O que sobra de Bolsonaro?
“Todo retorno que tenho dos comunicados se transforma em estímulo ao meu trabalho. Vocês são a razão da existência do meu mandato.
Carta assinada por Jair Bolsonaro, em 2004, publicada pelo site neonazista Econac.
Imagem: Reprodução/Web Archive"
Tweet por @mandsfra2
1. "O essencial é saber ver."
Na época eu tava ali no segundo ano do ensino técnico. Tinhamos aulas de montagem, fotografia, semiótica, e mais um monte de outras coisas. Essa última sempre me chamava atenção. Falava de um jeito bem profundo sobre como nós nos relacionamos com o mundo ao nosso redor.
Essa coisa de comer, devorar, e depois assimilar os símbolos, que diz a antropofagia cultural. Usamos e somos usados. Criamos o novo. Mas há também o pior, o macabro, as vezes eles se apresentam contendo mensagens obscuras, anti-democráticas...pra dizer o mínimo.
Griffith, por exemplo, que inovou na montagem paralela, era um racista, supremacista branco de carteirinha. O desgraç...usava sem pudor, o cinema como propaganda. Ele sabia mais do que ninguém, que ocupar uma mente, valia tanto ou mais que ocupar um território geográfico.
Por outro lado temos Eisenstein, um cineasta soviético fodástico que também entendia a importância da mensagem, e mais, sabia a importância da forma com que ela vem até nós.
Pra ele, a montagem é "o nervo do cinema" (tô devendo ler/ver mais Eisenstein)
2. Estética é o que mesmo?
Olhando pro teatro que se fez na paulista, com a manifestação recente tivemos um monte de bizarrices: A bandeira de Israel com pentagrama, o dito cujo falando da minuta do golpe, um Homem-aranha todo em verde azul e amarelo (vermelho não pode, é a cor do inimigo)
É difícil ver um sentido nisso tudo, percebemos que essa é a hora que a lógica saí de cena, que o racional dá lugar as paixões, é sedução, é estética.
Estética, Santaella e Aline Antunes explicam:
"seria a equivalente sensual da lógica. Isso significa
que, enquanto a lógica trata do saber analítico, baseado no raciocínio, a estética lida com um
outro tipo de conhecimento, aquele que se realiza pela mediação dos sentidos, por meio da
sensorialidade."
3. Herói de quem?
Pra falar sobre isso, essa mediação dos sentidos, volto ao ensino médio.
Estava, sei lá, estudando, ou vendo uns memes no twitter quando dou play num vídeo.
As notícias do dia falavam daquilo sem parar, os jornalistas, comentaristas, twitteiros, etc, etc, viraram e reviravam o fato:
Roberto Alvim, à época secretário nacional de cultura do governo Bolsonaro, havia feito um discurso quase idêntico ao de Goebbels.
E aqui um parêntese, plágio por si só é uma coisa horrível, mas de todos os tipos de plágios que possam existir, talvez o que copia um ministro da propaganda nazista, seja o pior deles.
Lembro que eu fiquei chocado. A estética não mentia, tenho as frases, o ângulo de câmera, o quadro no fundo do cenário, a imposição de voz, toda a mise en scene gravada na cabeça. "A arte brasileira da próxima década, será heróica (...)"
Ali foi talvez a hora em que o fascismo arranhou os meus olhos de um jeito mais contundente, se fez ver.
Quase.
Na verdade, o que pra mim era tão lógico, tão claro, prum mar de outros, os apoiadores, era irrelevante, era inclusive, realidade. Uma necessidade de se desfazer de tudo que está aí e "Make Brazil great again"
Como isso é possível?
Eu poderia aqui puxar a ficha de qualquer um dos outros ministros, mas esse caso já é bem didático.
O discurso de Alvim, não por acaso encontra salvaguarda em Umberto Eco, quando Eco de um jeito muito habilidoso, vai descrevendo pra nós o fascismo.
Nesse trecho, Eco comenta que na Alemanha colocavam em prática a mesma coisa que pensou o Alvim: queriam uma arte heróica, cristalina, elevada.
"as novas experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único aceito"
(Falando em "nibelúngico", vale a pena dar uma olhada nesse texto: O legado de Richard Wagner e a ópera a serviço do nazismo)
Então se parar pra entender, é um projeto de sociedade que toma pra si, sequestra desde as artes, música, a poesia, a arquitetura, o cinema ( Leni Riefenstahl a cineasta do Reich) até as instâncias menores da nossa vida, as decisões, escolhas.
Em outra passagem, Eco chega até a comentar sobre esse "Heroísmo" evocado por Alvim. No texto, esse heroísmo aparece na figura de D'Annunzio, um escritor italiano, poeta, fascista, e que posteriormente também faz uma carreira política através da extrema-direita
D'Annunzio, Eco nos conta, "Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e seu culto do heroísmo"
Então meio que tudo se faz através desse apelo a emoção e da fabricação de uma narrativa, um inimigo em comum, maior...
