Você

Te proponho uma brincadeira séria aqui. Pensa comigo: Que tal a gente sumir, abandonar tudo, correr o mundo? Largar emprego, estágio, família, casa, faculdade, rotina? Picar a mula, meter o pé, sem rumo e sem direção?

Você andando na beira de uma estrada, aparentemente sem rumo, sem lugar certo para chegar, para ficar ou quem encontrar. Por que você anda? Para onde vai? O que espera com isso? Motivação? Repare que aqui não estou falando de indivíduo em situação de rua. Você não habita nenhuma marquise, ninguém te encontra duas vezes no mesmo lugar. Você anda e anda muito.

Para toda e qualquer pessoa que se pergunte onde ela vai ou para onde estava indo, haverá algum tipo de resposta, mesmo que não seja convincente ou que seja verdade, quase sempre haverá uma resposta. Esse tipo de pergunta, para você, não faz sentido.

Aqui eu pensei em você sendo um bom moço: estudante dedicado cursando sexto período de administração, fazendo um estágio em um escritório de uma multinacional do petróleo, muito exigente e concorrido. Há muitos querendo o seu lugar e é claro que você sabe da importância de dar o seu máximo por essa possibilidade de efetivação.

Morar sozinho requer uma situação financeira melhor do que a sua, morar na casa de sua mãe não é uma questão de escolha. Seu salário é parte fundamental do orçamento para cobrir as despesas da casa, a mensalidade do curso é responsabilidade sua também, você precisa ser vendedor de seguros de vida para sobreviver.

De segunda a sexta, acorda com o auxílio de um despertador estridente exatamente às quatro e meia da manhã, estuda por pelo menos uma hora todos os dias antes de sair de casa, daí adiante todas as suas ações do dia precisam ser perfeitamente cronometradas para que todas as atividades sejam concluídas e você consiga resistir mais um dia, mais um mês sem que nada se acumule ou desmorone. Chega em casa às dez e meia depois de uma longa viagem em um trem lotado e quinze minutos de caminhada por ruas mal iluminadas, segurando forte as alças da mochila com medo de encontrar de frente com a dupla em uma moto.

Você se cobra muito por não ter uma vida social mais ativa, queria ter tempo para sair com os amigos, queria ter tempo para arranjar amigos. As redes sociais te frustram. Seu dinheiro não dá para nada.

Nos fins de semana estuda, faz relatórios e vai à igreja. A religião é elemento fundamental para sua família. É muito devoto de Santa Luzia graças à sua irmã Sonia, deficiente visual desde o nascimento. Frequentam todos os domingos às dez da manhã a missa na pequena capela próxima ao Centro. À princípio, acompanhava na condição de guia, tomou gosto.

Desde seus quinze anos, é apaixonado por Helena, menina bonita que mora do outro lado da rua. Ela nem desconfia. Queria muito ter coragem de falar com ela, não necessariamente declarar o seu amor, queria apenas conversar, se aproximar um pouco, ver o sorriso dela de perto, quem sabe sentir o seu hálito, segurar a sua mão. Fazê-la se apaixonar, mas você nunca conseguiu. Suas pernas travam, suas mãos ficam suadas só de pensar, até dor de barriga você sente. Pela fresta da janela, já viu Helena ter mais de dois pretendentes, namorar por mais de um ano, sair para festas com amigas. Queria saber para quais festas ela vai para, quem sabe, lá tomar coragem e sorrir para ela. Hoje está com vinte anos e esse dia ainda não chegou, mas ainda sonha com Helena. Talvez um dia.

Um dia, tal qual uma metamorfose kafkiana, você surta, se transforma em uma criatura nova, estranha, grande demais para caber em seu quarto, em sua rotina, em sua vida. Uma criatura mítica, de formas conhecidas, resistente ao tempo, a fome. Percorre longas distâncias, solitário, invisível. Quem o vê, jura ser um homem qualquer, maltrapilho, mas é outra coisa, completamente incompreensível, extremamente convicto, quase indestrutível e impossível de domar: você é um andarilho.

Luiz RRosa
Enviado por Luiz RRosa em 11/05/2024
Código do texto: T8060683
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