REFLEXÕES SOBRE O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA PELO ESTADO
REFLEXÕES SOBRE O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA PELO ESTADO.
Valmir Pontes Filho
É de clara sabença que ao Poder Público (ao Estado, genericamente compreendido) não cabe agir no campo do meramente lícito, como aos particulares é possível fazer. Para estes, tudo é permitido, desde que a lei não proíba. O Estado, todavia, só pode atuar na área do estritamente legal.
Assim é que, por exemplo, ao contratar obras, compras ou serviços, ou mesmo promover alienações, há de licitar segundo as prescrições normativas contidas na Lei. Nenhum procedimento licitatório há de ser realizado sem respeito aos princípios, expressamente referidos na Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021: os da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável.
Portanto, a igualdade de competição entre os licitantes deve ser preservada, respeitado também o edital (desde que juridicamente válido). Mas não só isto, como adiante se verá.
O tema atinente ao controle jurisdicional dos atos administrativos é, sem dúvida alguma, dos mais caros ao estudante do Direito Constitucional e Administrativo, sobre ele já tendo discorrido, proficientemente, publicistas da estirpe de Seabra Fagundes, Hely Lopes Meirelles, Sergio Ferraz, Lúcia Valle Figueiredo e Osvaldo Aranha Bandeira de Mello. Aqui, portanto, cabe fazer nada mais do que breve e introdutória alusão ao assunto.
A distribuição das funções estatais entre órgãos distintos, cada qual a guardar área própria de atuação e com competência para vigiar e regular os passos dos demais, compõe o mecanismo ideal de salvaguarda dos direitos individuais e coletivos. Não raro desconsiderado, todavia. É certo que o Poder Executivo pratica atos materialmente legislativos, assim como os Poderes Legislativo e Judiciário produzem atos materialmente administrativos, ou, ainda, que o Legislativo (por meio do Senado) exerce a jurisdição .
Mas o que não se justifica é que haja hipertrofia de qualquer desses órgãos, cercando-se seus atos de uma capa impermeável à fiscalização dos dois outros órgãos de governo. Ou que os atos administrativos, não importando de onde promanem, se mantenham imunes a qualquer tipo de controle.
Há quem afirme que a preponderância de um dos poderes sobre os demais é inevitável. Se isso é verdade, que essa preponderância seja do Judiciário sobre os outros, mas sem os exageros e despautérios de hoje. E para que o Judiciário se ponha soberano em suas decisões, é indispensável que ele seja isento, imparcial e livre de ingerências indevidas. Daí a importância do controle jurisdicional dos atos administrativos, entendidos estes como exteriorizações da função cujo desiderato é o de “aplicar a lei de ofício”, no felicíssimo dizer de Seabra Fagundes.
É o ato administrativo, enfim, aquele ato jurídico praticado pela administração pública, compreendendo “... toda manifestação lícita da vontade da administração pública, destinada à aquisição, à conservação, à transferência, à modificação ou à extinção de direitos” (Valmir Pontes, em seu “Programa de Direito Administrativo”, de 1978), aquele instrumento por via dos quais “... o Estado determina situações jurídicas individuais ou concorre para a sua formação” (Seabra Fagundes) ou, ainda, com mais rigor, a “... declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes, como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional” (Celso Antônio Bandeira de Mello).
O Estado, pois, no exercício da função administrativa, manifesta sua vontade por meio dos atos administrativos, criando, reconhecendo, modificando, resguardando ou extinguindo, sob o influxo da lei, situações jurídicas subjetivas, em matéria administrativa. Deixando propositadamente de lado as questões relativas às características e aos elementos dos atos administrativos, passemos ao problema crucial do controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, segundo a ordem constitucional vigente em nosso país e sob a ótica de quem entende seja tal controle o mais amplo e profundo possível, de modo que os direitos dos administrados se vejam eficazmente garantidos.
Uma das mais tradicionais classificações dos atos administrativos os distingue em atos vinculados e atos discricionários, conforme se ache a autoridade administrativa, na sua prática, adstrita a condutas rígidas, impostas pela lei, ou, ao contrário, se encontre munida de certa margem de liberdade de decisão ou julgamento, segundo critérios próprios de conveniência, utilidade e oportunidade . E é justamente em torno dessa classificação que se admite a existência de atos administrativos absolutamente regrados pela lei, em cuja prática a admi¬nistração pública não encontra a menor possibilidade de agir fora do estrito comando legal (atos vinculados) e de atos administrativos discricionários (mas nunca arbitrários, obrigatório lembrar), ou seja, de atos em cuja prática a administração “... pode apreciar a conveniência e a oportunidade dentro das soluções legais admitidas de forma indeterminada, de modo a proceder desta ou daquela maneira” , que se agitam os estudiosos, discutindo acerca da possibilidade de controle, pelo Judiciário, dos atos administrativos quanto apenas à sua legalidade e mesmo quanto ao seu próprio mérito.
Seabra Fagundes, em sua clássica obra sobre o assunto, chegou a asseverar, apoiado em farta jurisprudência, que “... ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade” . É desse nomeado autor o argumento de que “... se, por vezes, a atividade administrativa está sempre condicionada a estreitos limites preestabelecidos na lei, há casos em que tais limites perdem parcialmente a rigidez, para se reconhecer ao Poder Executivo uma certa liberdade de movimentos. A variedade e multiplicidade das situações, excluem, em muitos casos, disciplinamento uniforme e preciso. O seu exercício é condicionado por uma série de circunstâncias ocasionais e com respeito a elas não é possível a tudo prever. Nem seria útil descer a um rigorosa minúcia, o que resultaria em nocivo entrave à realização das finalidades visadas pela atividade administrativa. Para atender a isso se permite em muitos casos ao Poder Executivo seja discricionário em relação à conveniência, oportunidade e modo de agir” .
Segundo a opinião até bem pouco generalizada, ao Judiciário caberia examinar o ato administrativo apenas quanto à sua “legalidade” formal. Quer dizer, verificar se o ato foi praticado com observância ou não dos preceitos legais atinentes, reguladores do procedimento da administração pública. Caso, entretanto, o ato praticado seja apenas inoportuno ou inconveniente, afirma Cretella Jr., “... nada pode fazer o prejudicado, sendo inoperante sua solicitação ao Poder Judiciário para que ajuste o ato aos interesses do administrado”, para afinal concluir que “... o exame do mérito está fora da competência do Poder Judiciário” .
