Resgate da ribeira Seca – XIV
Resgate da ribeira Seca – XIV
Tal como a ribeira Grande, a ribeira Seca desagua no areal do Monte Verde. Distingue-se (porém) daquela outra, por ser mais pequena, não ter caudal permanente (por isso não lhe fazem análises à qualidade das suas águas) e por pertencer a uma (espécie de) sub-bacia hidrográfica da bacia hidrográfica da Ribeira Grande. E por ter ainda (alguma) vida própria. Uma semana antes e duas depois da cheia de três de Junho último que inundou o centro da Cidade, a ribeira Seca inundou o Monte Verde com milhares de canas, toneladas de pedra-pomes, plásticos, lama e o que só o laboratório poderá identificar. Enquanto isso, a ribeira Grande corria mansa. Apesar das diferenças, ambas são vítimas de descargas ilegais provenientes de meia dúzia de agro-industriais e de um número assinalável de efluentes domésticos. Não custa (assim) perceber que, sem o seu resgate (mais o da vala dos moinhos da Condessa) não haverá resgate ambiental possível do Areal do Monte Verde. Nem se obterá qualquer melhoria (sensível) na qualidade de vida dos residentes da Cidade da Ribeira Grande. Foi (como tem sido uso) na sua foz que se realizou (de 8 a 10 de Agosto de 2024) a 10ª edição do Festival do Monte Verde. Não fora uma nova contaminação, e em Junho aquela praia teria sido palco de mais uma etapa do Nacional de Surf.
Terá sido a ribeira Seca sempre (assim tão) seca? Frutuoso que chegou à Ribeira Grande em 1565 e começou a trabalhar na escrita de as Saudades da Terra (ao que dizem os especialistas) duas décadas depois, apresenta duas versões (que apesar de aparentarem diferenças, não se excluem). Numa diz que só tem água ‘de enchente no Inverno.’ Noutra que ‘por não chegar a água que por ela desce abaixo ao mar e secar de todo no Verão, ainda que algumas vezes traga enchente no Inverno.’ Acho que se pode concluir que apesar de nem sempre chegar água à foz e a ribeira secar no verão, a segunda versão prova a existência de água naquela ribeira além da que chega nas enchentes de Inverno. Essa é a única maneira de se entender que em tempos tenha havido um moinho de água naquela ribeira. E é (também) Frutuoso quem o diz. Tendo os moradores da Vila da Ribeira Grande sido forçados a abandonar as suas casas por causa da peste de 1526/7, ‘os que se acolheram para a banda do poente fizeram [um moinho] na Ribeira Seca.’ Ora, para que um moinho de água funcione, necessita de dispor de água na medida certa: nem torrencial, que arruinaria os seus mecanismos, nem uma pinguinha, que não faria andar as suas mós. Certo?
Com a crise de 1563/4, a geografia da ribeira Seca (e a da ribeira Grande) sofreu consideráveis alterações. Vejamos: ‘correram por ambas estas ribeiras [Seca e Grande] muitas pedras e areia que tomaram por grande espaço posse do mar e o afastaram da vila (…).’ Resulta daí que ‘(…) se fez um areal tão comprido que, começando da dita vila, vai passando pela Ribeira Seca (…) até se acabar no Morro (…).’ Foram as nascentes alteradas com a catástrofe? ‘(…) Com o terramoto (…) abriram comissuras e veias de pedra hume e enxofre, que infeccionaram e corromperam a dita água, que agora é grossa e cheira a lodo (…).’ Terá a mesma alterado o trajecto da ribeira? ‘Começou (…) a correr (…) uma ribeira de fogo pela Ribeira Seca abaixo até chegar ao mar (…) fazendo grande estrondo quando entrou no mar, onde fez um grande cais ou ilhéu de penedia, ficando, ali, e por toda a ribeira acima um bravo biscoutal (…).’ Não teriam (por isso) as agora ruas dos Lagos e do Biscoito (no enfiamento actual do percurso daquela ribeira) sido outrora parte do curso pré 1563/64 da ribeira?
