Breves considerações sobre o papel da tecnologia no protagonismo da humanidade neste planeta

“I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.”

(“Eu vi coisas que vocês, homens, nunca acreditariam. Naves de guerra em chamas na constelação de Orion. Vi raios-C resplandecentes no escuro perto do Portal de Tannhaüser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Monólogo “Tears in the Rain” (Lágrimas na Chuva) extraído do filme Blade Runner de Ridley Scott de 1982.)

A tecnologia aumenta o mais-valor

Muitas máquinas aplicam na linha de produção uma força suplementar à do seu operador permitindo, desta forma, que toda categoria de pessoa – incluindo mulheres e crianças – possa ter sua força de trabalho a serviço do capital. Esta mesma força suplementar tem utilidade para justificar o prolongamento das jornadas de trabalho nas fábricas.

A tecnologia empregada no maquinário fabril em certa altura impõe ao seu operador um ritmo e uma qualidade de produção que se pode constatar facilmente atualmente quando, por exemplo, funcionários de um departamento burocrático são impelidos a produzir determinada quantidade de expedientes que se apresentam diante de sua tela de computador. O mesmo se constata nas linhas de produção das fábricas e, ironicamente, nas telas de computador; posto que na linha de montagem praticamente não há mais seres humanos (todos substituídos por robôs, braços mecânicos, etc.). A máquina preestabelece o tempo e os movimentos do trabalhador.

Enfim, o humano se torna um autômato diante da tecnologia das máquinas. Estas características já haviam sido notadas por Carl Marx: “O hábito de exercer uma função unilateral transforma o trabalhador parcial em órgão natural – e de atuação segura – dessa função, ao mesmo tempo que sua conexão com o mecanismo total o compele a operar com a regularidade de uma peça de máquina”. (MARX, 2017, p. 423)

Todas estas características das máquinas têm um fim muito claro: “A maquinaria é meio para a produção de mais-valor” (MARX, 2017, p. 445)

Produção de mercadorias para quem?

Todas estas transformações promovidas pelas tecnologias resultaram numa oferta cada vez maior de produtos e serviços. Para promover uma demanda que a absorvesse era necessário ampliar a demanda. Para isto foi necessário “formar” consumidores ávidos por novas mercadorias. O aumento significativo as populações favoreciam o contexto. Mas era necessário formatar, na mente desta massa crescente de pessoas, o desejo de consumo.

A opinião – os pensamentos – de cada pessoa deve ser capturada pelo anseio dos capitalistas. Desde a prensa de tipos móveis de Gutemberg a classe dominante capitalista desenvolve aquilo que se denominou “opinião pública”. A imprensa contrata colunistas (jornalistas que apresentam “sua” opinião) para exporem o que pensam sobre os mais variados assuntos. São recrutados levando-se em consideração sua afinidade com a posição dos donos dos jornais e revistas que, por sua vez, atendem aos interesses de seus anunciantes: os capitalistas. Em todos os veículos de comunicação passa a existir um segmento que procura justificar toda forma de consumo, seguida por uma propaganda que reforça a “opinião pública” por meio de vários métodos, entre eles mensagens subliminares, semiótica etc.

Eis aí uma indústria com tecnologia para produzir em larga escala para um mercado consumidor ávido por produtos. E, também, por produtos novos em substituição aos que já possui seja em razão do avanço tecnológico do mesmo, seja em razão de uma obsolescência programada, seja por um “design” mais atual.

Acompanhando tudo isto há, no processo de conquista de corações e mentes, uma concepção iluminista sendo aplicada no cotidiano pelos mesmos meios de comunicação e pela própria dinâmica do trabalho: um aspecto iluminista em que cada pessoa deveria pautar-se pela razão. Uma razão emancipatória dos medos e tabus impostos por estruturas como, por exemplo, a religião. Uma emancipação pautada na autonomia e aplicada a todos aspectos da vida de cada indivíduo (trabalho, educação, política, etc.). O homem se torna senhor de si à medida que o uso da razão alcança a liberdade. Uma ideia ascendente de que sempre será cada vez melhor, este é o movimento. Pensaram isto como uma lei natural, como uma lei de Newton. Que avançaríamos cada vez mais.

