CRIANÇAS “PREMIUM”
Lá vai a criança “premium” ... Aonde irá ela agora? Acabou de chegar da escola e lá se vai novamente...
Será que vai à aula de reforço ou ao Curso de Inglês? Se for menina, talvez vá ao balé... Mas pode ser o curso de violino, de tae-kwon-do, a aula de natação ou a academia de ginástica simplesmente. Talvez vá ao psiquiatra, à psicoterapia, ao fisioterapeuta... ou ao fonoaudiólogo. São tantos os lugares onde essa criança “premium” tem de ir, que nem dá para imaginar! Por isso ela é “premium”, tentando obter o seu “selo de qualidade”, uma versão que os pais querem atingir a todo o custo, quase sempre por sugestão da escola ou por soberba.
Por trás disso, está a lógica de transformar crianças em produtos nota mil para que a educação seja considerada “completa” e os pais se sintam “aliviados” no seu afã de fazer “tudo pelos filhos”. Ao escolherem uma escola “ideal” para eles, os pais, normalmente, optam por aquela que já começa cheia de metas a cumprir. No fundo, todos sabem que dificilmente as crianças atingirão tantos objetivos. Mas... quem sabe, se seu filho fizer tudo o que a escola demandar, não se torne aquele adulto de sucesso, devidamente lapidado?
Disso decorre o fato de que, atualmente, as crianças passam por uma quantidade absurda de tempo em “treinamento”, o que poderia ser bom, se o foco fosse mesmo a criança “real” que existe ali. Mas, em verdade, é a escola e/ou os pais que precisam “apresentar resultados”. Eis, então, que a criança fica sob pressão o tempo todo. E aí começam a surgir os primeiros "rejeitos" do peneiramento, ou seja, aquelas crianças que não aguentam mais essa lógica absurda.
Algumas (poucas) vão mesmo cumprir todo esse “roteiro premium”, adaptam-se a essa expectativa para caber no furinho da peneira, conseguem o selo de exportação, sendo aceitas em qualquer faculdade, performando em qualquer vestibular. Elas dominaram a arte de se polir até ficarem em carne viva. Mesmo que não queiram os cursos mais competitivos, vão cursá-los, não podem descartar os anos de investimento em refino e processamento, trocando o talento e a aptidão pela mais valia salarial. Eis aí a nossa indústria escolar fazendo o que de melhor sabe fazer: peneirando e tentando refinar crianças.
Porém, a maioria acaba mesmo é perdida, não consegue encontrar sentido no que está fazendo e não apresenta o desempenho esperado. Então, vem o diagnóstico (geralmente escolar) de algum “transtorno”, que precisa ser tratado com urgência. Após tais diagnósticos, um ou mais profissionais são convocados para ajudar a criança a voltar novamente aos processos de refinamento e polimento conduzidos pela escola, com a conivência da família.
Os pais, por sua vez, precisam trabalhar mais e mais, se ausentar do dia a dia e do verdadeiro cuidado, para conseguir mais dinheiro para dar o “melhor” para seu filho. Vimos, por amor, muitos pais darem leite ninho no lugar de leite materno, assim como hoje vemos pais se engajarem no sufocamento de seus filhos, pela busca do padrão de qualidade que a escola diz oferecer.
Após várias etapas de trituração, observamos grupos de crianças e adolescentes assustados e diminuídos, não sabendo o que mais precisam fazer para serem amados. Sabem apenas que precisam se destacar, serem os melhores. Afinal, como muitos dizem, “É a única coisa que fazem na vida!” A maioria segue ou já seguiu algum tratamento medicamentoso e não é raro vermos um aumento na narcotização entre os adolescentes: uso e abuso frequente de álcool, energéticos, cigarros eletrônicos, para não dizer drogas mais pesadas.
Alguns não conseguem, nem assim, lidar com isso e recorrem ao suicídio ou à “matança” escolar. As escolas ficam chocadas por um tempo e, depois de algumas reflexões, contratam mais especialistas para ajudarem diretores, coordenadores, professores e alunos a suportar tudo isso. Todavia, de nada valeram (ou vão valer) mais treinamento intensivo ou mais medicamento ministrado. Os assim considerados “refugos” vão ficando no caminho, faz parte do processo de refino. Pesquisas recentes garantem que cerca de 50% dos estudantes brasileiros não terminam o Ensino Fundamental e Médio na idade correta. A escola impõe atualmente às nossas crianças um elevado estresse, com suas demandas sufocantes e inviáveis. O suicídio entre os jovens é a segunda causa de morte nessa faixa de idade. A síndrome de Burnout passa a ser algo comum entre adolescentes.
Essa pedagogia da soberba tem grande influência na construção da sociedade em que vivemos. Ensinamos as crianças a ignorarem o ponto de vista dos outros (a menos que sejam “autoridades” com respostas "corretas"). Incentivamos cada um a ser o melhor, não importa o caminho a ser seguido, nem o que significa ser o melhor. O pensamento crítico, a criatividade, a inovação, a relação leve com o saber e a curiosidade são aspectos descartados para gerar jovens adultos insensíveis e afetivamente frágeis, sempre em busca de aprovação e reconhecimento. A empatia, a compaixão, a fraternidade e o vínculo, que nos permitiam ver o mundo pelo prisma do outro, foram descartados nesta incrível máquina de refinamento.
Eis que aprendemos assim nas escolas, repetimos isso na vida em sociedade. “Tradição!”, repetem todos! Mas quem é que se lembra do alerta de Gustav Mahler de que a “tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo” ...
Ribeirão Preto, 17 de abril de 2024