O VINGADOR CELESTIAL
A ira, o ódio e a falta de bom senso como provas de “virilidade espiritual”!
*Por Antônio F. Bispo
Um dia entrei em uma igreja qualquer e com ar de autoridade falei ao chefe da casa:
— Meu querido e ungido pastor, quero minha cota no que diz respeito aos serviços do Vingador Celestial. Preciso usá-la hoje. É urgente!
Sem entender, o sacerdote da escuridão retrucou:
— Como assim? Estás se referindo a Deus?
Aborrecido, afirmei:
— Sim, claro. Quem mais poderia ser? Esta não é uma igreja cristã? Não sou eu também um servo do altíssimo? Por acaso, não tenho eu os mesmos direitos que tiveram no passado os heróis da fé?
O ministro das trevas rio e respondeu:
— Há, há, há... Muito engraçado você! Para que essa inovação? Por que não chamá-lo pelo nome ancestralmente conhecido? Por qual motivo destacou essa parte peculiar em específico?
— Em tom sério afirmei: por que é dessa parte que preciso para resolver algumas pendências pessoais nesse instante!
O sujeito me olhou por cima dos óculos e apontou uma cadeira para me sentar.
Prossegui então:
— Deus é aquilo que eu quiser que Ele seja e posso usá-lo como bem entender. Sou cristão e conheço os meus direitos. Já li a bíblia várias vezes e sei muito bem quantas pessoas já invocaram o seu furor para aniquilar seus adversários em momentos de desequilíbrio. Comigo não será diferente!
Dei uma pausa. Tomei folego e continuei:
— Tem sido assim desde sempre e assim será até que desperto sejamos do abismo de nossa própria ignorância. Nesse exato momento, quero usufruir apenas da porção que diz respeito ao tresloucado de Deus. Fui ofendido e preciso revidar para honra e glória do seu próprio nome!
O sacerdote olhou-me com um ar de preocupação e tentou entender o motivo de tanta mágoa em mim acumulada. Ele sabia que até para ocultar-se de Deus ou de sua suposta igreja, havia limites.
Apesar da cólera vindoura ser apenas uma ferramenta para intimidar os mentalmente fragilizados, existia a justiça dos homens “falhos e pecadores”.
Esta, por sua vez, era verídica e podia comprometer toda fantasia da religião, mantida por milênios por aqueles que se assentam “no trono da besta”.
Para cometer males valendo-se da ideia do divino era preciso discrição.
Os tempos haviam mudado.
A libertação dos escravos, a laicidade, a democracia, os livros, a internet, a imprensa, as ONG... Não era tão fácil cometer certos delitos em nome da fé como dantes fora, sem ficar totalmente impune.
Em casos explícitos, mal planejados, se a “justiça dos homens falhos e pecadores” não fosse executada, o cancelamento virtual poderia ter um efeito ainda pior para os “bolsos da igreja”.
Era preciso agir nas surdinas, planejar bem as infâmias, manipular os fatos, fazer com que alguns caíssem em desgraça, montar todo um cenário combinado com outros atores, para que somente assim, com ar de compaixão ou completude (como se não fosse o próprio autor da miséria), dizer ao moribundo e aos fiéis ao redor deste, que tudo aquilo era Vingador Celestial agindo de forma justa e miraculosa.
Inclusive nas Cruzadas, o período mais negro da história do cristianismo, havia um fundo falso de verdade que podia ser “comprovado” quando se queria cometer atrocidades e todo tipo de barbárie em nome da fé e dos bons costumes.
Nessa ocasião, havia o zelo de Deus, as artimanhas do Diabo, as bruxas, os mouros ou alguma peste local para atribuir as desgraças deixadas pelos cavaleiros de Cristo e suas comitivas.
O sacerdote sabia muito bem a receita da tapeação dos que criam fábulas e as vendem como se fosse o puro sumo da verdade.
Em toda reunião ministerial era ensinada a máxima:
— QUANDO SE QUER USAR DEUS, FINJA QUE ESTAR SENDO USADO POR ELE!
Isso era repetido em coro ao abrir e ao fechar de cada assembleia ministerial, como esquecer?
Também era lembrado com frequência, que nunca, ministro algum deveria revelar suas reais intenções diante da igreja ou de qualquer fiel, pois mais débil e servil que este fosse.