No caminhar simultâneo de todos estes processos alguns sociólogos, como Marcuse, constataram que a tecnologia passou a ser o ponto central das interações sociais. Desde o modo de produção, passando pela forma de organizar, perpetuar e modificar as relações sociais; até mesmo como instrumento de controle e dominação.

A tecnologia nos serve ou estamos a seu serviço?

"A técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo" (MARCUSE, HERBERT, 1999, p. 74). Esta frase traz às nossas brevíssimas considerações um elemento novo: Qual proveito devemos tirar do nível tecnológico que alcançamos e que alcançaremos no futuro? A que propósito ela deve se prestar?

Parece-nos que, quanto a este tópico, só com o que temos de considerações apresentadas até o momento, estamos tomando as decisões erradas (Quem está decidindo somos todos nós?).

Enquanto o trabalhador moderno se resumiu a uma reação adequada às demandas objetivas do mercado e da produção com a perda de qualquer senso crítico, as classes dominantes tão pouco parecem ter se questionado sobre o resultado de suas decisões. Deliberadamente ou não optaram por um modelo de descarte do trabalhador. Opção que Carl Marx já evidenciava ao definir que o mais-valor em que a tecnologia se encaixa com maior precisão; o nomeou “mais-valor relativo” ao explicar que “a produção do mais-valor absoluto gira apenas em torno da duração da jornada de trabalho, a produção do mais-valor relativo revoluciona inteiramente os processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais” (MARX, 2017, p. 578).

Caminhamos no tempo e nos damos conta que a tecnologia nos impõe padrões nos diz de que forma e em que ritmo devemos trabalhar. Estendemos este padrão para fora do trabalho. Para dentro de nossa vida pessoal. Quando paramos para pensar nos damos conta que estamos apenas à serviço. Não estamos no controle de nossas vidas. Permitimo-nos pensar o que a opinião pública apresenta. Constatamos que temos nossa noção de felicidade implantada em nossas mentes. Felicidade resumida ao consumo, entretenimento de massas, consumo constante de tudo; até do imaterial, como cultura e lazer. Com um só fim: status e qualificação para ocupar postos de trabalho.

A era do capital industrial colapsa e dá lugar ao capital financeiro. O capital improdutivo. Esta nova ordem econômica que promove uma nova espécie de classe dominante: os financistas. Donos de bancos de varejo e de investimentos; grandes operadores do sistema financeiro. Todos eles cada vez mais preocupados em especular no mercado financeiro. A tal ponto que este “passou a usar e drenar o sistema produtivo, em vez de dinamizá-lo”. (DOWBOR, 2017, p. 32)

Num modelo de gestão em que a produção é relevada a segundo plano em um sistema econômico em que a produção de mercadoria é sua essência, especular a substituição completa do humano pela máquina passa a fazer algum sentido. O máximo desempenho do mais-valor absoluto com a total exclusão do humano da produção. Eis que a indústria 5.0 se apresenta diante do trabalho intelectual. A inteligência artificial nos alcança nas mais variadas formas. São capazes de dialogar com pessoas em serviços de atendimento, de produzir toda categoria de texto, produzir trabalhos arquitetônicos com o respectivo projeto de engenharia, fazer arte, comunicarem entre si, tomar decisões etc.

Seremos substituídos?

Talvez um dia cheguemos ao ponto de ver em nossas criações o espelho de nós mesmos. Criações que podem se fundir com o ser humano, resultando em algo que seja para além da humanidade; uma nova evolução, um novo “homo” resultante de tecnologias e manipulações genéticas; um misto dos dois, talvez. Podemos pensar que a criatura se volte contra nós como no romance de Mary Shelley (“Frankenstein ou o Prometeu Moderno” escrita em sua primeira versão em 1817 considerada a definitiva em 1831).

