Resgate da ribeira Grande – XIII

Resgate da ribeira Grande – XIII

A ribeira fez a Ribeira Grande. Ela é a nossa alma e coração. Foi ‘a ribeira Grande que pôs nome à Vila.’ Conta a tradição que o poeta João Albino Peixoto (1803 -1891) – justamente apelidado de Cisne da ribeira -, ia inspirar-se numa gruta da ribeira. Se no passado criou riqueza (na Ribeira Grande e na Ilha) espera-se que no presente crie (aqui e na Ilha) qualidade de vida. Quantas Cidades haverá nos Açores (ou fora dos Açores) que têm dentro de si três ribeiras, uma levada de moinhos, dois areais (e meio) e um porto (abandonado)? Além do mais, será uma perda de tempo (e de recursos) tentar resgatar o Monte Verde sem resgatar a ribeira Grande. Não será tarefa fácil: há cheias, há descargas (ilegais) e há (ainda) falta de civismo. Desde que a Ribeira Grande voltou costas à sua ribeira, a situação foi de mal a pior. Para (tentar) alterar a situação, há que criar um plano urbanístico (com sensibilidade paisagística) da foz à Mãe de Água (sem esquecer que a Cidade da Ribeira Grande é central na Ilha). Tudo isso valerá bem pouco, caso não se tenha em conta os ensinamentos da história da ribeira e não se cumpra com zelo (e sem favores) o que a ciência e a lei estabelecem (refiro-me ao plano de Prevenção de Inundações de 2016, a ser, em 2024, alvo de cabimentação, suponho). Com uma dupla missão dupla: monitorização das águas e acção pedagógica. Sobretudo investir nas escolas. Claro, sem que o civismo varra para longe a (muita) ‘bandalheira’ ambiental, nada se conseguirá.

Para entrar com o pé certo no resgate da ribeira, impõe-se uma pergunta: por que razão os povoadores escolheram aquele preciso troço da ribeira para o assentamento inicial do Lugar da Ribeira Grande? A exemplo do que aconteceu (por este mundo fora) em outros locais povoados por portugueses, a proximidade de uma ribeira de caudal abundante e perene (como era aquela) foi (terá sido) factor decisivo na escolha. Acresce ainda a essa vantagem, outras não menos importantes: o local dominava uma extensa e ubérrima planície, era abrigado dos ventos predominantes de Verão e de Inverno e ficava à beira-mar. A costa e o mar forneciam abundantes quantidades de peixe, de mariscos e de sal. Pelo mar seguia ou chegava o que a terra carecia. Será errado pensar que ao mar do Monte Verde - por ficar no Norte e não no Sul -, não chegavam e partiam embarcações. Pela vivência anterior que traziam os povoadores das suas terras de origem, era ali o local ideal. Nele (pois) ergueram residências, moinhos de água e serras de água. E o Lugar da Ribeira Grande, estendendo-se até à foz da ribeira (feito Vila em 1507) foi crescendo sem percalços (conhecidos). Mesmo a peste de 1526/7, que obrigou os moradores a abandonar a Vila durante mais de um ano, não provocou mudanças (sensíveis) no tecido urbano e social da urbe. Tudo iria (porém) mudar (de forma radical) no Inverno de 1563.

Recorrendo a Frutuoso, vou abreviar o que interessa. Dá-se o caso que de finais de Junho a princípios de Julho, a terra viveu momentos de absoluto terror. Os vulcões do Fogo e o do pico do Sapateiro entraram em plena actividade. Os abalos sísmicos destruíram casas. Arruinaram parcialmente a igreja da Estrela. O convento de Jesus (que caiu) teve de ser evacuado. Foram arrancadas árvores. Deslocadas pedras. O peso da cinza do vulcão (sobretudo do Fogo) desabou telhados. O leito da ribeira viu-se (subitamente) ocupado por todos aqueles materiais. Enquanto isso, as pessoas fugiram para bem longe das suas casas. Passado o susto, outro bem maior estava ainda por vir. Regressados às suas casas, refeitos do susto, no Inverno, a chuva intensa só por um triz não destruiu a Vila inteira. Como? O arco da ponte da Praça tapado por troncos, pedras e lamas, fez dique. O nível da água subiu. A água (arrastando pedras, troncos e lama) transbordou das margens. Duas ruas principais e uma menos principal (no dizer de Frutuoso) foram engolidas pela fúria das águas. Calcula-se que mais de duzentas casas tenham sido (então) destruídas. Os quatro ou cinco moinhos e a serra de água desapareceram por completo. A costa junto à foz, com a pedra-pomes e o areão arrastados pela fúria das águas, ‘cresceu mar dentro.’ Mudando a face da Ribeira Grande.