Era preciso salientar com firmeza que era Ele, o Criador que estava agindo. Daí então, nos bastidores, tudo era permitido para iludir a clack das ovelhas.
Devia dizer sempre aos ouvintes, que jamais tentassem entender por conta própria os sagrados mistérios, pois para isso, Deus havia eleito pastores, doutores e professores, como dia Paulo em suas epístolas. Essa simples fala iria pôr em culpa automática e antecipada, qualquer um que tentasse pôr o próprio cérebro em funcionamento
Esta tem sido a regra não dita aos crédulos comuns, verbalizada apenas nos altos conclaves, concílios ou nas convenções ministeriais que ocorrem anualmente, onde a podridão, a mentira e a corrupção andam de mãos dadas, enunciada pelos líderes do mais alto escalão, decidindo assim onde, como e quando Deus, sua ira ou os seus exércitos deverão agir nos próximos meses, anos ou décadas.
É assim que Deus trabalha. Desde sempre!
Quanto a “ralé”, aos menos escolarizados e aos mais propensos aos deslizes socialmente toleráveis, usa-se atualmente o seguinte slogan: #Deus no comando sempre!
Este, por sua vez, talvez seja a versão mais filha da p*ta, banal e, com efeito chiclete que a “roda dos santos” já produziu e entregou aos de cérebro atrofiados. Pode ser usado por qualquer um.
Passa uma ideia de santidade, compromisso, honestidade e até de fraternidade a quem está usando, principalmente se for em redes sociais.
No devaneio das frases de efeito usado como “louros” na cabeça dos tolos, o sacerdote em minha frente voltou a si, à questão por mim apresentada.
Com ar de preocupação, ele coçou o queixou, olhou-me com profundidade como se quisesse entender o que havia comigo, perguntando-se quem sabe se o meu problema era tão grave, a ponto de invocar ao sacerdócio santo, sua cota da ira celestial, permitido (ainda que em fantasia) somente aos que são incondicionalmente obedientes à igreja e suas hierarquias ascendentes e descentes.
Quem sabe ele pensou consigo mesmo:
— Aqui não!
Não seria em sua igreja ou sob sua tutela que esse sujeitinho iria macular o santo nome de Deus ou a honra de sua Santa igreja em seu projeto de vingança pessoal.
Com rispidez o patriarca da fé falou:
— O que se passa meu jovem? Desembucha! O que te aflige tanto? O que te fizeram de tão ruim? Você acha sensato conceber o que pede a sua vaidade nesse instante? Se não disseres ao menos o que fará com esse tão grandioso poder, não poderei dar-te acesso ao que tu queres!
O pároco entrou no jogo. Vestiu um personagem e pôs-se velejar em minhas águas.
Mesmo sabendo ser os atributos divinos uma mera especulação humana quando ainda lhe faltava o básico da compreensão do mundo ao seu redor.
Ele queria adentrar em minha mente e cortar o mal pela raiz, já que é somente nesse recinto que todo duelo de divindades acontece.
Usou então termos biblicamente infantis, que me fizeram crer que eu sairia dali com o que viera buscar.
Com ar de derrotado, passei então a enumerar minhas mazelas.
Sentei ao pé do altar e como não havia imagens de esculturas para me prostrar e me esvair em lágrimas, dirigi a minha reverência ao representante divino ali em carne e osso, que sentado à mesa pastoral, parecia ter respostas para todas as minhas perguntas.
Acreditei nisso, até porque, ele mesmo dizia todos os dias, que o próprio Deus em pessoa o havia eleito para tal função e eu acreditei por imposição, não por vontade própria.
A igreja, está também, desde sempre me obrigou a obedecer essa tese.
A sociedade cristã qual estou inserido desde o berço, por sua vez, demoniza quem pensar contrário.
Sem ter outra opção, só me resta concordar com essa premissa e também cobrar os meus direitos quando me convém. É o que estou fazendo agora.
Faço de contas que ali está uma autoridade humana, divinamente autenticada para tal função, passando assim a ser entendida como sendo uma autoridade divina por procuração.
Desde cedo nos tem sido dito, que essa classe de gente tem contato direto com o criador dos mundos, e que os deuses os visitam regulamente por meio de sonhos, visões, revelações e outras epifanias de impossível perícia.
Tem sido assim desde sempre. Crença e obediência em um círculo interminável de submissão.