Sentiremos pesar por este embate tal como encenado ao final do filme Blade Runner de Ridley Scott de 1982? Venceremos ou seremos vencidos? Os registros históricos e estudos sociológicos nos mostram que já estamos perdendo desde muito tempo. Muitos postos de trabalho foram substituídos por máquinas com tecnologia para identificar padrões e replicar ações pré-definidas. A inteligência artificial promete extinguir outros tantos postos antes considerados insubstituíveis.

Sem qualquer proteção aos postos de trabalho em face do avanço tecnológico – apesar de toda as intenções previstas em leis e constituições – o futuro parece aterrador. Soluções paliativas como a renda universal para todos, uma vez que os postos de trabalho serão cada vez mais escassos, não parece visível no horizonte; mesmo com previsão em tratados econômicos redigido pelos próprios financistas como, por exemplo, no Consenso de Washington. A opinião pública continua a vender o trabalho como um valor fundamental do caráter de qualquer indivíduo.

O crescimento econômico continua a ser o que se propõe: a exploração cada vez maior dos recursos naturais. A inserção ao mercado de trabalho continua vinculado a este paradigma, aqui se repita, “o crescimento econômico”. O capital acumulado não pode ser considerado como elemento de distribuição para inclusão social em hipótese alguma. Partilhar o que a economia já produz e parar com a ideia de “crescimento” é inadmissível.

Pensamos que elegendo governantes que demonstram preocupação com o meio ambiente teremos nossos problemas resolvidos. Na verdade, precisamos fazer mais do que isto. Devemos promover o debate com os que promovem a desinformação, precisamos nos esforçar mais para atuarmos no nosso cotidiano de acordo com nossas convicções.

Nos encontramos na condição citada no item que trata do destino da superprodução de mercadorias. Estamos numa condição em que somos totalmente regidos pelas tecnologias que criamos e que, no ambiente de consumo, nos cercam. A indústria 5.0 está chegando e ficará a questão: o que mais falta ser dominado pela tecnologia? A substituição do ser humano por ela já é algo que ocorre desde a revolução industrial. Os trabalhadores serão banidos de vez? O que nos restará a fazer? Como subsistiremos sem trabalho?

Quem sabe um mundo realmente melhor

Se nos dermos conta do nosso protagonismo em nossa própria história bem como nossa responsabilidade em relação a todas as formas de vida com as quais dividimos espaço no globo terrestre poderemos redefinir o papel da tecnologia.

O trabalho é inerente ao ser humano. Reverter a condição de “a serviço da tecnologia” para “tecnologia a nosso serviço” parece-nos fundamental. É o que nos possibilitará reverter o quadro atual. O “nós” que tanto se utilizou neste ensaio deve ser constituído daqueles que enxergam no trabalho não um préstimo à mais valia, mas uma característica do ser humano. O “humano” que foi tirado de “nós”.

Precisaremos difundir a ciência e a cultura, mas sem o uso dos óculos de John Carpenter . No atual modelo capitalista estamos formando bombeiros que, ao invés de estarem carregando extintores com água e espuma, estão levando consigo extintores com napalm. Ao estilo de Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Na total desinformação promovida pelos meios de comunicação de massa e seus pseudointelectuais. Deixamos de lado valores éticos que nos protegeriam de nós mesmo, ou melhor, de nossas tecnologias.

Como nos alertaram cientistas como James Lovelock já passamos de ponto de retorno. Certamente alguns males sejam irreversíveis. Contudo, tantos outros são passíveis de mudança. Vandana Shiva constatou que tal é possível. Mas para tal se mostra necessário rompermos com os paradigmas aqui expostos. De tal magnitude que só uma revolução singular, constituída de características nunca vistas, seja inevitável. Do contrário continuaremos traçando a linha que já se encontra em curso no papel de nossa história.

Bibliografia

DOWBOR, L. A Era do Capital Improdutivo. 1ª. ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

MARCUSE, HERBERT, H. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: UNESP, 1999.

MARX, K. O Capital - Crítica da Economia Política. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, v. Livro 1: O Processo de Produção do Capital, 2017.