Apesar da profunda destruição de 1563/4, em 1576, uns meros treze anos depois, a ermida de São Pedro que havia sido – diz Frutuoso -, totalmente arrasada, foi feita paróquia independente da paróquia a que até então pertencera: Nossa Senhora da Estrela. Um século após essa elevação, em 1667 sobreveio uma nova cheia. Poderosa, causou pesados danos ao coração da Vila e ao seu termo da Ribeira Seca. O Vigário da paroquial igreja de São Pedro (da Ribeira Seca) João de Sousa Freire é quem fez a crónica do acontecimento (ao pormenor). Vou (por ser inédito) alongar-me (um nadinha) nas transcrições: ‘Em os nove dias do mês de Setembro de 1667 às 9 horas [da manhã, di-lo mais à frente] do dia sucedeu chover nesta Ilha, e principalmente nesta Ribeira Grande e Seca por espaço de duas horas para três horas com tempestade do Norte, e daí correndo a outros ventos em o dito espaço, pouco mais ou menos tanta quantidade de água que fez a cheia maior das duas ribeiras (…). De sorte que as duas ribeira Grande e Seca encheram de tal sorte as concavidades de seu costumado curso e caminho, que vencendo as muralhas das alcantiladas rochas, que prendiam a furiosa corrente de suas águas para não serem nocivas, redundaram de tal maneira que alagaram muitas ruas de casas, que se lhes avizinhavam mais (que um mau vizinho nunca foi de utilidade) foi tanto o dano que padeceram os vizinhos destas sobreditas ribeiras, que não só se perderam muitas casas, umas quase totalmente levaram ao mar com a fúria e abundância de sua corrente como foram nesta freguesia quatro, em uma das quais pereceram o pai e mãe com quatro filhos que todos foram ao mar e se acharam na praia mortos excepto o pai que nem vivo nem morto até hoje apareceu (…).’ Será que o curso da ribeira mudou (pouco ou muito)? E as nascentes? Em 1848: ‘Estragos causados por chuvas torrenciais no concelho da Ribeira Grande. Na Ribeira Seca desabaram pontes, ficaram arruinadas quintas, muitas casas e quintais.’ Em 1919, a tremenda cheia de 9 de Agosto que provocou danos imensos na Vila, ainda que em menor escala, fez alguns estragos na Ribeira Seca, onde ‘(…) foram destruídos muitos terrenos e quintas, situadas nas margens da ribeira e desmoronadas três casas. A água destruiu em grande parte a ponte da canada Nova, arrebatando os lavadouros públicos que junta dela existiam, bem como as escadas que davam para a ribeira. Os parapeitos da ponte que fica junto da casa do Sr. Gabriel da Silva Melo, foram também derrubados.’ Fiquemos (por ora) por aqui.
Assim, quem vir hoje a ribeira Seca, assim tão seca, andará bem longe de imaginar o mal que tem causado (e poderá vir de futuro a causar, caso não se ponha cobro a gravíssimos problemas ambientais). Em 1997, a água dos poços geotérmicos até então simplesmente despejada (sem mais contemplações) na ribeira da Cruz (daí chegando à ribeira Seca) e desaguando no Monte Verde, segundo fonte oficial da empresa, passa a ser reinjectada. Menos um problema. Logo outro se seguiu. Em 1998, nova cheia. Com efeitos graves para a Ribeira Seca (que era já parte da Cidade desde 1981): ‘onde uma ponte demasiado baixa em conjunto com dezenas de troncos de árvores acabou por formar uma autêntica barragem.’ ‘O nível das águas subiu dois metros destruindo o rés-do-chão de dezenas habitações e elevados danos materiais (…).’ Em 2004, mais outra (e como sempre tanto na ribeira Seca como na Grande): ‘(…) Três casas da freguesia da Ribeira Seca, foram afectadas pela ribeira, que transbordou e, na rua da Ribeira, Matriz, quatro casas ficaram inundadas. Também a zona envolvente à Câmara Municipal (…) ficou inundada (…).’ Em 2013, ‘(…) inundação de 15 habitações.’ Segundo o jornal Açoriano Oriental, ‘o caudal da Ribeira do Vilão assumiu proporções dantescas, ampliadas pela quantidade de entulho e troncos de madeira que ficaram presos na guarda da ponte da Rua do Mourato, formando um autêntico dique. A situação só foi resolvida com a destruição das guardas pelos moradores e bombeiros.’ José Gabriel, antigo comandante dos Bombeiros Voluntários da Ribeira Grande, ‘não poupou criticas à falta de limpeza da ribeira,’ declarando haver denunciado ‘o caso às várias autoridades, desde a Junta de Freguesia até ao Governo Regional, mas que nunca obteve uma resposta satisfatória.’
