Sobre "As Intermitências da Morte"
Concluído a leitura de as Intermitências da Morte, de nosso saudoso José Saramago, tive que entrar em uma leve ressaca literária devido ao livro denso e de leitura difícil para cabeças pequenas. Não é fácil lê-lo, não dá para parar, até porque a estrutura da escrita é intensamente imparável. Não temos a comodidade dos parágrafos, as pontuações clássicas nossa de cada dia; realmente só depois de, no mínimo um livro inteiro, é que se pode começar a entender toda a pomposa obra desse autor. Estou iniciando uma jornada de quatro obras, a saber: as intermitências da morte (já em fase de conclusão), ensaio sobre a cegueira, ensaio sobre a lucidez e o evangelho segundo jesus cristo, esse último será o primeiro da jornada de leitura.
Pois bem, voltando ao relato de minhas impressões e de o quanto ler Saramago é desafiador, exige uma mente bem preparada e no meu caso foi bem pesado. Sua linguagem de alto grau de intelectualidade, língua original de Portugal e o mais forte: a forma única, original do uso de parágrafos, que são bem escassos por sinal, e o tão falado uso da vírgula. É uma leitura pouco comum que vamos (e temos) que nos acostumar. As pontuações são muito mais criadas pela intuição no momento do entendimento que vai se revelando a medida de nosso próprio entendimento do que ele quer dizer. É incrível como ele consegue sair do trivial da língua dentro de outro contexto; é no processo da própria leitura que se vai entendendo e criando as intenções que o texto propõe. Não é fácil ter esse primeiro contato, pois uma vírgula, onde normalmente deveria ser um ponto ou até mesmo uma interrogação, aí é o leitor que dará o sentido “correto”, mas para isso terá quer contextualizar, interpretar, compreender... E só então “pontuar” e seguir em frente, tudo isso em um lapso de tempo que só quem lê este gênio saberá.
É um tipo de leitura que não dá para ler de maneira tradicional. O fôlego literário, digamos assim, tem que ser sempre de único sopro; não dá para respirar por pouco tempo, tem que ser por muito tempo e direto, pois os parágrafos não deixam; eles não te deixam parar. Você é forçado a iniciar e não parar no meio do caminho, caso contrário se perderá e não saberá mais o caminho de volta; é um tipo de texto não “arrumadinho”, os pedaços são grandes por demais e não se dividem e subdividem... Os parágrafos são bem extensos não te deixam para e provavelmente ficará procurando qual momento acaba; é raro momentos de “lucidez” textual daquele que já estamos acostumados a ver e ler. Saramago é único. Inclusive nos parágrafos. Uma ou duas páginas até. Nem pensar em se perder em meio ao texto. Não são constantes as paradas textuais. Portanto leia só, sem interrupções e se isso acontecer levará tempo para retomar. Saber em que parágrafo ficou será desafiador. Às vezes o texto todo de uma página (frente e verso) se configura nisso.
É fantástico como vão se construindo laços de familiaridade com a escrita quando se dedica tempo em lê-lo. É um dos poucos ou raros autores que nos obrigam a sermos contantes. Ainda falando das pontuações, as iniciais maiúsculas em pontos continuando ou pontos parágrafos se tornam inexistentes do ponto de vista gramatical levando a uma atenção mais apurada já que este gênio da literatura não costuma dar tudo pronto e entendível por si só.
É uma experiencia única, porém única em cada obra, em cada palavra, em cada ponto de vista. É algo que cansa; ler suas obras pesa na alma, é uma conivência e só na convivência te fará entende-lo. Vou confessar uma coisa engraçada: minha experiencia com Saramago se deu de maneira mais prazerosa e fluída: leio seus livros com o sotaque português. Leio como se fosse um. É engraçado. Dessa forma consegui interagir mais facilmente às obras. Ler com o sotaque original, os termos, palavras, expressões são todos originais e fieis ao idioma do autor: foi um pedido dele que não alterassem isso. Portanto não verá tradução para o português do brasil. Recomendo uma pesquisa prévia e durante suas leituras, existem expressões que cotidianamente não nos pertencem.
Agora, especificamente com as intermitências da morte, digo que foi e será sempre instigante. Ele nos coloca em meio a um caos real. Nos joga a uma realidade que sempre esteve lá, em nossa vida e em nossa cara. Nos traz uma reflexão. Uma obra que mergulha nas complexidades da condição humana diante da morte. Com sua prosa única e inconfundível, nos leva a refletir sobre a vida, a mortalidade e o significado da existência. No enredo, somos confrontados com um mundo onde a morte decide suspender suas atividades, deixando as pessoas imortais. Essa premissa aparentemente fantástica serve como pano de fundo para o autor explorar as consequências desse evento inimaginável. A narrativa nos conduz por um emaranhado de situações e emoções, revelando as diferentes reações das personagens diante da ausência do fim inevitável. Utiliza sua habilidade única para entrelaçar realidade e fantasia, criando uma atmosfera que desafia o leitor a repensar suas próprias crenças sobre a vida e a morte. Através de diálogos perspicazes e reflexões profundas, o autor nos convida a contemplar a natureza efêmera da existência humana e questionar nossas atitudes diante do desconhecido. Além disso, José Saramago tece uma crítica sutil à sociedade contemporânea, explorando como a imortalidade afeta as estruturas sociais, econômicas e políticas. Ao fazer isso, ele nos instiga a considerar as implicações éticas e morais de nossas próprias escolhas e ações. Em suma, "as intermitências da morte" é uma obra que vai muito além de uma simples narrativa sobre um conceito fantástico. É um convite à reflexão profunda sobre nossa própria finitude e as complexidades da condição humana. Saramago nos presenteia com uma obra literária que ecoa muito além das páginas do livro, deixando-nos com questionamentos e reflexões que perduram muito tempo após o término da leitura.