Moinhos
Muito antes de ser praia de Presidentes, de Deputados, Secretários e Directores Regionais, de um inglês treinador campeão do Benfica, de um campeão Regional de Ralis, do Rei dos bifes, de empresários, de médicos, advogados, professores, etc. e tal, era (apenas) um (humilde) Lugar (do Porto Formoso) onde viviam camponeses, cabreiros e um ou outro moleiro. Ali ‘vivia tudo do campo,’ diz-me Luís Faria Martins, ‘batata, milho, beterraba, trigo ervilha.’ ‘Era nas ladeiras, no Tomão e nalgumas chãs.’ Duas lojas, uma até tinha taberna, ‘uma era do meu irmão José Viana, a outra, da tia Botelha,’ onde havia de tudo um pouco. Não havia luz elétrica, nem água canalizada e a Ladeira da Velha (a principal via Nascente Poente da Ilha até ao século XX) havia sido substituída ‘pela estrada lá em cima calcetada com areia da praia dos moinhos.’ Tal como a Areia (da Ribeira Grande) aquela praia era ‘temida;’ dali saía a areia destinada à construção de casas e ao calcetamento de ruas e de estradas; ali ‘as mulheres’ lavavam roupa na ribeira do Limo e secavam-na na areia; ali, vacas, cabras e cavalos (umas duas vezes por ano) sortiam-se de sal e curavam-se de ‘empolas’ e mais mazelas; havia moinhos; os barcos varavam por ali (vararam pelo menos em tempos). Ali se ia aos sargos (na altura deles). Haveria (também) por ali lendas nas do género das da Areia? É provável. Até Santa Bárbara se tornar (graças ao surf) no (aclamado) areal internacional de hoje, os Moinhos reinaram indisputados (no Concelho – e talvez na ilha) por mais de duas décadas. Esta praia, sem dúvida, marca (ainda) a viragem das termas (no caso da das Caldeiras) para a praia. Para (tentar) ir desvendando os primeiros passos daquela praia, vou (recorrendo sobretudo à memória oral e a alguma documentação escrita) comparar o que aí sucede com o que sucede (pela mesma altura) aos areais da Ribeira Grande (o de Santa Bárbara e a Areia). O resultado (apesar do meu esforço) é (como sempre) uma narrativa (incompleta e) provisória.
Como é que o Lugar dos Moinhos se transforma na praia dos Moinhos? Tanto quanto (já) consegui saber, não sei se irei mais longe do que isso, ir ali ao mar tomar banho recuará (pelo menos, repito, pelo menos) à década de cinquenta do século XX. A ‘rapaziada’ dali (dos Moinhos) (mesmo não sabendo nadar) aproveitava para ‘se lavar no mar’ enquanto as (suas) cabras e vacas ‘ganhavam saúde’ na praia. ‘A água ficava amarela.’ Diz-me Laudalino Viana. Os (filhos e amigos) de Amâncio Faria e Maia (que explorava as fábricas de chá e a de espadana) também já lá iam. Quando e quem de fora dali começou a usar (mais) regularmente aquela praia? Tudo aponta (ainda) para a família Machado Faria e Maia. Em 1959, Graça, quando casou com Roberto Faria e Maia foi viver para a Fábrica de Chá Porto Formoso. Ali morou vários anos: ‘ia mais a cunhada e sobrinhos para a praia dos Moinhos. Como se fosse algo do outro mundo, os miúdos dali, escondiam-se a espreitar-nos de trás de montes de areia. Às vezes viam lá ao fundo, na ponta da praia, os Marques Moreira. Que moravam no Campo de São Francisco em Ponta Delgada.’ E amigos da família. Como os da Gorreana (Hintze e Mota): ‘Ia lá com as minhas amigas Faria e Maia,’ diz-me Margarida Hintze Mota, ‘era ainda uma adolescente. Solteira. As mulheres que lavavam roupa no tanque, até estranhavam.’ Já casada, começou por alugar uma casa: ‘[encostada ao lado Sul do tanque de lavar roupa]. Depois, talvez em 1969 ou já em 1970, o Hermano em parceria com o João Lalanda (irmão da Graça, mulher de Roberto) compraram por 80 contos o moinho (do meio). [Do Sr. António Raposo] (que embarcou para a Califórnia). E transformam-no em casa de veraneio.’
Entretanto, antes daquela compra, ‘a Casa do Moinho foi inaugurada em Julho de 1968.’ Como o sabe? ‘A minha filha tinha 15 dias e nasceu naquele ano.’ ‘Tomando (os irmãos Roberto e Leonor Faria e Maia) de renda ao Ti Herculano [o moleiro] a ponta final à frente do moinho, fizeram uma barraca de madeira.’ Porquê em madeira? ‘Porque o Abel Mafra – marido da Luísa Isabel Bettencourt Mafra – ligado à marinha -, disse não era permitido construir a menos de x metros do mar.’ Como era a casa? ‘Tinha casas de banho, dois quartos. Ninguém dormia lá. Havia uma esplanada.’ ‘As refeições eram feitas na Fábrica lá em cima e trazidas para a praia. Havia sempre visitas e faziam-se serões agradáveis.’ Por esta altura, ou alguns poucos anos depois, não muitos, no entanto, a Sr.ª Mercês Carreiro, da Lombinha da Maia (Lugar da Maia) ‘já viúva do Eugénio Pereira e amiga de D. Leonor Faria e Maia,’ segundo diz Luís Bettencourt, seu primo, que é testemunha do que diz, ‘fez de renda por 50$00 uma ladeira a uma senhora [cujo nome não se lembra]. Do lado de lá da ribeira do Limo que só tem entrada pela areia. Aí constrói uma casa de madeira onde passa o Verão. E aí recebe um grupo muito restrito de pessoas amigas.’ ‘A casa tinha dois quartos, do lado do Porto Formoso, um salão amplo que servia de sala de jantar, uma Kitchenette, casa de banho (com sanita), no lado de fora, um duche.’
