A “guerra ao tráfico de drogas” nos morros do Rio de Janeiro num debate sobre estado, território e estratificação social a partir do documentário “Notícias de Uma Guerra Particular ”, de Kátia Lund e João Moreira Salles de 1999

Nos anos 1980 e 1990 “telejornalismo e teleficção compartilhavam convenções de linguagem que favoreciam a invenção do Brasil branco, rico, moderno, glamuroso, liberal” (HAMBURGUER, 2008, p. 554). Considerado um filme do chamado “cinema da retomada”, Notícias de uma guerra particular, lançado em 1999, tem por característica se diferenciar deste padrão promovido pela televisão brasileira.

Audacioso no conteúdo, realiza o resgate de um tema já apresentado no passado em filmes como Rio 40 Graus; Rio Zona Norte e Cinco vezes favela, qual seja, a vida nos morros cariocas e seus conflitos. Seu pioneirismo no ciclo do “cinema de retomada” aponta uma clara interlocução com filmes posteriores que tratam de assuntos idênticos ou correlatos. Cito como interlocutores diretos Cidade de Deus; Uma onda no ar; Ônibus 174; Carandiru; Prisioneiro; Falcão, meninos do tráfico; Antonia e Tropa de Elite (HAMBURGUER, 2008).

Notícias de uma guerra particular é um documentário que nos convida para a reflexão sobre o que é, na prática, a política de “guerra às drogas”. Pode-se constatar, de início, a identificação de três segmentos da sociedade: o traficante do morro, a polícia civil e a militar, e o morador do morro.

As interseccionalidades no interior dos estratos mais pobres da população carioca em relação ao racismo com a população afrodescendente, especificamente os homens jovens, e suas divisões territoriais são fenômenos que podem ser identificados no decorrer do filme. Nos chama a atenção quando policiais sobem o morro com presos ao invés de descer o morro para autuá-los em uma delegacia. Passando de uma visão Weberiana para uma perspectiva Marxista, substituindo “estrato” por “classe”, podemos considerar que o morador do morro e o traficante constituem o proletariado e o exército de reserva e, dependendo do desalento em que alguns se encontram, até mesmo o “lumpemproletariado”. E a polícia pertence a uma classe diferente dos outros dois segmentos, qual seja, à classe média. Principalmente se levarmos em conta que o policial é um agente do estado e, em razão de seu papel, não pertencente à burguesia (ou classe dominante).

Quando falamos do morro carioca devemos ter em mente sua origem. O morro passa historicamente a ser considerado uma “opção” de habitação para a população urbana do Rio de janeiro a partir de dois grandes eventos. O primeiro em janeiro de 1893 com o despejo dos moradores remanescentes de um dos maiores e mais famosos cortiços do Rio de Janeiro: o Cabeça de Porco. Constituído essencialmente de um corredor central e duas longas alas com mais de uma centena de casebres e outras pequenas ramificações com mais casebres e tantas outras cocheiras, estima-se que o Cabeça de Porco chegou a ter quatro mil moradores. Àquele tempo o argumento era a saúde. O prefeito da época, Barata Ribeiro, acompanhado de Emídio Ribeiro (engenheiro municipal), Arthur Pacheco (médico municipal) e Frederico Froes (secretário da Inspetoria Geral de Higiene) se fizeram presentes no ato. O real motivo do despejo era o interesse imobiliário do terreno. Tal se deu em razão da região; em que havia sido realizado um forte investimento público no planejamento urbano que resultou na sua valorização (CHALHOUB, 1996).

A população subempregada, desempregada e desalentada – o “exército de reserva” e o “lumpemproletariado”, cuja lógica capitalista garante os baixos salários nas “negociações” trabalhistas do proletariado – é enxotada do espaço urbano para debaixo do tapete; não faz parte do projeto da cidade. Este é um fenômeno promovido pelo Estado que, como veremos, se perpetua no tempo. Marielle Franco viria a definir muito bem este fenômeno ao concluir suas considerações sobre o projeto de cidade que se deseja ao se deixar de lado uma proposta de cidade de direitos e optando-se pela ““a cidade-mercadoria”, sustentada no lucro, nos grandes empreendimentos, e em uma espécie de limpeza da população que não pode ser absorvida, empurrando uma grande quantidade de pessoas para o sistema penal ou para a periferia” (FRANCO, 2018, p. 26).