Passada a contemplação, o reverendo assentiu com a cabeça, autorizando o prosseguir de minha deixa:
— Mestre! Nasci, cresci e tenho vivido em uma bolha religiosa!
Respirei e prossegui:
— Falava, estudava ou aprendia somente com gente santa, iguais a mim. Até no meu trabalho após adulto ou minhas transações comerciais eram com pessoas cheias de Deus, eleitas pelo pai, espalhados por este vasto continente.
O reverendo permaneceu em silêncio.
Eu prossegui:
— Por nossa congregação ser de tamanho mediano, consegui estar isolado das “mentiras do mundo”, vivendo a verdade segundo a nossa fé, sem jamais ter sido confrontado por quem quer que fosse. Sempre estive convicto de todas as minhas crenças...
Vendo que a conversa poderia ser longa, o sacerdote solveu um gole d’água e em tom monossilábico disse apenas:
— Sei...
Entendendo a aprovação, continuei:
— Com o advento da internet, porém, passei a ter contato com gente de todas as tribos, credos, raças, línguas e países. Como de costumo, seguindo os ritos que a nós nos fora ensinado, sempre que tenho a oportunidade, falo do "amor de deus" para outras pessoas, de nossa igreja, do nosso povo e sobre como Deus elegeu ao nosso bando como povo escolhido, remanescente que habitará ao seu lado no reino celestial por toda eternidade.
Ao ouvir as duas últimas frases, o pastor engasgou-se com água que bebia.
Sentiu vontade de rir, porém, como estava de boca cheia, a água penetrou em outro lugar, causando-lhe tosse e desconforto nasal.
Percebi uma lagrima rolar em seu rosto.
Fiquei na dúvida se ele ria ou chorava, se tinha piedade de mim ou se zombava do meu lamento.
Depois, cheguei a outra impressão ao notar que sua calça ficara úmida de repente na região da virilha. Ele se molhara ao tossir, ou de tanto rir de minha cara acabou se mijando ao engasgar-se?
Aquela dúvida profunda me fez aumentar a minha falta de paz interior.
Ele percebeu e recompôs-se dizendo:
— Perdoe-me, meu jovem! Tenho problemas com incontinência urinária, mas não é isso que aconteceu desta vez. Ao engasga-me com a água que bebia, acabei me molhando com o balançar do meu corpo. Por favor, prossiga e vá direto ao assunto!
Me sentindo mais seguro, sem arrodeio, eu falei:
— Estão zombando de mim na internet!
Em sua face era como se ele dissesse: “só isso”?
Prossegui:
- Sempre que digo que minha igreja é a única e verdadeira eles riem de mim; toda vez que falo que nosso rito litúrgico é o mais correto entre todas as igrejas eles debocham; no momento em que menciono que nosso grupo de fé é de fato uma igreja e as demais são seitas eles vãos às gargalhadas; na ocasião que afirmo que nas sagradas escrituras conseguimos decifrar somente a verdade que firma a nossa crença que descartamos o restante por sermos nós de uma nova aliança, eles dizem que sou descarado; por fim, quando ressalto que o Deus Verdadeiro, criador dos céus e a terra resolveu manifestar-se e salvar apenas alguns entre nós, o povo eleito, eles vão à loucura. Desta vez não mais com risos, mas com argumentos científicos, históricos, probabilísticos, matemáticos e até teológicos que me fazem parecer um zé-ninguém. Não aguento mais!
O pastor passou um lenço na boca e demorou por alguns segundos. Não sei se estava enxugando o bigode ou rindo de minha infantilidade.
Depois de um soluço, ele disse:
— Adiante!
Complementei:
— Sabe o que é pior? Sabe qual é a parte mais vergonhosa?
O pároco disse em tom curioso (ou debochado?).
— Não sei não. Diz aí. Estou louco para saber!
Com fala melancólica argumentei:
— O mais humilhante é quando ateus (eu disse ATEUS) usando a bíblia, citam passagens completas e não trechos isolados como fazemos para atestar nosso credo, apontam contradições e termos por vós nunca dantes utilizados, que me fazem sentir-se um bobalhão, um retardado, um abilolado defensor do nada, que peleja contra moinhos de ventos como se fossem gigantes assustadores.