O grande problema, ao que parece, está justamente na fixação do que seja mérito do ato administrativo. O mérito, afirma o referido autor, “... diz respeito à aplicação, isto é, ao uso das faculdades ao caso concreto, a saber, à razão especial, à conveniência, à oportunidade do ato”, enquanto a legalidade do ato, que o festejado administrativista prefere chamar inadequadamente de legitimidade, estaria “... na sua conformidade com a lei, refere-se, ou à competência da autoridade ou às condições e limites, ou às formas”.
A doutrina tradicional afirma que “... os atos discricionários só se consideram livres no que diz respeito ao seu mérito, isto é, no que se relaciona com a faculdade de julgamento dada ao administrador para agir segundo aqueles critérios de conveniência, utilidade e oportunidade. Em qualquer hipótese, mesmo quando emitido no uso da faculdade discricionária, o ato administrativo há de observar o requisito da finalidade pública, implícita ou subentendida em todos os atos da administração, bem como as regras de competência e de forma que a lei estabelecer” .
É de Seabra Fagundes a doutíssima lição de que “... tudo o que signifique desvio ou exorbitância do âmbito traçado à atividade discricionária enseja o controle jurisdicional”, mas sempre ligando tais hipóteses à legalidade do ato. Seria o caso de “... questões de mérito que se inserem no conceito de legalidade”. Justamente aí é que pretendemos distinguir as regras de competência e forma (que seriam questões de legalidade formal do ato) do requisito da finalidade pública (que consideramos questão alusiva ao mérito do ato).
Cabe aqui fazer menção à teoria do abuso de poder administrativo, matéria de que tantos e tão abalizados mestres se têm ocupado, entre nós. Configura-se o abuso de poder, em princípio, sempre que o administrador fizer mau uso, ou uso equivocado, indevido ou excessivo dos poderes de que dispõe, segundo a lei, para o exercício de suas atribuições. Como os poderes conferidos ao administrador cobrem grande área de serviços públicos, compreendendo os campos da política administrativa, da regulamentação das leis e da hierarquia funcional, inevitável é que, na prática, os titulares de tão amplos poderes cometam abusos, decorrentes do seu uso arbitrário, incompatível com a lei e com o interesse público, seja em razão de simples ignorância, prepotência, negligência, imprudência ou imperícia, seja por interesse, confessado ou não, em que se produza determinado resultado prático, condenado pela lei e pela moralidade pública e que por meios normais não seria viável obter.
Por outro lado, a incompetência, como causa de abuso de poder, também se manifesta pelo excesso no uso, pelo administrador, das suas atribuições legais. Pode ele ser competente para a prática de determinado ato. Mas se vai além de sua competência, transbordando do âmbito de sua ação regular, comete excesso e responde por abuso, na medida em que se houver verificado esse transbordamento. Um exemplo de abuso de poder por excesso de competência pode ser visto no caso, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda em 1973, em que a autoridade, competente para efetuar o pagamento dos vencimentos de servidores públicos, condicionou o pagamento à apreciação final do desvio do correspondente numerário por ato criminoso de certo exator de rendas, fato a que eram estranhos os servidores interessados (RTJ, 68/229).
Outra modalidade de abuso de poder é o vício de forma, que a Lei nº 4.717, já citada, declara consistir “na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato” (art. 2º, parágrafo único. Diga-se, desde logo, que não será um simples defeito de forma, sem maior relevo ou importância, motivo para que se tenha o vício formal como caracterizado . Na imensidão do nosso território, sobretudo nas regiões mais carentes de administradores bem preparados, inúmeros serão os atos administrativos formalmente defeituosos, mas nem por isso se haverão de ter a todos eles como fruto de abuso de poder, por esse aspecto. O que importa examinar e constatar em cada caso é se o defeito de forma inutiliza ou não o ato e a tal conclusão se chegará sempre que o defeito resulta da inobservância de exigência ou requisito essencial à sua validade. Caso o ato, embora praticado de maneira defeituosa ou incompleta, consiga reunir em si, sob o ponto de vista substancial, todos os elementos necessários à sua eficácia jurídica, despiciendo será desconsiderá-lo por motivo de meras falhas formais.
Erros ou impropriedades de linguagem, omissões de nomes completos, remissões equivocadas e outras coisas deste tipo devem ser relevadas sempre que o ato puder subsistir a despeito delas. Mas a falta, por exemplo, da publicação de um ato administrativo será um vício de forma indesculpável. Do mesmo modo, a desapropriação que se pretenda levar a efeito sem a precedência de lei ou de decreto declaratório de utilidade ou de necessidade pública do ato, ou a nomeação, sem concurso, para cargo que não seja de confiança ou em comissão, a imposição de penalidade funcional sem a precedência de processo administrativo nas hipóteses em que a lei o exija.
O abuso de poder, entretanto, não ocorre apenas por vício de incompetência ou defeito de forma dos atos administrativos. Já hoje, depois de longo tempo de hesitações ou perplexidades, admite-se que o abuso de poder se faça presente, também, em atos formalmente válidos, praticados por autoridades competentes, mas viciados sob outros aspectos, relacionados com o objeto, os motivos ou a finalidade da ação administrativa. Como é de farta sabença, os atos da administração pública, ao contrário do que comumente acontece com os atos da vida privada, necessariamente se subordinam a um contexto geral de interesse público. Na base de toda a ação administrativa há de estar, indispensavelmente, um objeto, um motivo e uma finalidade pública, sem o que a conduta do administrador resvalaria para os desvãos da amoralidade ou da imoralidade - da ilegitimidade, enfim - em prejuízo dos interesses maiores que a atividade administrativa tem por fim precípuo resguardar. A conduta do administrador público, mesmo aquela situada no campo da chamada discricionariedade, é conduta regrada pela lei e destinada a atender aos interesses da comunidade. Enquanto o indivíduo, sem ofensa à lei, pode agir livremente em seu próprio proveito ou de quem lhe convenha beneficiar, o administrador público, sempre obediente à lei, não pode agir senão em benefício ou em defesa do interesse público.
A partir dessa elementar noção de direito público e a despeito de algumas vacilações que o formalismo tradicional e o liberalismo da nossa formação jurídica ainda não permitem que se desfaçam de todo, chegou-se à convicção de que o abuso de poder pode abrigar-se, incontáveis vezes, no âmago dos atos administrativos, e não apenas revelar-se na sua face exterior. Como no mais íntimo das pessoas, não apenas pelo seu comportamento exterior, ou visível, é que se vai buscar a definição do seu caráter, das suas inclinações, da sua personalidade, enfim.