E agora? A terra ganha medo à ribeira. Os donos das principais casas da Vila que haviam sido construídas ao longo da ribeira fogem a sete pés dali. Reinstalam-se nas suas lavouras. Outros abandonam a Vila. Os moinhos são transferidos para o interior da terra. Para locais mais seguros. Nasce a levada (a que hoje desagua no Monte Verde). Nasce uma nova via (ou ganha uma nova vida uma antiga via): a rua Direita. Orientada de Nascente a Poente. Para evitar (ou minimizar) novas catástrofes, constroem muros em pontos sensíveis da ribeira e plantam árvores ao longo das suas margens. Nas ruas atingidas pela enxurrada, por cima dos entulhos, constroem novas habitações.

Uma terra sem memória, cai nos erros do passado? No século XVIII, em local um poucochinho mais seguro, mas com a água da ribeira que vai para a levada dos seus moinhos, o Conde da Ribeira Grande edifica a sua fábrica de panos. Ali, mas já no século XIX, impelidos pelo aumento demográfico da Ilha, são levantados novos moinhos. E na ribeira? Ou porque os do Conde não chegassem para as ‘encomendas’ ou porque houve quem considerasse ser um bom investimento construir mais moinhos, surgem (após três séculos) novamente moinhos nas margens da ribeira Grande (quase da sua foz à Magarça). A resposta levaria menos de um século a chegar: a ribeira voltou a pregar um valente susto à terra. Não passou (felizmente) de um beliscão (diga-se): a cheia de 1919 levou alguns moinhos e avariou outros.

Chegados à década de sessenta do século XX, a ribeira começa a dar os primeiros sinais de declínio. É por aí que os moinhos começam a fechar portas uns atrás dos outros. Devido aos surtos de emigração. E à importação da farinha. A pecuária ia substituindo a agricultura. Aos olhos da autarquia, a ribeira é (então) considerada tão importante como o litoral marinho (Poças e Areal/Monte Verde). A vereação de António Augusto da Mota Moniz (hoje injustamente esquecida) investe (de igual para igual) nas Poças (mar) e na Cova do Milho (ribeira). Aproveitando a saída dos últimos moradores do bairro da Cova do Milho, transforma o local em Parque Infantil, jardim relvado e florido (há mesmo quem sugira que se construa ali uma piscina fluvial). É um sucesso estrondoso. E imediato. Parangonas nos jornais. Postais ilustrados. Enxames de forasteiros. As festas da Vila passam a ter ali um dos seus melhores palcos. Mal as obras do Parque Infantil se concluem, António Augusto volta-se para as Poças. Que sofre uma mudança profunda. Aquela (excelente) vereação e as seguintes (que lhe seguem a peugada), investem forte nas Poças (em 71/1972 nasce a piscina). Pretendem (mesmo) avançar com a Avenida Litoral (sonho que já vinha pelo menos da década de trinta). Em suma, enquanto a ideia de mudança do litoral vai fazendo caminho, a ribeira é (praticamente) votada ao abandono. O Parque Infantil, construído entre a ponte da Praça e a ponte dos Oito Arcos, acabara por ser um lindo oásis no deserto (da ribeira). Da ponte dos Oito Arcos à foz da ribeira, mesmo ali ao lado, o panorama continuaria ‘terceiro-mundista’ por mais quatro décadas.