Outro contingente que viria a se somar aos ex-moradores de cortiços seriam os soldados que retornaram do conflito de Canudos que deixaram de receber soldo e aguardavam promessas de moradia pelo governo federal. Tanto o primeiro contingente como o segundo instalaram-se no Morro da Providência, localizado próximo ao Cabeça de Porco. Morro que passou a ser apelidado de “favela” em razão da semelhança que havia entre a vegetação existente nesta com a da região do conflito de Canudos. Desde então este modo de habitar o urbano do Rio de Janeiro e outras cidades não parou de aumentar. Muitas das vezes pelos mesmos motivos.

Hoje verificamos que a sociedade tem uma visão conservadora sobre o significado de favela. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE conceitua as favelas como “aglomerado subnormal” (FRANCO, 2018, p. 46).

É historicamente relevante registrar que anteriormente, no período de constituição da primeira favela, ainda ao tempo dos cortiços cariocas, já havia a “construção da noção de que “classes pobres” e “classes perigosas” – para usar a terminologia do século XIX – são duas expressões que denotam, que descrevem a mesma “realidade”” (CHALHOUB, 1996, p. 19). O mesmo tipo de paralelismo falacioso alcança os ambientes institucionais: “dada a expressão “classe pobres e viciosas”, vemos que as palavras “pobres” e “viciosas” significam a mesma coisa para os parlamentares” (CHALHOUB, 1996, p. 22).

Filmes nos do final dos anos 1950 e início dos 1960 já traziam para as telas o modo de vida dos morros cariocas. Uma confirmação na narrativa e nas imagens de tudo que os registros históricos dos morros já nos diziam. Em apertada síntese, uma dicotomia no território urbano dividindo negros de brancos; pobres de ricos.

Notícias de uma guerra particular se diferencia dos filmes do chamado “cinema novo” que abordavam o tema “favela” por apresentar um novo fator: o tráfico de drogas no morro e a guerra que se criou em torno deste fenômeno. Logo nos primeiros minutos, após o fim de uma narração descritiva feita por uma voz “over” temos uma narrativa breve do Capitão Rodrigo Pimentel relatando que vive todos os dias uma guerra: “estou participando de uma guerra, acontece que estou voltando para casa todo dia. Esta é a única diferença”.

Podemos nos perguntar: Como que o processo desta “guerra” se inicia a partir de um histórico de pessoas comuns excluídas pela administração da cidade? Por volta dos 16min 50 seg o documentário apresenta a narrativa de Paulo Lins sobre a origem e a relação destas comunidades com duas variedades de drogas: a maconha e a cocaína. Sua argumentação parece dar continuidade ao que aqui foi apresentado quanto ao surgimento das moradias nos morros. Os privados de moradia digna na cidade, na sua maioria “negros libertos”, sempre conviveram harmoniosamente com os seus vizinhos, ainda que considerados os hábitos de consumo de drogas. Nada diferente do que poderia acontecer em outras regiões da cidade. No morro, no entanto, a praxe do uso de cocaína era inexistente; seja pela falta de tradição desta droga nas comunidades, seja pelo seu valor elevado.

Com a entrada da cocaína na favela a configuração das relações entre os moradores sofre mudanças Paulo Lins nos informa que a configuração das relações sociais no morro mudou quando “droga dos ricos” entrou no “espaço dos pobres”. Em essência houve um o aumento de furtos e roubos dentro da comunidade. Eram praticados pelos usuários que, pela sua condição econômica, não tinham como se manter quando o uso se tornava um vício. Toda a criminalidade que ocorria na favela até então não de interesse dos jornais. Somente quando a cocaína ganhou grandes proporções como o tráfico e suas consequências é que o tema passa a preocupar as camadas médias da sociedade carioca.