Segundo o jornal Diário dos Açores, o Director Regional do Ambiente [o PS governava a Região – claramente para serenar os ânimos] já dera ‘instruções para avançar de imediato o processo de construção de uma bacia de retenção.’ A reunião do dia 5 de Março da vereação da Ribeira Grande foi rica e agitada. Rui Maré, vereador da minoria eleito pelo PSD, natural da Ribeira Seca, quis saber quem deveria ‘assumir a responsabilidade da limpeza das ribeiras?’ Fernando Sousa, vereador da maioria PS, sendo engenheiro agrónomo de profissão, esclareceu os colegas: ‘a responsabilidade [é] dos municípios [nas] linhas de água em aglomerados urbanos, num perímetro que julga (…) ser de 50 metros.’ Quanto a ele, porém, ‘o verdadeiro [e mais] importante cuidado reside a montante das ribeiras, ou seja, a limpeza de todos os materiais que possam ser arrastados pela água, tornando um fluxo de lama e restos de madeiras (por exemplo), que devido à sua fluidez atingem velocidades e uma força demolidora, impossível de controlar a jusante.’ Portanto, responsabilidade da Região. Filomeno Gouveia, outro vereador da minoria PSD, que fora vice-Presidente na anterior vereação PSD, afirmou que vinha alertando ‘depois das cheias que houve em 1998’ para ‘a necessidade de se executar um poço absorvente na zona da Mãe de Deus, cuja obra [repare-se] ficara de ser feita pelo Governo Regional [do PS que agora se apressava a anunciar a sua realização].’ ‘Disse ainda que, há anos atrás, havia um programa sazonal, de Outubro a Março, com uma equipa de 150 trabalhadores rurais que, em coordenação com as juntas de freguesia, faziam a limpeza de taludes e dos leitos das ribeiras, e que se deveria continuar com programas deste género.’ Isso na área da responsabilidade dos municípios. Apesar da falta civismo de madeireiros e de lavradores, como corria e corre, ainda assim fora possível ‘evitar males maiores.’ Coisa rara, foi a decisão final unânime tomada pela vereação (PS e PSD). Decidiram solicitar medidas ao Governo Regional. Quais? ‘promover a execução do poço absorvente na zona da Mãe de Deus e criar a montante das Scut´s condições para evitar cheias; fiscalização mais assídua e rigorosa a montante das ribeiras, sobre os trabalhos de limpeza e de desobstrução que possam criar obstáculos ao escoamento normal dos cursos de água; criação de um Gabinete vocacionado para resolver, no imediato, todos os problemas relacionados com este tipo de estragos.’ O que foi feito? Para além do habitual teatro político, pouco ou nada. Por que será que se tarda em atacar a origem do problema? A primeira dificuldade reside no facto de os potenciais parceiros na solução dos problemas em vez de dialogarem estão de costas voltadas e daí ‘vão empurrando a responsabilidade para cima uns dos outros.’ O que facilita abusos. E a não resolução do problema. Que conheça, não há prova, não há condenação, mas há muito fumo, pelo que haverá fogo. Como compreender que se tenha autorizasse (e que essa se mantenha apesar das consequências) a instalação de explorações agro-pecuárias em locais sensíveis junto (ou próximo) às linhas de água das ribeiras Grande e Seca (e suas bacias), sem que tenha havido negligência ou dolo público? Há medo. Muito. De atacar interesses instalados. Cheira a cumplicidade entre privados e entidades públicas. Trocas (e baldrocas) eleitorais. Para não falar de incompetência (deliberada ou não). E a continuação de descargas ilegais de moradias? Um pouco pelas mesmas razões. Hoje a questão vai muito para além de se manter a ribeira livre de obstáculos físicos, vai à própria qualidade da água (das ribeiras e levadas) que condiciona a qualidade da água balnear (e da água da torneira). Para orientar as decisões a tomar, são necessárias análises regulares, partilhando os seus resultados com o público e a comunidade científica: ‘Os cidadãos devem estar informados dia-a-dia, hora-a-hora, segundo a associação ‘Zero.’ E de capital importância: ‘Essa informação deve estar disponibilizada no Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos.’ Sucede que, tais dados há mais de um ano não estavam disponíveis. Acusaram os ambientalistas Zero. Denúncia feita e resposta rápida das entidades, já lá estão. Nem levou dois dias, se calhar. Agora, sem pôr de lado as análises, há que dar o passo seguinte. Qual? Com menos engenharia e mais ordenamento do território (a montante e a jusante), pois as ‘alterações climáticas não se combatem com obras de engenharia, mas com ordenamento do território e plantação de árvores.’ É o que propõe (e eu aplaudo) Teófilo de Braga. Nada disso (porém) produzirá resultados, se não houver vontade de resolver a questão. Vontade (e entendimento) de quem? Dos directamente interessados: em primeiro lugar, da martirizada população residente, depois, das indústrias, incluindo a turística, da produção, das entidades públicas (Autarquias, Governo Regional) e das associações ambientais. As cheias (apesar de tudo) irão continuar. Controladas são (como sempre foram) uma fonte de riqueza. É a história que o diz. Mas os seus efeitos poderão (como devem) ser atenuados. O que irá desaparecer (ou diminuir) é a contaminação orgânica e química das águas. Antes que seja tarde. A terminar. A foz da ribeira Seca irá ter (se for para a frente) um tratamento especial (zona ajardinada) dentro do Plano destinado em exclusivo ao Monte Verde (Unidade de Execução do Monte Verde). E a montante? Por que não ir da foz à ponte do Mourato? E da ponte da rua do Balcão à ponte da Grota? Por que não pedir ideias a um arquitecto. A Câmara já o fez em Julho de 2021, para ‘a requalificação da ribeira que atravessa a cidade (…). A ribeira Seca, mesmo comparando-a com a ribeira da Ribeirinha (que já tem o lindo troço da avenida), é das três ribeiras da cidade da Ribeira Grande, a mais atrasada (urbanisticamente).
Pedra da água mole em pedra dura tanto bate até que fura - (Cidade da Ribeira Grande) (continua)