Mas essa busca, essa descida ao âmago dos atos da administração pública, para ajuizar da sua legalidade e da sua legitimidade, encontrava um obstáculo sério, que decorria de uma concepção até bem pouco tempo abstencionista do Poder Judiciário. Inclusive no que respeita aos editais de licitação. Na tradição do nosso Direito Público, ao Judiciário, falecia poder para examinar o chamado “mérito” dos atos administrativos - como, aliás, ressaltado no início - cabendo-lhe apenas o exame desses atos sob os aspectos de competência e de forma ou, quando muito, sob o aspecto objetivo da ofensa direta ou frontal a algum dispositivo de lei. Muitos e muitos atos abusivos da administração, levados ao conhecimento dos juízes brasileiros, foram por eles convalidados com fundamento nessa teoria, em que a “intocabilidade” do seu mérito se opunha tenazmente à análise de abusos outros que não fossem de competência ou de forma ou decorrentes do puro e simples desrespeito a dispositivo legal. E em que consistia, ou onde estava o falado mérito da ação administrativa? Residia no interior dos atos, zona sagrada, indevassável, interdita ao exame do Poder Judiciário.
Foi por influência da doutrina francesa do desvio de poder (“détournement de pouvoir”) que afinal se fez a necessária luz nesse ângulo do Direito Público em nosso país. Conforme essa doutrina, que teve em Marcel Waline um dos seus mais lúcidos expositores e exegetas, o administrador público pode praticar abuso de poder quando, embora competente a autoridade e ainda que perfeito o ato sob o aspecto formal e não objetiva ou frontalmente contrário a nenhum preceito de lei, não parta ele de motivação capaz de legitimá-lo. Quer dizer: o ato administrativo, como diz Waline, há de sempre repousar, mesmo quando a lei expressamente não o exija, sobre um motivo, isto é, justificar-se em certa situação de fato existente no momento em que o ato é emitido, sobretudo nos casos em que a ação administrativa restrinja uma situação jurídica, um direito adquirido ou uma liberdade pública de um cidadão, devendo ter, ademais, um motivo legal, ou seja, um daqueles motivos cuja existência a lei imponha como condição necessária de uma restrição de direitos ou de liberdades.
Interessante é observar que, na construção dessa teoria dos motivos do ato administrativo, hoje plenamente incorporada ao nosso Direito Público, atribui-se ao juiz o poder de penetrar no ato administrativo, não só para perquirir os motivos e invalidá-lo, quando não os encontre suficientes para legitimá-lo, como até mesmo para substituir os motivos dados pelo administrador, acaso inaceitáveis, por outros que o sistema jurídico possa acolher como capazes de conferir validade ao ato. Cabe, neste lanço, referir à doutrina segura de Lucia Valle Figueiredo, eminentíssima jurista e juíza exemplar: “... o controle do Judiciário sobre a Administração Pública é mais amplo do que a Constituição precedente ensejava. E, como o juiz deve sempre decidir, prestar sua jurisdição, na hipótese de a norma legal não lhe parecer suficiente, no juízo de subsunção cabe-lhe colmatar a lacuna. A prestação jurisdicional não pode ser negada. A mera ameaça de lesão já é suficiente. O limite de atuação do Poder Judiciário será gizado pelo próprio Judiciário, que tem por finalidade dizer o direito no caso concreto, sem invadir a competência administrativa. Isso faz parte do equilíbrio e do jogo dos poderes” .
A motivação dos atos administrativos é tema fascinante, abordado por um sem-número de notáveis administrativistas em nosso meio, entre eles Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, para quem os limites dos poderes discricionários “... se encontram nos motivos determinantes do ato jurídico, e no fim com que é praticado, tendo em vista a preocupação do seu agente e a razão de ser do próprio instituto jurídico. Toda atividade do Estado-poder tem por baliza o interesse coletivo”. O Supremo Tribunal Federal tem tido, a seu turno, ocasião de sustentar a necessidade dessa motivação em vários casos, como refere Baleeiro, com referência a Gallotti, em acórdão na RTJ, vol. 73, p. 732 e seguintes. E o legislador pátrio não falta com a sua contribuição, ao explicitar, no art. 2º, parágrafo único, da Lei da Ação Popular, embora de modo imperfeito, que “... a inexistência dos motivos ocorre quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido”.
Se por ausência de motivação, ou por motivação insuficiente ou inadequada, como já vimos, pode o ato administrativo ser levado ao crivo do Judiciário (que examinará o seu próprio mérito), o mesmo se passa quando o ato, não obstante emanado de autoridade competente, revestido de forma legal e bem fundamentado, tem por finalidade um resultado diverso daquele que aparenta obter. Trata-se, aí, de abuso de poder por desvio de finalidade, que a lei da ação popular diz ocorrer “... quando o agente pratica o ato visando fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência” (art. 2º, parágra¬fo único, letra e).
Se, por um lado, esses decretos - atos administrativos stricto sensu - hão de ser praticados com fidelíssima obediência à lei (se se tratar de ato chamado vinculado), ou com uma certa margem de liberdade, mas rigorosamente dentro do espaço delimitado pela lei (se for o caso de ato dito discricionário), poderemos, por outro lado, perfeitamente encontrar “decretos autônomos” - ou atos de governo - os quais extraem seu fundamento de validade diretamente da própria Constituição Federal, sem que haja a necessidade de lei que autorize ou fundamente sua expedição: é o caso do decreto de intervenção federal, ou de instauração do estado de defesa e de sítio, por exemplo.
Mas é evidente que devemos assentar a ideia de que função administrativa é a “... que corresponde à criação de normas jurídicas individuais (concretas) ou gerais (abstratas), em nível hierárquico infra legal (atos administrativos lato sensu)”. Assim é que existem também os regulamentos, “... normas gerais ou abstratas, também produzidas no exercício da função administrativa” . Estes, de modo geral, são classificados em tipologias diversas: os regulamentos (ou decretos regulamentares) independentes ou autônomos, “... encontráveis em certos países europeus, apresentam a característica de independerem de lei que os fundamente. Extraem sua validade diretamente da Constituição e são realizados pelo Executivo para a expressão de sua competência sobre matérias não reservadas à lei. Inovam a ordem jurídica, pelo que equivalem, de certa forma, a uma lei baixada pela Administração” .