Somente quando estes crimes passam a ultrapassar o território da favela é que os jornais passam a dar importância a estes crimes para além da chamada “imprensa marrom ”. A relação do morro com o asfalto começa a trazer incomodo para as classes mais abastadas. A delimitação do território é ultrapassada pela violência decorrente deste comércio ilegal de cocaína que, embora abasteça aquelas mesmas classes, também causa incomodo pelos seus efeitos sociais colaterais. Eis aí um fator para a real “declaração de guerra”. Fica aqui delimitada uma estratificação social com contorno geográfico na cidade do Rio de Janeiro e que se replica em tantos outros centros urbanos do país.

Sobre o ingresso dos jovens pertencentes às favelas Hélio Luz faz uma declaração objetiva e sem moralismos afirmando que “qual a opção que eu tenho: se conseguir um emprego trabalha 8h para ganhar R$112,00 por mês. De repente se eu me encaixo no tráfico eu ganho R$300,00 por semana. É negócio, não é negócio? É negócio para qualquer um. Só não é negócio para nunca foi desempregado, pra quem nunca passou fome. Para o miserável é negócio. Não é opção, é um emprego. Vai ganhar mais que o pai.” E a moradora do morro conclui: “eles são suicidas. Estão vendo o irmão morrer, o primo morrer porque tá envolvido, mas ele tá querendo se envolver. Sabe por quê? Porque ninguém tá querendo mais este salário de miséria”. É a manifestação do desejo de ascensão social. Esta fala reflete o desejo de ascensão social e já que lhes são negados os meios convencionais de ascensão os filhos daqueles que mantém a base da sociedade carioca partem para “a guerra”. São jovens que veem os pais e avós trabalharem uma vida toda sem ter garantia de nada, nem mesmo de uma aposentadoria digna. Os morros se tornam violentos por algo que lhe é externo. E a solução do provedor deste fator externo apresenta como solução empurrar estas populações para a periferia da cidade. Se esquecem que “se os “favelados” não “descessem”, não viessem para o asfalto para a execução de vários trabalhos, inclusive em serviços e residências dos setores de classe média ou dominantes da sociedade, a cidade praticamente pararia, pois a classe trabalhadora pertencente a esses espaços não ocuparia seus postos de trabalho” (FRANCO, 2018, p. 47).

Nos anos 70 e 80 começam as prisões de traficantes; não dos que promovem o ingresso da cocaína no morro, mas dos “varejistas” que lá comercializam com todos os cidadãos cariocas interessados em adquiri-la. No documentário podemos ver e ouvir o depoimento de um dos traficantes dos anos 80. Na respectiva narrativa fica evidente que o aprendizado sobre organização se deu dentro dos presídios.

O erro da ditadura ao colocar presos políticos junto de presos comuns na Ilha Grande proporcionou ao preso comum uma noção mínima de organização. Daí surge o Comando Vermelho e seu sistema organizado de tráfico de drogas. Esta mudança na configuração do crime gerou temor das autoridades policiais. A aquisição de armas potentes e a rede de pessoas envolvidas no tráfico inibiu as incursões policiais. A instituição policial teve que se especializar em incursões de áreas de conflito. Os moradores do morro celebraram, pois era comum o abuso policial.

A polícia militar se especializou. Reconheceu a mudança da configuração do crime nos morros. “Para os militares, a ocupação na Maré é considerada um conflito moderno. Uma guerra irregular, sem fronteiras, com inimigo difuso” (FRANCO, 2018).

O uso de uma equipe de elite da polícia militar treinada pelo exército para “combater o tráfico de drogas” somente nos morros como se lá brotassem do chão toda a droga que se comercializa é um dos aspectos nos leva a refletir sobre o modelo neoliberal que incorpora os elementos de um Estado Penal nos moldes de Loic Wacquant que permite identificar um Estado que, pelo discurso da “insegurança social”, aplica uma política voltada para repressão e controle dos pobres (FRANCO, 2018).

