Da liberdade criativa e a obra do artista
Apenas homens que são livres, podem criar além da imaginação
A liberdade, mais do que a possibilidade de andar por onde quiser, significa que espírito livre está em constante capacidade criativa.
É na liberdade que se faz poesia. É na liberdade que nascem a música, a pintura, o teatro. As artes, e tudo que dela e nela se expressa, é a possibilidade do homem se colocar no mundo. Homens de espírito livre sabem, e expressam através de sua criação artística, que somente em Liberdade se consegue criar. As obras desses artistas são o resultado imediato do espírito livre.
Espírito aprisionado não conhece a capacidade e a potencialidade da livre criação. Os grandes mestres, livres no ato criativo, nos deixaram suas obras como testemunha da sua liberdade criativa. Por outro lado alguém poderá conjecturar "é livre quem cria sob encomenda, por uma recompensa? Sim, eu respondo, pois, o ato primevo da criação, mesmo sob encomenda, nasce no espírito criador. Michelangelo, só para citar um exemplo, fez sua obra mais conhecida, A Capela Sistina, por encomenda do Papa Júlio II, porém, teve a liberdade de ilustrar o Momento da Criação (a obra é composta de nove painéis que representam cenas do livro do Gênesis) e a Aliança de Deus com o Homem (alguns autores vêem essa cena como a Criação de Adão, eu prefiro Aliança de Deus com o Homem porque na cena "Adão" já é adulto; já foi criado). Colocar pessoas do povo, gente, àquela época, na solteira da escala social, traz à obra um olhar, talvez provocativo como recurso de reflexão, de que Deus não está apartado da sua imagem e semelhança, que é o povo. Trazer Deus junto àqueles excluídos, àqueles colocados no mais baixo nível na escala social é, num tempo onde graçava a opulência, era o mesmo que repetir a passagem de Cristo no templo e sua revolta contra o vendilhões do templo. Michelangelo, sabemos, trabalhou em troca de uma recompensa, um soldo, todavia, a obra traz sua liberdade de colocar pessoas simples, ele próprio, um homem simples, na representação.
Outro aspecto importante da liberdade criativa de Michelangelo, está no fato de que, como já dissemos, a A Capela Sistina é composta de nove painéis. Representando o Livro do Gênesis, estabelece uma ligação entre os primórdios da humanidade e a vinda de Cristo . Talvez essa ligação seja uma analogia com a palavra religião, simbolizada pela cena do quase toque dos dedos de Deus com o do homem). Curioso é que Cristo não aparece na composição dos painéis. Só para efeito de reflexão: estaria a ausência de Cristo significando: 1. Que o Papa respeitava tanto a liberdade do artista, que não impôs determinadas abordagens? 2. Seria Michelangelo um agnóstico (pra não dizer ateu) que resolveu não colocar Cristo na representação como indicativo de sua posição? 3. O que explica a ausência de Cristo numa obra encomendada pela Igreja, no Vaticano, num período , cujo poder da Igreja era equivalente ao de Reis? Enfim, algumas questões para reflexão.
Outro aspecto característico da liberdade do artista na confecção de sua obra, e novamente, para efeito de exemplo, me debruço na cena, já mencionada, da aliança de Deus com o Homem.
A cena referida, mostra Adão em posição confortável em contraste com a de Deus, que se mostra quase num esforço para chegar até Adão. É notável ver o quanto o artista usufruiu de sua liberdade criativa. Se considerar o período em que foi pintada, século 16, período marcado por um forte poder da igreja e, em contraste, uma crescente influência das ideias racionalistas, não se pode ignorar que Michelangelo, homem do seu tempo, parece ter optado em deixar sua "marca" racionalista na obra.
É sabido que o período marcado como racionalista traz para o centro do debate (e, por quê não?) da questão filosófica da centralidade do universo, o Homem como elemento fundamental de tudo que existe.
No cena em questão, Adão aparece como um ser meio relaxado, enquanto Deus, ao contrário, parece fazer um esforço para alcançá-lo. Penso nessa cena como uma postura indicativa do artista de que Deus é uma projeção do Homem (ao contrário da exegese, que diz, Deus fez o homem a sua imagem e semelhança). Há, ainda, interpretações que dizem que a cena que mostra Deus envolto no seu manto, seria uma representação do cérebro (Michelangelo era conhecedor da anatomia humana) humano. A considerar essa propositura, talvez, reforce o que disse acerca da postura de Adão frente a Deus. Pois, a prevalecer que a cena representa Deus num manto análogo ao cérebro humano, pode -se, então, dizer, que o racionalismo de Michelangelo corrobora que Deus está no homem, isto é, da razão humana. Existe na razão do homem, centro da criação/evolução.
Tudo isso reforça, então, que mesmo a Igreja, com todo seu poder da época, não impôs ao artista como ilustrar a Capela Sistina. O artista, mesmo a serviço da Igreja desfrutou de sua liberdade criativa: cada cena, cada elemento, cada figura humana, referências subliminares (o manto de Deus no mesmo formato do cérebro humano), saíram da capacidade criativa do artista. E ele, sabedor dessa necessária prerrogativa, não se limitou às ilustrações como meras referências bíblicas. Trabalhou e criou segundo suas premissas criadoras.
Dito isso, podemos afirmar, que somente homens livres são capazes de criar suas obras com liberdade. Podemos, continuar afirmando, então, que a liberdade criativa do artista transpassa séculos, podem estar sujeitas às críticas, às releituras, às reinterpretações, e só podem isso porque nasceram da liberdade criativa.
É da liberdade criativa a obra livre e livre serão as críticas e tudo que delas nascem.
Somente espírito livre, cria livremente.