Seriam os regulamentos autônomos, no dizer de Oswaldo Aranha Bandeira de Melo, “verdadeiras leis”, enquanto Biscaret¬ti Di Ruffia os tem como “... autónomos de caulquier disposición legislativa y relativos, por tanto, a materias de competencia del Poder ejecutivo... no regulada por leyes (o reguladas sólo parcialmente). Entre estas últimas pueden figurar, en cierto sentido, los llamados reglamentos de organización... que se refieren a la institución y estructura de los diversos ofícios públicos” . Estes, fique claro, inexistem na ordem constitucional brasileira.
Assim como não há regulamentos autônomos entre nós, igualmente não encontramos possibilidade de existência de regulamentos “delegados”. Com efeito, o nosso ordenamento constitucional não admite a delegação de atribuições de um Poder a outro, exceção feita para a elaboração de leis delegadas. Mas delegação para elaboração de lei - CF, art. 68 - não importa delegação para regulamentar lei. O Legislativo pode, sem dúvida, delegar competência ao Presidente da República para elaborar lei; mas como poderia ele delegar competência para regulamentar, que não é sua? Claro que não, na medida em que tal competência foi outorgada pela Constituição diretamente ao Chefe do Executivo (CF, art. 84, IV), daí também decorrendo que a lei não pode “proibir” sua regulamentação.
Já quanto aos regulamentos de execução, seriam os “... baixados no exercício da atividade administrativa, que desenvolvem os dispositivos legais, facilitando ou mesmo tornando possível a sua aplicação” . O regulamento de execução, único possível para o nosso direito constitucional positivo, está sempre, portanto, adstrito à lei. Introduzindo preceitos na ordem jurídica, o fará inevitavelmente em absoluto respeito à lei, sob pena de vir a ser declarado nulo pelo órgão competente e pelo modo previsto pela Constituição. O regulamento, assim, para o direito positivo pátrio, é sempre e sempre submisso à lei, não podendo alterar seus os preceitos, impondo exigências que a lei já não tenha imposto.
É indispensável, para o deslinde do problema, considerar a problemática do conceito de serviço público, com o consequente enquadramento na geografia estatal das competências. Vista sob o aspecto técnico, a expressão serviço público não tem a variedade conceitual, pelo menos do ponto de vista doutrinário e assente na opinião dos doutos, principalmente estrangeiros, com que é tratada em nossa legislação e na linguagem do uso comum administrativo. Essa amplitude - e a lembrança é de Carlos Roberto Martins Rodrigues - leva o estudioso ou intérprete menos avisado a confundir serviço público com poder de polícia e com função pública. Por isso, a definição de serviço público, apesar de continuar, sob certos aspectos, vexata quaestio no moderno direito administrativo, é essencial para que se possa ter o seu enquadramento legal, nos vários aspectos de suas projeções práticas.
Mesmo assim, a questão do seu conceito é posta no ritmo diversificado das várias teorias que tratam do importante tema, tido por Gaston Jèze como a pedra angular do direito administrativo. Ligada aos fins do Estado, a expressão sob exame recebe, do ponto de vista conceitual, a influência das concepções filosóficas e políticas de cada medida nacional, refletidas na legislação de cada país. Por outro lado, há que se ter em conta que o Estado contemporâneo, em alguns países, como o nosso, deixou de lado aquela permanência intervencionista, a que se referia Laufenburger, para atrair o particular, dando-lhe ensejo a que retorne a realizar atividades de natureza prestacional, ainda que sob a égide do direito do Estado, em regime que a doutrina francesa, tendo à frente Duguit, chamou de atividade de colaboração do particular com o Poder Público. Mas, nem por isso, a atividade assim efetivada perdeu a coloração de serviço do Estado, de atividade da qual o Poder Público é, por comando constitucional, o titular, abrindo mão de sua prática, sem perder o seu controle, em favor de terceiros, através dos instrumentos da delegação, da permissão e/ou da concessão.
É o maior ou menor grau de intervenção do Estado na área social, a maior ou menor intensidade do exercício, pelo Poder Público, do domínio eminente, através da formal projeção formal do poder de polícia, que estabelece a dimensão conceitual do serviço público, da escala de sua extensão e do seu posicionamento na repartição federal dos poderes do Estado (Poder Público) . Entretanto, em que pese a variedade de posições doutrinárias e a complexidade do tema, que continua tormentoso no direito administrativo, é certo que dois critérios assumem especial relevo: o que parte da natureza da entidade ou do órgão realizador da atividade prestacional e o que examina o serviço público do ponto de vista material, considerando-o a própria prestação da utilidade. No primeiro caso, em sentido amplo, qualquer atividade revestindo tal caráter, como dito, seria tida como serviço público se efetivada por órgão ou entidade de natureza pública (o próprio Estado, em qualquer de suas manifestações orgânicas). De acordo com o segundo critério, ter-se-ia que examinar a natureza, o fim e o regime jurídico da dessa atividade, sem embargo de sua vinculação a um titular estatal (o que é imprescindível para sua definição como serviço público).
É inviável pensar-se em serviço público como atividade que não tenha caráter prestacional e que não seja, ao mesmo tempo, irrecusável (no que diz com o Poder Público, seu titular) e dirigida a suprir, de modo contínuo, necessidade coletiva. Fora desses parâmetros, não se pode cogitar da existência de serviço público, que não se confunde com outras atividades prestacionais, mesmo as chamadas de utilidade pública, que, embora satisfazendo, muitas vezes, necessidades coletivas, não têm caráter de irrecusabilidade, nem se hospedam no regime de direito público. Assim, se se trata de uma atividade prestacional contínua destinada a satisfazer, diretamente, uma necessidade coletiva, em regime de direito público, tal atividade é serviço público. A sua titularidade, o poder-dever de prestá-lo, sua normatização, a fixação do regime jurídico pertinente, as formas de sua realização, o poder de polícia e o exercício da respectiva função fiscalizadora, são matérias que se contêm na esfera de competência conferida pela Constituição.
O Ente estatal, não sendo o titular do serviço público, salvo os modelos de atividade concorrente desenhado pela Lei Maior, não pode legislar, exercer função de polícia sobre o serviço, realizar sua prestação, a não ser por delegação, concessão ou permissão, nos termos da Lei Maior e na forma da legislação infraconstitucional pertinente. Chama-se serviço público a atividade do Estado que deve atender, de forma direta, contínua e concreta, necessidade coletiva. Essa atividade, assim qualificada, é obrigatória para o Poder Público, que recolhe esse dever da Constituição. A necessidade coletiva é definida em norma própria, desde a Constituição até o conjunto de leis situadas abaixo do seu patamar hierárquico. Essa definição normativa obedece às linhas de política programática adotada pela sociedade organizada em Poder e estabelecidas no Estatuto Maior, que é a Constituição. Esta é que resolve sobre a imperatividade e a irrefutabilidade da necessidade coletiva a ser suprida pelo serviço público.