Conclusão

A discrepância entre o tratamento dado aos usuários e traficantes do morro em relação aos mesmos personagens que atuam e moram nos bairros nobres caracteriza a distinção de territórios e estratos da sociedade carioca. O Chefe da Polícia Civil da época é entrevistado e diz: “Eu afirmo que a polícia é corrupta. É uma instituição que foi criada para ser violenta e corrupta. A polícia foi feita para fazer segurança de Estado e segurança da elite. Eu faço política de repressão em benefício do Estado para proteção do Estado tranquilamente. Manter a favela sob controle. Como se mantém dois milhões de habitantes sob controle? Como se mantém estes excluídos todos sob controle, calmos? Com repressão, claro!”. Em outro trecho, aos 29min 5seg a fala se completa: “É polícia política mesmo. Então isto aqui é uma sociedade injusta e nós garantimos esta sociedade injusta. e nós fazemos um negócio bem sofisticado. Na África do Sul é com arame aqui é sem arame. E não reclama, e paga imposto .” Nesta fala fica evidente o caráter discriminatório das populações em seus respectivos territórios.

Nos parece evidente que o comércio ilegal de drogas, o “tráfico de drogas”, nunca foi o real problema. Principalmente se considerarmos que a classes que mais reclamam também são seus maiores consumidores. Trata-se de uma clara distinção de classes em territórios. O traficante dos bairros nobres; aquele que se abastece no morro, seja por meio de algum conhecido que separa algo que vai deixar de ir para o exterior ou para o morro, para realizar sua venda aos colegas do bairro, nas festas e na praia nunca foi alvo das tropas de elite das polícias civil e da militar.

Como muito bem salienta Hélio Luz ao falar que é perfeitamente possível existir uma polícia que não se corrompe, deve ser uma polícia que “atua na favela e atua no Posto 9. Para de cheirar em Ipanema. Vai ter mandado de segurança pé na porta até a Delfim Moreira, não é isso? Essa é uma polícia que não seja corrupta. É uma polícia que não tem limite. A sociedade vai conseguir segurar isto? ”

A seletividade diante da ação militar torna inequívoca a diferenciação por estratos sociais. Não se trata de uma polícia que visa proteger as pessoas independente de sua origem territorial ou classe social. Cai por terra aqui a noção de “povo” como elemento pertencente à “nação” pois um certo segmento do estrato social não são defensáveis; há uma clara distinção operativa entre os defensáveis e os indefensáveis (BUTTLER, 2018).

Esta distinção de tratamento não se identifica pelo território. Ela existe para reduzir estas pessoas a um território. A distinção está nos modos, no “habitus”, qual seja, por sua posição no sistema de signos distintivos. São os símbolos de distinção tal como a retórica do discurso, os sotaques, o corte e a cor das roupas e etc. (BOURDEIU, 2013).

O interesse por estes territórios à pretexto de levar segurança para suas populações, na verdade, nos remete ao mesmo interesse com que a população dos cortiços foi despejada: interesse econômico. E neste ponto o “estado cumpre um papel de agente para o mercado e não agente de cidadania” (FRANCO, 2018, p. 46).

O Rio de janeiro optou por um modelo de cidade que exclui as camadas pobres, que no brasil é caracterizado essencialmente pela população afrodescendente. Um Estado liberal que se constitui em um Estado Penal se separa as camadas pobres mantendo estes excluídos sob controle.

BIBLIOGRAFIA

BOURDEIU, P. Capital simbólico e classes sociais. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, julho 2013. 105-115.

BUTTLER, J. Corpor em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria performativa de assembléia. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CHALHOUB, S. Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São Paulo: companhia das Letras, 1996.

FRANCO, M. UPP A Redução da Favela em Três Letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

HAMBURGUER, E. Expressões fílmicas da violència urbana contemponânea: Cidade de Deus, Notícias de uma guerra particular e Falcão, meninos do tráfico. Revista de Antropologia, São Paulo , 2008.