores), no entanto, tanto quanto já pude apurar, é na década de cinquenta que encontro a prova segura da perda do controle do Conde sobre a levada. O livro de registo de contribuições pagas pelos moinhos ao Município da Ribeira Grande para o ano 1854-1854, regista vinte e um os moinhos da água da ribeira da Ribeira Grande, tanto a que entrava na levada da Condessa como a da ribeira, que pagavam contribuição. Sem conseguir uma identificação a cem por cento segura, ainda assim, confirmam-se dois moinhos na Longaia, portanto, localizados antes da entrada da água na levada da Condessa, cinco na Mãe de Água, entre estes, dois situados na levada da Condessa (os primeiros dois a montante). Uns atrás dos outros são construídos moinhos particulares na própria levada do Conde. Em 1852, Manuel Pedro de Melo e Silva está a construir um moinho (o do Félix). Em 1854, já havia o primeiro da levada, o da rua do Outeiro dos Lagos, o da Praça. Em 1855, a 19 de Março, ‘Jacinto Inácio Ferreira – Matriz – Pedindo licença para edificar 3 moinhos de água na casa que possui na rua do Vale desta vila – Diferido.’ Que já existia em 1854. Em Maio de 1855, ‘Manuel da Silva Peixoto e António Pacheco Alfinete – Conceição – pedindo licença para moerem seus moinhos – Diferido.’ Outro na levada da Condessa. Em 1854, ainda outro, há o moinho dos Couros.

O número de moinhos na vala da Condessa (e de mós) foi variando. Em 1880, só para a levada, existiam treze. Entre 1919 e 1935, 15: o máximo que atingiria (e de mós). Porém, entre 1966 e 1971, perderia à volta de 35% dos moinhos. Em 1986, ainda resistiam nove, em 1997, cinco. Em 2014, morre o moleiro a mais inovador: Carlos Silva (conhecido por Carlinhos Correia). O seu moinho do Outeiro, no entanto, não deixou de moer. Armindo Silva, Jantarinho, aparentado com Carlos Silva, ainda mói (um ou dois dias por semana). Armindo Vitória, tal como os Silva, descendente de uma antiga estirpe de moleiros, tendo deixado de moer em 2018 no moinho da Praia, tem moído desde 2017 no moinho do Vale (entretanto, transformado em espaço museológico).

Como se vê, a levada (e os moinhos) teimam em não morrer. Abandonada, continua a ser uma das causas da poluição que apoquenta o Monte Verde (e a Cidade). Faz 38 anos em Novembro que percorri a levada do Anel ao Monte Verde, então testemunhei uma verdadeira catástrofe ambiental. E hoje? Mesmo sem voltar a calçar botas de cano, quero crer que a situação (ainda que não – como se sabe -, erradicada) esteja muito distante da de 1986. De quem é a levada? Dos moinhos. E de quem depende a levada? Em 1986, Óscar Vitória (pai do Armindo), disse-me que ‘Antes desse Governo Regional de agora, era a Junta Geral. Hoje não se sabe quem manda na levada, se a Direcção dos Serviços Hidráulicos da S. R. E. S, se a Câmara Municipal.’ E antes? ‘Até há pouco tempo (cerca de 20 anos, talvez menos), era a Câmara que ‘arranjava’ um homem que tomava conta das valas da Condessa – o Ti Baganha foi o último -, cobrava renda da água da rega e aferia pesos e medidas.’ Nem todos concordam com o sr. Óscar: ‘Que me lembre do que o meu pai dizia, a levada era responsabilidade de cada moinho. Contratavam um agueiro que fazia a limpeza.’

Que fazer hoje à levada? Para uns, a solução ideal seria acabar com ela: ‘tapar o anel na Longaia.’ Ou ‘desviar a sua água para a ribeira.’ Não seria piorar os problemas da ribeira Grande? Pergunto. Outros: ‘a água da levada deve ser tratada antes de chegar ao mar no Monte Verde.’ Isso já seria outra música. Outros: deveria obrigar-se algumas (poucas, felizmente) casas (renitentes) a se ligarem à rede pública de saneamento básico (ou a melhorarem as suas fossas). Acima de tudo, trate-se com a dignidade que merece aquela levada com mais de quatro séculos e meio de História partilhada entre a Ribeira Grande e Ponta Delgada. Lanço um repto: essas duas cidades, mais as duas freguesias centrais da Cidade da Ribeira Grande que a partilham, devem exigir (à autarquia e ao governo): a sua vigilância, integridade, limpeza e restauro. Se na década de sessenta (do século passado) a Câmara atribuiu o nome dos Condes à antiga canada do Moinho da Palha, por que não a classificar de Bem de Interesse Municipal (pelo menos)?

Miradouro de Santa Pachorra (com vista para a levada) – Cidade da Ribeira Grande (continua)

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 28/08/2024
Reeditado em 15/10/2024
Código do texto: T8138659
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