Assim como é a Constituição que diz sobre a titularidade do serviço e os modos de sua prestação, é ela também a dimensionar o poder de polícia dos serviços públicos, como vai ele ser exercido e por que área do Poder Público. Em nosso País, a Constituição é expressa em matéria de distribuição das competências quanto aos serviços públicos, inclusive nomeando-os para fins de determinação da geografia competencial. Assim, há atividades prestacionais que ficam na órbita dos Estados, enquanto outros são deixados como dever dos Municípios (os chamados de interesse peculiar das comunas), e, ainda, os que podem sofrer, genericamente, a incidência de normas emanadas de todas as esferas da Federação, particularizando-se tão-só, em áreas próprias, o exercício da função de polícia (por exemplo, os serviços de transportes coletivos públicos). Ao lado disso, a Constituição desenha o rol de competências exclusivo da União. Nesse mapa, está, por exemplo, o serviço público de distribuição de energia elétrica, realizado, na maioria das vezes, por particulares sob a forma de permissões ou concessões.
Em tal caso, a polícia da prestação do serviço público mencionado é exercida segundo princípios e normas emanadas do titular dessa atividade, isto é, da União (a titular do poder de polícia), diretamente, por órgão de sua administração direta e centralizada, ou, ainda, mediante delegação, sob forma de convênio, ou por outro qualquer instrumento formal que venha a adotar o ente delegante, descentralizando-se, assim, a fiscalização do serviço. Entretanto, mesmo com a delegação, permanece o serviço na titularidade da União (Governo federal, entendida a expressão em sentido amplo, abrangendo, também, o Congresso Nacional). Ao titular do serviço cabe a responsabilidade pelo policiamento da regularidade e da eficiência da prestação. Donde se infere que essa titularidade envolve a competência - exclusiva - do Congresso Nacional para apurar, pelos procedimentos por ele julgados adequados (inclusive comissões parlamentares de inquérito, neste caso, quando diante de denúncias envolvendo fatos determinados) se o serviço público está sendo prestado dentro dos parâmetros legais e de acordo com as cláusulas da permissão ou concessão outorgadas. Antes mesmo de se chegar à CPI - tendo em vista eventuais irregularidades na prática da permissão ou concessão, os primeiros procedimentos devem ser realizados no âmbito das agências reguladoras do serviço. Têm elas competência para impor sanções, decorrentes da apuração em devido processo de direito (due process of law), assegurada a ampla defesa, o contraditório e os recursos inerentes (por força de princípio constitucional inarredável), podendo se chegar, quando e se for o caso, à punição máxima, que é o desfazimento da permissão ou da concessão (chamada, aqui, doutrinariamente, de caducidade da concessão, com o efeito da denominada reversão dos bens do concessionário, a fim de que seja preservada a continuidade da prestação do serviço).
Bem se veja que o princípio da impessoalidade, segundo a lição precisa de BANDEIRA DE MELLO, “... traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções e grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia. Está consagrado no art. 37, caput, da Constituição. Além disso, como “todos são iguais perante a lei” (art. 5º caput), a fortiori terão de sê-lo perante a Administração” .
Aluda-se, ainda, à lúcida e respeitada doutrina de LÚCIA VALLE FIGUEIREDO: “ A impessoalidade caracteriza-se, pois, na atividade administrativa, pela valoração objetiva dos interesses públicos e privados envolvidos na relação jurídica a se formar, independentemente de qualquer interesse político... A ação administrativa, repetimos, deve desenvolver-se tendo em vista os critérios do bom andamento do serviço público... Favoritismos ou desfavoritismos estão proscritos” . Se desfavoritismos, perseguições ou avaliações meramente subjetivas, carregadas de preconceitos, estão proscritos da Administração pública brasileira, como então suportar a ideia de que alguém, pela mera circunstância de ser parente de determinada autoridade, deve ser considerado um inepto, um desqualificado, um incapaz de bem exercer cargo público comissionado? Seria como vigesse entre nós, em relação a essas pessoas, vinculadas a outras por laços de consanguinidade ou pelo casamento, v.g., o “princípio da incompetência” ou “da desonestidade”!
Retorne-se às lições de LÚCIA VALLE: “A impessoalidade implica, refrise-se, o estabelecimento de uma regra de agir objetiva para o administrador, em todos os casos. Assim, como exemplo curial, em nomeações para determinado cargo em comissão, os critérios de escolha devem ser técnicos, e não de favoritismos ou ódios. Não pode a nomeação ser prêmio atribuído ao nomeado, como, também, não pode haver impedimento a nomeações por idiossincrasias” .
Quanto ao tema, permito-me transcrever algumas lições do meu pai, Prof. Valmir Pontes, em seu “Programa de Direito Administrativo”, 5ª. edição, 1978, Sugestões Literárias:
...um dos requisitos do contrato administrativo é a realização de prévia licitação, ou concorrência. Mas a licitação não é necessária apenas como procedimento liminar dos contratos administrativos, porque deve preceder também as compras e as alienações realizadas pelo poder público, bem assim a elaboração de projetos do seu interesse.
Convém notar, entretanto, que a licitação, nome que pelo Decreto-lei n.º 200, de 25 de fevereiro de 1967, veio substituir a tradicional denominação concorrência, do direito anterior, e em cuja significação genérica se abrange a própria concorrência, ao lado das outras modalidades ou espécies desse gênero, só é exigida, de modo geral, como procedimento prévio necessário, ou indispensável, dos atos ou negócios públicos acima referidos, no âmbito da administração direta e no das autarquias. No que diz respeito às empresas públicas e sociedades de economia mista, integrantes da administração indireta, só à legislação pertinente a cada um desses órgãos caberá disciplinar a matéria, em termos que convenham à sua natureza de entidades reguladas pelas formas menos rígidas do Direito Privado, isto é, em termos que não contrariem a sua natural flexibilidade ou simplicidade de movimentos.
Sempre que a administração direta ou autárquica pretender contratar com terceiro a execução de obra ou serviço de interesse público, fazer compras, alienar bens do domínio público ou encarregar técnicas da elaboração de projetos, terá, em regra, de realizar antes uma licitação. Por meio da licitação se assegura a igualdade jurídica entre os particulares, no concernente aos contratos e negócios do interesse do Governo, e também a eficiência dos serviços que se tencionem levar a efeito, dada a possibilidade da obtenção, pelo Governo, de vantagens técnicas e econômicas, através da competição que a licitação estabelece...”.
Parta-se do pressuposto, a tratar da preservação do interesse público, de que a Administração é obrigada a licitar, sempre que quiser adquirir bens, contratar serviços ou obras. Ou mesmo alienar bens, sempre a oferecer igualdade de oportunidades a todos que com ela queiram com ela entabolar negócios.
Em extraordinária obra, que marcou de modo indelével toda uma geração de estudiosos, Alfredo Augusto Becker desenvolve, com firmeza ímpar, o raciocínio de que “... a elaboração do Direito Positivo é uma atividade artística e a obra construída e manejada é um instrumento (a regra jurídica). Ora, quando se trata de estudar a consistência e a atuação deste instrumento, surge a Ciência do Direito... O Direito (regra jurídica) tem natureza essencialmente instrumental. A atividade jurídica que estuda a consistência deste instrumento é atividade científica; noutras palavras, o estudo da estrutura lógica da atuação dinâmica da regra jurídica é Ciência. Porém, o construir estes instrumento é atividade artística. Em síntese, a criação da regra jurídica é Arte, sua interpretação Ciência” .
Sem embargo do fato de que conhecer a norma importa, primordialmente, aferir-lhe a validade, bem como de que esse ato de conhecimento importa a atividade de fazer Ciência do Direito (ou de proceder à sua interpretação), cumpre meditar sobre questão da maior relevância: é possível ou não ao homem, com sua inteligência e razão, conhecer os objetos ou as coisas completamente, tais quais eles e elas são em sua essência? Ou, em outras palavras: se as coisas cognoscíveis têm mesmo uma essência, ser-nos-á dado o privilégio de nela penetrar, desvendando-a por inteiro?
Não é fácil responder a isto. Como já deixamos entrever em outras passagens , relativa -- e consequentemente parcial -- é sempre a visão do homem quanto ao mundo que o cerca, na medida exata de sua incapacidade de fazer com que os objetos que busca conhecer cheguem “inteiros”, “incólumes”, ao seu espírito. As coisas, materiais ou imateriais (uma criação artística, co¬mo uma música, em certa medida é “imaterial”), com as quais mantemos contato de certo não se transportam intocadas ao nosso pensamento, por mais frios e racionalistas que busquemos ser. Tais objetos cognoscíveis, em verdade, quando alvos de um esforço de conhecimento, findam por ser recriados dentro de nós, por obra da ainda que involuntária ação mental do sujeito cognoscente, invariavelmente contaminada por uma dada “herança” ou carga ideológico-axiológica.
Isto por conta de um necessário inter-relacionamento entre o sujeito pensante e o objeto pensado, como bem o diz Maria Helena Diniz , para quem “... conhecer é trazer para o sujeito algo que se põe com objeto...consiste em levar para a consciência do sujeito cognoscente algo que está fora dele... (tornando-o) presente à inteligência”, observa a brilhante mestre paulista que “... na relação cognoscitiva, nos moldes kantianos, (o objeto) não é um ‘ser em si’, como uma realidade transcendente; despoja-se desse caráter de existente por si e em si e converte-se em um ser ‘para’ ser conhecido, um ser posto, logicamente, pelo sujeito pensante como objeto de conhecimento. Aquilo que o objeto a conhecer é, o é não ‘em si’, mas em relação ao sujeito conhecedor” . Já para Goffredo Telles Jr., o ato de conhecimento significa a tradução cerebral de um objeto, é dizer, importa “... o renascimento do objeto conhecido, em novas condições de existência, dentro do sujeito conhecedor” .
Perguntar-se-á se houve, no caso, uma interpretação com efeitos extensivos ou mera utilização da analogia. Pouco importa isto, neste passo, até porque a diferença entre ambas, se existente, é sobremodo sutil. O que é importante é perceber que a mens legis foi uma ou foi outra, a depender do intérprete, sem que se possa, em tom de verdade absoluta, afirmar que qualquer delas tenha sido uma interpretação “correta” ou “errada”. Tanto quanto esta, qualquer outra norma jurídica - posta em conexão com as demais do sistema - terá uma “vontade”, um “sentido” ou um “alcance” a ser determinado, caso a caso, pelo intérprete/aplicador. O que se deve pôr claro, porém, é que esse intérprete-aplicador não se encontra inteiramente livre para indicar qual seja a mens legis. Ainda de Kelsen se extrai a insuperável lição de que essa liberdade esbarra da moldura normativa, a funcionar como uma muralha, um obstáculo a que a percepção lógico-racional do exegeta há de guardar mesura.
Para além da moldura, estar-se-á saindo do próprio ordenamento e caindo no campo do extrajurídico (e, pois, da insegurança jurídica). Voltando ao exemplo de que nos valemos, irracional, e portanto inaceitável, seria supor que a isenção alcançasse os produtores de guarda-chuvas ou de automóveis (estes, sem dúvida, postos ao largo da “moldura” normativa).
Tal não importa dizer que o ato de conhecimento dessa moldura - como fronteira dentro da qual a ação volitiva do intérprete/aplicador se desenvolve - também não acarrete certas dificuldades. Para alguns, a própria fronteira (moldura) pode parecer maior ou menor, e este é problema a exigir reflexão ainda mais profunda e cuidadosa. São inadmitidas, por exemplo, as emendas constitucionais tendentes a abolir a forma federativa de Estado (CF, art. 60, § 4º, I); mas a que Federação está a aludir a Constituição: aquela que pressupõe, segundo a doutrina tradicional, a existência de pelo menos duas esferas de governo? Ou, ao contrário, a que restou criada pela própria Lei Maior, compreendendo, além da União e dos Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal? Adotado o primeiro entendimento, seria possível excluir a pessoa política municipal do concerto federativo; o segundo - que nos parece mais “correto” - conduz a uma resposta negativa.
A interpretação/aplicação do Direito, finalmente, só se tem como adequada quando feita à luz e sob o influxo das normas e princípios e princípios constitucionais. A Constituição, para além de ser a regra suprema do ordenamento e o estatuto da nacionalidade (por via da qual o poder se transforma em competências e são resguardados os direitos individuais e sociais), influi na interpretação das demais regras do sistema a ela inferiores . E ela própria, por sua vez, é um todo sistemático, o que autorizou Roque Antonio Carrazza a assim se pronunciar, com a lucidez de sempre: “Sem dúvida a hermenêutica profliga o exame apartado de artigos da Carta Magna. Insulá-los, dissociando-os do todo harmônico a que pertencem, é encampar as idéias dos ‘tecnocratas’, que, arvorando-se em juristas, superestimam o método literal para a interpretação do Direito” .
