As bacantes, de Eurípides
Em vez de um processo de individuação, uma experiência de reconciliação entre as pessoas e das pessoas com a natureza, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade.
A experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão, da multiplicidade individual e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte na totalidade.
Nietzsche enuncia isso em linguagem entusiasmada: “Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente deus, caminha tão extasiado e enlevado como vira em sonho os deuses caminharem.”
Encantamento ardente proporcionado pelo dionisíaco, o homem sente-se, assim como Prometeu libertado, livre de todas as amarras da individualidade, movido por uma liberdade poderosa e ilimitada, transportado pela tempestade de uma alegria e de uma dor nunca antes experimentada.
Essa reconciliação com a natureza aparece no texto que inspirou Nietzsche na caracterização do culto dionisíaco: As bacantes, de Eurípides. Pois é importante não esquecer que, embora Nietzsche critique a tendência socrática de Eurípides e lhe impute a morte da tragédia, ele considera As bacantes — obra escrita um ano antes da morte de seu autor — um arrependimento. Eis como esse Eurípides tardiamente dionisíaco canta a união das bacantes com a natureza: “O chão regurgita de leite, de vinho, do néctar das abelhas.” Umas bacantes usam, “em vez de cinto, serpentes que lhes lambem o rosto. Outras, segurando filhotes de corças e de lobos selvagens, dão-lhes os seios ainda túrgidos, mães que abandonaram os filhos recém-nascidos. Todas elas coroam-se de hera, de carvalho ou de flores silvestres. Uma delas bate com o tirso numa rocha e faz jorrar água pura. Outra, fere o chão com sua haste e o deus faz brotar uma fonte de vinho. As que desejam o alvo leite esfregam o solo com os dedos e o recolhem em abundância. Da hera dos tirsos escorre o doce mel”.
No júbilo místico, as fronteiras da individuação desaparecem. “Todas as fronteiras de castas que a necessidade ou o capricho estabeleceram entre os homens desaparecem: o escravo e o homem livre, o nobre e o plebeu se unem nos mesmos coros báquicos”, diz Nietzsche. E pode-se acrescentar, no mesmo espírito, que desaparecem ou se atenuam ao máximo as diferenças entre masculino-feminino, bárbaro-civilizado, velhojovem, louco-sábio…
Isso quanto à substituição da individualização pela reconciliação. Em segundo lugar, o culto dionisíaco também significa o abandono dos preceitos apolíneos da medida e da consciência de si. Em vez de medida, o que se manifesta na celebração das bacantes é a hybris, com a música ex- tática, mágica, enfeitiçadora, apresentando a desmedida, a desmesura da natureza exultante na alegria, no sofrimento e no conhecimento. A desmesura se revela como verdade, no sentido de que à beleza da medida se opõe a verdade da desmesura ou de que à mentira da civilização se opõe a verdade da natureza. Na peça de Eurípides, é Penteu, o rei de Tebas, principal representante da repressão ao instinto, à força dionisíaca, quem denuncia que as mulheres de Tebas abandonaram seus lares pelas bacanais, permanecendo nas florestas sombrias, dançando em honra de uma nova divindade, um impostor, um encantador vindo da Lídia que as está iniciando nos mistérios báquicos.
O culto dionisíaco, em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade apolíneas, impõe um comportamento marcado por um êxtase, um entusiasmo, um enfeitiçamento, um frenesi sexual, uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e cruel.
Machado, Nietzsche e a polêmica sobre “O nascimento da tragédia”, p.37.
http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/as_bacantes.pdf