No Verão de 1984, vi a ribeira (onde ‘tomara banho’ e pescara ‘irós’ com engodo de caracol) com os olhos da experiência que trouxera de fora. Durante três meses, prolongando-se pelos anos seguintes, foi estudado (no terreno e no arquivo) o ciclo dos cereais ao moinho. Em 1986, já no âmbito do projecto de Museu de Comunidade, é divulgado o que então já se havia recolhido. Enquanto a pesquisa avançava, foram surgindo perguntas: que fazer aos moinhos inactivos? E aos caminhos e trilhos que deixaram de ser usados? Poderiam ser reconvertidos em residências? Em pequenas unidades comerciais? Poder-se-ia aproveitar alguns para produzir electricidade? Dever-se-iam construir pequenos passeios ao longo das margens? A importância da ribeira ganha novo fôlego com a publicação da III Série do A Estrela Oriental, em Junho de 2000: deveria a Cidade da Ribeira Grande estar virada para o mar e para a ribeira? Sim deveria, foi a resposta a que se chegou. Há a esse respeito um (muito lúcido e prático) artigo de Dezembro de 2002. É de Luís Noronha: ‘Percorrer um caminho ao longo da ribeira, que permitisse ir da sua foz até (pelo menos) à Mãe-d’água é um desafio que por agora não é possível na totalidade. É uma proposta que consideramos útil continuar a desenvolver.’ Dois anos e pico depois, em conversa com o arquitecto continental Pedro Machado Costa, a respeito das ligações da ribeira com a sua Cidade, ideia para a frente ideia para trás, reconheci faltar dar coerência/consistência ao que já existia e planear o que se desejava que viesse a existir. E (sendo isso tarefa de arquitecto) pedi-lhe opinião. A conversa produziria frutos em 2005. No âmbito do programa L’Atalante, sendo não só já conhecida a intenção de construir a Via litoral como já houvesse um esboço de projecto, os arquitectos Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos propuseram a ‘conversão do leito e margens da ribeira, que passa pela renovação de todas as suas frentes; conferindo-lhe novamente estatuto de eixo de todo o centro da cidade. A intervenção parte da zona da foz, qualificando toda a área, e ligando-a à nova área de expansão da cidade, a Sul; junto a equipamentos públicos de importância.’ Valha a verdade, Luís Noronha já havia dito (por alto) outro tanto em 2002.

Se Ricardo Silva (2005-2013) avançou (um pouco) da ribeira em direcção à foz, Alexandre Gaudêncio (2013-), pretende avançar da foz à ponte da Mãe d’ Água. Em Julho de 2021, já em período de pré-campanha eleitoral para as autárquicas, onde estava em jogo a sua reeleição, pede ideias ao arquitecto Nuno Malato (que reside aqui na cidade): ‘a requalificação da ribeira que atravessa a cidade, nomeadamente os locais junto à nova frente mar, jardim Paraíso e antiga escola Gaspar Frutuoso. Levantando a ponta ao véu, entre outras propostas, retiro a que faz para a área da antiga escola Gaspar Frutuoso (que passou em Junho último à posse da Câmara) diz-me ele (sentados a uma mesa do Manuel Flor) que se pretende criar ali, ‘uma área junto ao coração da terra, que central à Ilha, ‘um quarteirão da aprendizagem, onde há cultura, desporto, lazer….’ Em finais de Julho de 2023, reeleito, Alexandre Gaudêncio reafirma a intenção: ‘Intervenção na Ribeira Grande deve abranger desde a foz até à zona da Mãe de Água, com a criação de zonas de fruição pública.’ E em Julho de 2024? Falta cabimentar uma verba e adjudicar o projecto.

Poço da Santa Paciência – Cidade da Ribeira Grande (continua)

PS: Notas de 6 de Agosto de 2024. Dois motivos ténues de esperança no resgate da ribeira que contrariam a asfixiante monocultura da vaca: 1 - Na Magarça – junto à ribeira Grande -, o casal Pedro e e Dina Pimentel tem uma plantação de 9 000 pés de café quase prontos a produzirem (cf. RTP/Açores, Açores Hoje, 23 de Julho de 2022 e Testemunho de Pedro Pimentel, 4 de Agosto de 2024); 2 - No lado da estrada da Lagoa do Fogo, Mário Feijoca tem abacateiros. 3 - Porém, numa nova visita (mais detalhada) que fiz às margens da ribeira Grande verifiquei - sobretudo num pequeno troço da ribeira da Tondela que se junta à ribeira Grande, a persistência (lamentável) de ligações ilegais de efluentes domésticos; 4 – Recolhi de várias fontes orais (credíveis) uma versão de dolo deliberado e planeado do domínio público numa faixa ribeirinha da foz da ribeira Seca (‘fulano – omito o nome que é do conhecimento público -, fez construir uma pequena casota para arrumar a burra. Isso enquanto tirava dali areia. E pagava para andarem pelas tabernas a dizer que aquilo era de fulano e de sicrano.’

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 27/07/2024
Reeditado em 14/08/2024
Código do texto: T8115673
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