A Administração Pública - seja ela exercida pelos órgãos da administração direta ou da administração direta descentralizada (autarquias e fundações públicas) ou pelas entidades da administração indireta (empresas públicas e sociedades de economia mista) se encontra absoluta e irremediavelmente jungida a princípios, expressos ou implícitos, decorrentes da ordem jurídico-constitucional.
Recordando, em feliz passagem, haver sido a expressão Administração Pública definitivamente adotada pela Constituição, ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO não deixa de observar que “... se um dos pilares do Estado de Direito é a delimitação de um regime jurídico administrativo, no ordenamento brasileiro o regime da Administração Pública é, sobretudo, um regime jurídico constitucional-administrativo fundamentado não só em regras e preceitos, mas também em princípios” . Em boa síntese, Adilson Abreu Dallari lembra que a Administração Pública deve ser entendida “... como um conjunto de atividades instrumentais para o desempenho das funções próprias dos Poderes do Estado, quer entendida num sentido mais estrito, correspondente às atribuições do Poder Executivo, quais sejam as de exercer a polícia administrativa, prestar serviços e realizar obras públicas, fomentar as atividades dos particulares que forem de interesse coletivo e intervir nos fatos e atos dos particulares para lhes dar segurança e certeza jurídica,... e se movimenta dentro de um conjunto de princípios e normas que paradoxalmente, ao mesmo tempo em que lhe asseguram privilégios e prerrogativas, impõem limites e restrições inexistentes para os particulares” .
Alguns dos princípios informadores da ordem jurídica, a serem observados no agir do Administrador Público, estão expressamente indicados no Texto Supremo (art. 37, caput): o da legalidade, o da impessoalidade, o da moralidade, o da publicidade e o da eficiência. Outros, implícitos, decorrem de uma interpretação lógico-sistemática da Constituição. Celso Antônio Bandeira de Mello , o mais ilustre de nossos administrativistas, indica quatorze deles, explícitos e implícitos: 1) o da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, já que o interesse da comunidade administrada não pode ser suplantado por outro, de natureza individual ou particular; 2) o da legalidade (ou da legalidade estrita), a importar a completa submissão da Administração às leis (desde que constitucionais); 3) o da finalidade, por via do qual a Administração há de ter sempre por escopo o cumprimento da finalidade da lei e do interesse público; 4) o da razoabilidade, a significar que a Administração “... ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida”; 5) o da proporcionalidade, segundo o qual “... as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas”; 6) da motivação, a exigir que a Administração justifique seus atos, indicando os respectivos fundamentos de fato e de direito e a correlação lógica existente entre eles e a providência tomada; 7) o da impessoalidade, a impedir, por parte da Administração, tratamentos que importem favoritismos ou perseguições, ou seja, qualquer intolerável discriminação; 8) o da publicidade, a exigir do Poder Público inteira transparência em seus atos e comportamentos, mantendo o público de tudo devidamente informado; 9) o do devido processo legal e da ampla defesa, a consagrar a exigência “... de um processo formal regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer que seja e a necessidade de a Administração Pública, antes de tomar decisões gravosas a um dado sujeito, ofereça-lhe a oportunidade do contraditório e da ampla defesa, no que se inclui o direito a recorrer das decisões tomadas”; 10) o da moralidade administrativa, a impor seja ética a conduta do Administrador, vedada a deslealdade, a má-fé, o “... comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício dos direitos por parte dos cidadãos”; 11) o do controle judicial dos atos administrativos, por força do qual ao Judiciário caberá anular atos inválidos e impor à Administração a conduta a que esteja juridicamente obrigada; 12) o da responsabilidade do Estado por atos administrativos, decorrente do art. 37, § 6º, da Constituição; 13) o da eficiência, fluido e impreciso, a seu ver só concebível na intimidade do princípio da legalidade e comparável ao da “boa administração”; e 14) o da segurança jurídica, decorrente da própria essência do Estado Democrático de Direito.
Tais princípios constitucionais trazem em si as características da vinculabilidade e da aderência, as quais exprimem o vigor jurídico de que se revestem, a determinar, por força de sua ampla generalidade, a própria interpretação das regras do sistema constitucional, bem como todas as normas que compõe o ordenamento jurídico. São os princípios, segundo Paulo Bonavides (citado por Romeu Bacellar), “... a alma das Constituições, seu tecido mais nobre, sua energia mais expansiva, seu elemento mais dinâmico, sua categoria mais elevada em termos de juridicidade” .
Tenha-se em mente, ademais, que nenhum princípio constitucional deve ser considerado de forma estanque. Neste sentido a opinião de Carmem Lúcia Antunes Rocha: “... nenhum princípio constitucional deve ser considerado isolado ou autossuficiente. A Constituição é uma lei sistematizada em um conjunto de normas que se encadeiam, coordenam-se, enlaçam-se e harmonizam-se para adquirir um significado conjunto, para ser pleno, inteiro”. E acrescenta a juspublicista mineira, hoje Ministra do STF: “... Os princípios constitucionais marcam o sistema jurídico de um estado, demonstram-se em cada norma que nele se introduza, apresentam-se esclarecendo o modelo básico adotado como direito e ostentam o ideário social e a ideologia jurídica a realçar o conteúdo e a forma de justiça concretamente buscada” .
Não sem razão se afirma ter o princípio da moralidade primazia sobre os demais, já que toda a atuação administrativa parte dele e dele se vale para a persecução do atendimento do interesse público. Acha-se ele, como bem lembra Bandeira de Mello, em tão elevada esfera que finda por ser “... eficientemente protegido no art. 5º, LXXIII, que prevê o cabimento de ação popular para anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente...” . Há de perquirir-se, pois, em cada caso, se o ato foi praticado em harmonia com a moralidade pública, com a finalidade da norma, ou, ao reverso, em rota de colisão com o igualmente constitucional princípio da razoabilidade, a subtrair do Administrador a faculdade de agir com “... falta de sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Não serão apenas inconvenientes, mas também inválidas, as condutas “... desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei” .