Em soluços complementei:
— Já pensou? Aquela gente sem Deus, sem salvação, sem uma igreja para congregar, sem um pastor para os guiar. Gente que por si só, já é amaldiçoada por não ser dizimista, que não tomam ceia mensalmente e que além de tudo comem carne de porco, bebem álcool, não guardam o sábado, vão às festas do mundo, conversam com todo tipo de gente impura...
O pastor tossiu rapidamente (não sei se ouvir direito), ele disse:
— O nome disso é preconceito, meu filho!
Pasmem!
Olhei para ele com espanto.
Pedi para ele repetir, a fim de ter certeza do que havia escutado.
Ele disse apenas:
— Eu quis dizer, prossiga, meu filho. Prossiga!
Aliviado continuei meu chororô:
— Como pode meu Pai? Eu nem precisaria estar aqui tendo essa conversa! Deus em seu infinito poder e zelo, por sua própria lei, deveria fulminar os tais publicamente e ainda deixar sua assinatura escrita na testa de cada um, para que todos pudessem ver o seu poder e o quanto me ama.
O líder espiritual apenas meneava a cabeça. Não conseguia discernir se ele estava chateado com o meu discurso ou se estava comovido com minha fé doentia, opressora, vingativa.
Finalizei dizendo:
— Em situações que sou instigado e debato com outros cristãos (ainda que de seitas e falsas doutrinas), tudo bem, isso não me abala. Bato neles, apanho por vezes e pedimos tréguas para estudarmos e debatermos em outra ocasião com maior veemência na tolice dos nossos egos inflamados. Em duelos assim, temos a sensação de vitória mutua. Fé por fé eu fico com a minha e ele com a dele. Terminamos com ódio recíproco, porém ainda mais convictos de nossas próprias ilusões. Fazemos isso há séculos e é tudo de bom para quem escolhe o caminho mais fácil de ser chamado de santo.
Tomei fôlego e continuei:
— Nada melhor que se dispor em debates frenéticos por conta de bobagens que não levam a nada, a exemplos do uso ou não de um véu, de cabelos, maquiagens, batons, sobrancelhas, depilação intima, alimentos impuros, dias santificados, a infalibilidade dos nossos líderes e objetos mistificados. É muito fácil ser santo cumprindo ou deixando de cumprir tais apetrechos. Mas fácil ainda é ser santo julgando e condenando os outros que não "seguem a verdade". Difícil mesmo é alcançar a iluminação própria respeitando o próximo, aos "fora da lei Deus", ou ter a consciência de que somos responsáveis por nossos próprios atos. Ser cristão assim não dá. Ninguém deseja seguir esse tipo de cristianismo. Eu também não!.
O reverendo apenas disse:
— Sei...
Me senti na obrigação de concluir:
— Há milênios matamos reciprocamente os de nossa própria religião por puritanismo de araque. Mas ainda assim, todos defendíamos a mesma divindade e seus atributos colossais. Agora ser instigado por ateus? Quem já se viu algo do tipo? No passado os arrastaríamos nas ruas e os queimaríamos em grandes fogueiras. Maldita liberdade contemporânea. Tudo coisa do cão!
O sujeito à minha frente parou, ficou sério e disse:
— Meu filho, tudo isso me comove, mas não há nada que eu possa fazer. O meu conselho é que pare de navegar na internet, exclua suas redes sociais e de preferência, não converse mais com “pessoas cheias do cão” ou com qualquer pessoa que te provoque instintos primitivos como este que por hora apresentais. Se você olhar demais para o abismo, o abismo olhará de volta para você. Evite-o!
O mestre continuou:
— Você sempre será atraído para onde sua atenção está sendo aplicada. Continue em sua bolha, fechado, isolado, trabalhando, estudando, comprando ou vendendo somente com, ou para pessoas de sua genialidade. Este é o caminho mais cômodo para evitar atrito. Não podemos parar o mundo e o progresso, mas podemos fortalecer ainda mais os laços entre irmãos e confraternizar com quem pensa como nós. Assim, você poupará sua alma da angústia. O que me diz?
Ao ouvir tal afronta, bati na mesa e com fúria gritei:
— Não, não quero assim! Desejo vingança. Almejo justiça. Exijo que todos eles paguem pelo mal que me causaram. Eu invoco o Deus de Elias, de Eliseu, de Davi, de Sansão, dos Salmistas e de todos os que tiveram o privilégio de massacrar ou ver seus inimigos mortos diante de si por simples afrontas!
...
CONTINUA...
Texto escrito em 25/2/24
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.