4. "Veja", mas com os nossos olhos.
Isso tudo é pra dizer que a política sempre foi uma maravilha pro jogo simbólico, sempre foi o lugar perfeito pro jogo da representação.
Lula subir a rampa no dia da posse da forma que fez, com as pessoas que estavam ao seu lado, tudo muito bonito, chorei, não vou mentir.
E eu não estou a salvo, ninguém está, nem você.
Outro momento definidor e simbólico pra política nacional que serve de exemplo pra nós é o "Pedro Collor conta tudo" na capa da veja.
Na ocasião, o irmão do então presidente aparece sério, penetrante, estava prestes a contar tudo mesmo "Entre as declarações, acusava o tesoureiro de campanha do parente, PC Farias, de montar uma rede de caixa 2"
Na época fez se um rebuliço todo em cima disso. Imagine em termos de hoje, imagine se um dos filhos do Bolsonaro decide depor contra ele. A questão é que a veja soube usar muito bem a situação a seu favor, essa edição saiu que nem água, talvez uma das mais vendidas.
Mais outro exemplo, as capas dessa mesma revista sobre a Ex-presidenta Dilma. Gosto de entender esses veículos grandes, já que até então eles moldavam mesmo a opinião pública, assim como a tevê também faz, (Hoje a gente vê que a internet distribuiu, mudou as coisas, mas esse poder, esse papel do jornalista ainda existe, e é importante ainda hoje. Isso é outra conversa.)
Muitas das capas colocavam ela, a Ex-presidenta Dilma, de um jeito atrapalhado, ou então com enunciados sugestivos, bombásticos. Na internet, os memes falavam sobre a retórica etc, então quando falamos da política, nenhum clique, nenhuma palavra, é inocente.
Andei dando uma olhada num trabalho que fala justo sobre esse caso, vou deixar o título por aqui, vale a pena dar uma sacada.
"Análise de capas da revista Veja: A construção midiática da legitimação do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff à luz dos estudos bakhtinianos"
O texto chega numa conclusão interessante, vou colocar o trecho aqui, mas antes, vamos pensar, qual é o efeito que temos quando massivamente, todos os dias, ouvimos uma mesma história
Eu tava pensando, quer dizer, não há problema algum num jornal, por exemplo, assumir um lado político, o problema é fingir o contrário, negar as próprias palavras. A Globo, até hoje, foge do editorial que ela própria publicou, onde apoia a ditadura de 64.
"No que se refere às considerações a que pudemos chegar ao final das análises das capas, podemos dizer que a revista Veja fugiu da imparcialidade, que se afirma ser a marca característica do jornalismo de informação e não cumpriu sua responsabilidade social de orientar o entendimento do leitor. A revista se mostra claramente membro do corpo de adversários políticos de Rousseff."
5. "Foi uma jogada de enxadrista do juiz Sergio Moro..."
https://twitter.com/gabrieldread/status/1534318413086179331?t=ImNGFo91MztWJsPAScAJVw&s=19
Tirinha por @linhadotrem
Essa frase da Vera Magalhães comparando Sérgio Moro a um enxadrista, sempre me faz rir um pouco, mas de uma coisa ela tinha razão: É um jogo, só não sei se é xadrez.
Rolou a manifestação do dia 25, os memes e as análises apareceram, e fiquei pensando como isso, o presente, vai ser lido a posteriori, refeito,concatenado, ficcionalizado?
A multidão que vimos é pros apoiadores do Bozo, um grito de resistência, pros do Lula, desespero.
Fico triste eu acho, fico pensando que estão tão carentes de Brasil (seja lá o que essa necessidade signifique), que um inelegível, um qualquer, que na palavras dele próprio, usava o auxílio moradia "pra comer gente", possa causar tanto barulho ainda hoje. Possa, mesmo que pra alguns, ainda significar líder.
É o nacionalismo e o culto ao heroísmo que já foi falado. A figura centralizadora.
E isso me dá medo também. Se ele chegou lá em cima assim, dando nas vistas, com um secretário de cultura quase que soletrando nazismo na nossa cara, com a sua sucessora, Regina Duarte, pedindo leveza em plena pandemia, imagina se ele e os seus ministros fossem um tantinho mais...espertos...
6. De novo esse papinho de "novo"
O "novo" sempre vem de novo, mesmo que ele seja só uma versão 2.0 da mesma coisa.
Dizem que a Michelle agora é essa figura. Mesmo não tendo história política nenhuma, se apresenta e se faz ouvir, (Em seu discurso na manifestação, cita "Deus" 38 vezes.) não sei se ela vai unificar a direita. Na verdade, se vai ser ela, um dos filhos, ou algum outro, só vamos saber quando o momento for realmente se aproximando. A esquerda precisa também estar preparada, precisa saber que tipo de paixões são essas, tão agudas, capazes de arrebanhar, 200mil numa avenida (alguns jornais falam em 700mil...) E de jeito algum ignorar, diminuir.
Na dúvida, retornamos novamente a Eco:
"Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis."