CONTRA O LACANISMO DE CADEIRA

Dentro e sobretudo na borda da minha inserção na psicanálise lacaniana, existe uma certa posição que me inquieta sobremaneira, uma tendência demasiadamente francesa que alguns analistas tomam.

Que o analista entra em cena como função e que a relação analítica deve ultrapassar a dimensão imaginária nós já sabemos, mas uma coisa que devemos desconfiar é da conclusão, nada lógica, que isso implica em ocupar uma posição distanciada do analisando. Como fazer relação à distância, como relacionar-me se o Outro (o analista) quase não está lá? A esse lacanismo ortodoxo, por muitas vezes frio e quase apático, eu chamo de lacanismo de cadeira.

Lacan pontua, a partir de Freud, que o analista na relação analítica deve ocupar a função de espelho. Ora, ocupar a função de espelho não implica agir como um. O espelho é uma superfície plana e frígida, o analista, por sua vez, possui corpo, contorno e faz semblante. O analista está ali, e deve estar.

Um mal hábito que muitos lacanianos reproduzem, é pensar que a psicanálise construiu-se como um salto de Freud a Lacan, ignorando sobremaneiramente as contribuições que outros analistas fizeram ao campo e que põe em xeque essa proposição, dada axiomaticamente, sobre a posição do analista.

Qual a função do cuidado na psicanálise de Lacan? Devemos nos perguntar isso. Quando investigamos, vemos que Lacan deu muito pouco (ou nenhum) espaço ao cuidado em seu ensino. Suas proposições são fatais e devem ser levadas em conta. Os Escritos é um livro que deve estar na cabeceira de qualquer analista, mas não deve ser o único. O cuidado, percebemos em outras vertentes, é estruturante. Para além das funções e posições que povoam o espaço simbólico existem corpos, pessoas reais, que encarnam esses lugares e constituem a formação da vida subjetiva (emocional e sexual) do sujeito. Essas pessoas, que os lacanianos insistem em chamar de imaginárias, existem. O analista, por sua vez, existe.

Cuidado também é linguagem. O aparelho simbólico, esse que nos situa na realidade, constitui-se a partir das relações de cuidado, é isso o que percebemos quando colocamos Winnicott e Bion em diálogo transversal com Lacan. Dizer isso é uma blasfêmia, eu sei, mas devemos blasfemar Lacan. Odiá-lo, tirá-lo do discurso do mestre e ocupar uma posição cética é a única forma possível de estudar Lacan. Ele é um autor que deve ser utilizado, não seguido.

A dimensão imaginária, essa na qual Lacan coloca as relações que construímos, possui seu espaço na relação analítica e no processo interventivo do analista. A nossa lingua, antes de sintomaticamente a dizermos “nossa” é a língua materna, e a aprendemos através do semblante que incorpora a função estruturante de cuidado, a pessoa que chamamos de mãe (ou o cuidador primordial).

Se Levi-Strauss foi acusado de praticar um kantismo sem sujeito, os lacanianos podem ser acusados de praticar uma psicanálise sem pessoas. Sua impessoalidade recai num modo sintomático de ser analista (embora ser analista seja sempre um modo sintomático). O analista não é um analista da língua, o analista não é um linguista (e nem simplesmente um linguistérico), é alguém disposto a ouvir (ou seja: cuidar), a estar presente, a se fazer presença. Que somos falados pela língua que nos atravessa isso não discutimos, mas somos sempre algo além do que aquilo o que nos pressupõe e localiza.

A língua é uma fratura e o ser falante consequentemente é não-todo. Sua fratura, no entanto, se encontra no modo como, nas relações, ela se instala no sujeito: ela também é o entre. Não podemos dizer que a lingua é a coisa e nem mesmo A coisa, mas que ela é, simplesmente uma coisa (uma coisa importante, mas ainda assim, uma coisa). E essa uma coisa (analisada uma a uma) que se instala na relação entre-coisas acontece justamente porque duas coisas se relacionam. A língua é uma relação, um relacionamento, um vínculo. Choramos porque queremos ser cuidados, falamos à mãe porque exigimos sua presença. Não podemos descaracterizar a língua e retirar dela o entre através do qual a constitui. A lingua se faz nas relações de cuidado, a língua pressupõe um ambiente cuidador (Lacan avec Winnicott).

Ferenczi nos adverte: existe uma linha tênue entre a neutralidade e a apatia. Devemos prestar atenção nessa linha, apostar no cuidado tem muito mais potência do que apostar numa neutralidade (suposta, sempre suposta). O analista é função e é pessoa, será possível distanciar essas duas coisas? Falamos tanto da função do analista e sua importância pro processo analítico que esquecemos da função da pessoa. Quando olhamos por esse lado, o imaginário toma um espaço muito maior na clínica (devemos lembrar que imaginário e simbólico fazem um nó). Esse recuo frente ao analisando que os lacanianos ortodoxos insistem, pode recair em um distanciamento. Um certo grau de recuo pode ser saudável (à medida em que recuo na cena analítica para que o analisando possa aparecer em evidência como sujeito), mas a distância não é outra coisa senão desestruturante. Ao mesmo tempo, a posição de pessoa que se coloca em cena convoca o outro também a se colocar em cena, não apenas de maneira identificatória ou projetiva, mas na medida em que o Negativo do Outro evoca nas relações a Alteridade, o reconhecimento: identifico-me a mim a partir de um Outro que enantiamorficamente se coloca e me contradiz, esse Outro aparece e me chama, mas não sou Ele, sou Outra coisa. A dialética é um processo relacional e vincular a partir do qual as duas partes que se relacionam se reconhecem enquanto sujeitos relacionados mas também enquanto sujeitos singuularmente distintos.

O cuidado é convocatório, o acolhimento e a empatia proporcionam um espaço através do qual o desejo pode entrar em cena (se assim desejar). Não existe liberdade sem cuidado. A autenticidade requer antes de qualquer coisa, um espaço onde saiba que pode se manifestar, o cuidado de si, essa construção singular do desejo e essa mobilização do sintoma, podem sim ser suscitados por um cuidado que vem de um Outro que aparece convidativamente, disposto a se fazer ambiente para um sujeito fragilizado que (pode) precisa(r) desse espaço e dessa conduta estruturante. É sobre como a partir da presença eu posso dar espaço para que o outro apareça em evidência, na distância, por sua vez, ninguém está em cena. O recuo persiste na presença, devo lembrar sempre que o protagonista absoluto do processo analítico é o analisando.

Sentar numa cadeira e ficar em silêncio não faz de ninguém um analista. Alguns lacanianos se escondem na função analítica e gozam dessa posição, o desejo do analista, força motriz da análise, também é cuidado e desejo de cuidado. Existirá uma análise sem isso? Não podemos dizer que exista um sujeito sem linguagem, da mesma maneira, não podemos dizer que haja uma linguagem sem subjetividade e presença.

O cuidado, a emoção e a empatia comunicam algo crucial: toda demanda é demanda de amor (Klein e Winnicott souberam disso muito tempo antes de Lacan). Colocar Lacan no discurso do mestre é uma armadilha fatal; o que proponho aqui, frente ao lacanismo ortodoxo, é um lacanismo rizomático ou talvez, um lacanismo transmatricial. Devemos relembrar que a teoria lacaniana é não-toda, ela possui suas fraturas, suas feridas e suas falhas, quando insistimos numa aparência de completude produzimos e reproduzimos violências na clínica. Existe psicanálise para além do silêncio, existe psicanálise para além do nada.