O Estado, como estrutura orgânica à qual a Constituição outorga competências definidas e a serem exercidas sob os gizamentos normativos validamente editados, há de ser compreendido, sob certo ângulo, como uma entidade prestadora de serviços públicos. Não vindo a ser um fim em si mesmo, mas mero meio ou caminho para a obtenção de benefícios ou utilidades coletivas (constitucionalmente estabelecidas, em última análise), o Ente estatal age por intermédio de seus órgãos de governo, cada qual dentro de sua própria esfera competencial. Daí a conclusão de que, quando manifesta sua vontade, o faz por meio do exercício das funções legislativa, jurisdicional, administrativa e de governo. Todas essas funções estatais, evidentemente, se concretizam mediante atos (legislativos, administrativos, jurisdicionais ou de governo), oriundos daqueles órgãos governativos e praticados, enfim, pelos agentes do Estado.
Estes, também denominados agentes públicos, constituem o grupo genérico de “... sujeitos que servem ao Poder Público, como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando o façam apenas ocasional ou episodicamente. Quem quer que desempenhe funções estatais, enquanto as exercita o faz na condição de agente público. Por isso, a noção abarca tanto o Chefe do Poder Executivo (em quaisquer das esferas governativas), como os senadores, os deputados e os vereadores, os ocupantes de cargos, funções ou empregos públicos da Administração direta dos três Poderes, os servidores das autarquias, das fundações governamentais, das empresas públicas e sociedades de economia mista nas distintas órbitas do governo, os concessionários e permissionários de serviço público, os delegados de função ou ofício público, os requisitados, os contratados sob locação civil e os gestores de negócios públicos”
Cabe referir, neste ponto, ao fato de que, não sem motivos têm os constitucionalistas e administrativistas levantado óbices à tradicional classificação da pública Administração em “direta” e “indireta”, simplesmente. Primeiro porque, ainda antes da entrada em vigor da Constituição de 1988, já não tinha sentido algum colocar as fundações públicas e as autarquias, cuja natureza jurídica é a idêntica, sob o mesmo enquadramento das empresas públicas e das sociedades de economia mista. Enquanto estas últimas – sejam as destinadas à prestação de serviços públicos ou aquelas voltadas à exploração de atividade econômica - integram a chamada administração pública indireta, aquelas (as autarquias e fundações) - que evidentemente não se confundem com os órgãos da administração direta centralizada, como os Ministérios ou as Secretarias estaduais ou municipais - a rigor devem ser vistas como integrantes da administração pública direta descentralizada.
Do Estado, muito mais que do cidadão administrado - a quem se impõe o reto cumprimento da ordem jurídica - o que se espera é o exemplar respeito à Constituição e às leis. Assim, quando este está a agir no campo da atividade administrativa, tendo seus atos repercussão perante os particulares, parte-se do natural pressuposto de que estes - praticados, como se disse, pelos agentes públicos - não apenas gozam do atributo da presunção de validade ou legitimidade (a qualidade de “... se presumirem verdadeiros e conformes ao Direito, até prova em contrário”), mas, igualmente dos da imperatividade (“... qualidade pela qual os atos administrativos se impõem a terceiros, independentemente de sua concordância”, decorrente do que Renato Alessi chama de “... poder extroverso, que permite ao Poder Público editar provimentos que vão além da esfera jurídica do sujeito emitente”), da exigibilidade (“... qualidade em virtude da qual o Estado, no exercício da função administrativa, pode exigir de terceiros o cumprimento, a observância das obrigações que impôs”) e da executoriedade (“... qualidade pela qual o Poder Público pode compelir materialmente o administrado, sem precisão de buscar previamente as vias judiciais”) . Mas isto, é claro, desde que tais atos sejam expedidos nos exatos contornos legais.
O administrado, portanto, parte do natural pressuposto de que os atos da Administração são legítimos e executáveis de pronto. De igual forma fica ele convicto de que, embora simplesmente autorizativos, tais atos gozam do atributo da imperatividade, de forma que conduta contrária àquela autorizada pode (e deve) importar efeitos nefastos posteriores. Até por outra razão se há de explicar esse proceder: segundo o superior princípio da moralidade administrativa - em cujo âmbito se compreendem os princípios da lealdade e da boa-fé - a Administração “... haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos” . Assim, “... por força mesmo destes princípios da lealdade e da boa-fé, firmou-se o correto entendimento de que orientações firmadas pela Administração em dada matéria não podem, sem prévia e pública notícia, ser modificadas em casos concretos para fins de sancionar, agravar a situação dos administrados ou denegar-lhe as pretensões” .
A Administração está, exatamente por só possuir o poder-dever de atuar no campo do estritamente legal, obrigada ao cumprimento das decisões judiciais. Mas, desgraçadamente, assim ela nem sempre se conduz. Bem anotou o Ministro Celso de Mello, em decisão proferida no MS 23.576-4/DF, aos 14.12.99: “... o regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não tem condições de subsistir quando as instituições do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as Leis... pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição... Nenhum órgão do Estado - situe-se ele no Poder Judiciário, no Poder Executivo ou no Poder Legislativo - é imune à força da Constituição e ao império das Leis”.
Todavia, acrescentando, a cada dia, mais um aos incontáveis e lastimáveis exemplos recentes, o Executivo - tanto na esfera federal, quanto na estadual e municipal - insiste em não se quedar mesuroso às determinações legais e pretorianas, mercê de uma postura arrogantemente voltada ao privilegiamento daquilo que, a seu exclusivo juízo, constituem os “superiores interesses públicos”. Lamentável é que não se perceba que não pode haver interesse público maior do que o consistente na preservação da ordem jurídico-constitucional. Isto, em primeiro lugar, importa clara desobediência por parte da Administração - que se pode colocar acima do bem e do mal, às decisões proferidas pelas Cortes, estas, muitas vezes, já transitadas em julgado. Não raro, portanto, faz-se pouco dos institutos do direito adquirido e da coisa julgada. E ignorar de tais institutos - que não passam de manifestações pontuais do superprincípio da segurança das relações jurídicas – importa violentar a Constituição. É, sim, retornar à barbárie.
Promovendo, muitas vezes, abusivas interpretações das normas gerais, despachos e decisões - num contorcionismo exegético digno da mais profunda repulsa - as autoridades administrativas tentam justificar seu desapreço à ordem jurídico-constitucional com as mais extravagantes explicações. Eis o alerta do eminente Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADIn 293: “A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades são serão jamais ofendidos. Ao STF incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada”. Não apenas ao STF, acrescente-se, mas a todos os órgãos do Poder Judiciário!