E aquilo ali (ida à praia), diz-me um residente dali, que regressara a casa depois de ter estado fora, ‘começa vivinho em 1972. Já vinha gente da Ribeira Grande e do Porto (Formoso). Correram dali com as vaquinhas e as cabras.’ Havia (já) quem montasse na praia (ocasionalmente) tenda de campismo. E até (alguns) faziam nudismo. Em 1975, atraído pelo sossego dos Moinhos e de um bom investimento, Ted Smith, antigo jogador do Millwall (equipa inglesa) e treinador de sucesso do Sport Lisboa e Benfica, compra a casa de Luís Faria Martins por 150 contos: ‘Estava sentado à porta da minha casa. Isso logo no princípio do Verão. Apareceu-me num carro branco, um Opel, que veio pela Ladeira da Velha abaixo. O senhor é daqui? Esta é a sua casa? Num português que se percebia que não era português. Quer-me vender a casa? E o negócio foi feito ali mesmo.’ Ainda assim, durante a semana, eram só três guarda-sóis naquela praia: o dos Faria e Maia, o dos Hintze Mota e o do Ted Smith e de Paula (a companheira). Pelo que, só aos fins-de-semana ia lá mais alguma gente. Não muita ainda.
Como a frequência à praia (entretanto) não parava de aumentar por toda a Ilha (e ali também), surgem oportunidades que valia a pena agarrar. Querendo melhorar a sua sorte, alguns moradores abandonam os Moinhos. Vendem (trocam ou alugam) as suas ladeiras e casas. Uns, mudam-se para o Ramal do Porto Formoso (onde ficavam mais próximos de tudo). Outros, vão para o estrangeiro (onde sonhavam com novas oportunidades). Foi um bom negócio para vendedores e compradores. Os dos Moinhos (consideravam) que vendiam por bom preço (o que causava inveja aos do Porto), os de fora que compravam (por seu turno, consideravam) comprar barato. Que fazer às casas compradas? Desenvolvê-las (na sua maior parte) para as alugar. Tanto quanto sei, quem põe em prática (sem mais demoras) essa ideia é Ted Smith (John Edward Smith 3 de Setembro de 1914 - Grays - Inglaterra - f. 18 de Janeiro de 1989 – Lisboa). Encontra uma solução prática. Logo em 1977 ou em 78, manda vir (de Lisboa) três casas pré-fabricadas. Que aluga. Segue-se (ou já havia mas ainda não avançara) a formação de uma sociedade (informal), ‘não foram oficializá-la,’ diz Graça Faria e Maia, ‘pelos irmãos Leonor e Roberto Faria e Maia (a mãe, D. Gilda falecera em 1976 e o pai em 1962/3), e pelo Alferes Daniel Machado e esposa (moradores na Lomba da Maia).’ A ideia era arranjar as casas para as alugar. Desenvolver o turismo. Como chegaram às casas? ‘O José [Furtado] Pastor, feitor da Fábrica do Chá Porto Formoso [era ainda ou fora Regedor da Freguesia] conhecia quem ia para a América e dizia. E foram comprando.’ Aí por ‘1979 ou 1978, foi quando meu filho foi estudar para a América, por dificuldades, sem termos conseguido passar à construção e remodelação das casas, foi decidido vender o que tínhamos.’ Quem pegou na ideia ‘foi o Hermano Mota e Luísa Isabel (prima). Em finais dos anos setenta ou já em oitentas.’ ‘Na casa [ou espaço?] ao lado do moinho construíram três apartamentos.’ Em finais daquela década e na seguinte ‘construímos umas 10, 12 ou 15 casas. Ora o meu pai foi comprando as casas e remodelando ou fazendo aos poucos. Tanto do lado esquerdo como do direito de quem desce.’ Diz Fernando Luís Mota. Alguma dessa gente, por exemplo, ‘o António Plácido,’ foi morar para o ramal do Porto Formoso. Outros, porém, foram para a emigração. O Dinis [Botelho Raposo] Caroucha, de 46 anos, trabalhador agrícola, em 1969, ‘para pagar as passagens para a Califórnia [levava a esposa e sete filhos para ir] vendeu a casa e uma ladeira ao lado. ’
A praia dos Moinhos, que (já) deixara de ser (quase inteiramente) privada, exigia a entrada do poder público. Quem haveria de tratar das infraestruturas necessárias? Dos acessos, da luz elétrica, da canalização da água potável, da construção de balneários, de pagar a um vigia da praia, a nadadores-salvadores? O que foi (sendo) feito a passo de boi estafado. Em 1982, a Junta de Freguesia do Porto Formoso (presidida por José da Ponte Raposo) ‘tendo em atenção a crescente afluência que se tem verificado no decorrer dos últimos anos àquela Praia,’ insistia na ‘(…) construção de balneários públicos na Praia dos Moinhos (…) bem como a colocação na mesma de recipientes para recolha de lixo.’ A Câmara (contactada pela Junta) informava ‘que aquela obra só seria exequível no próximo Verão (…).’ Apesar das (repetidas) promessas (e outras tantas insistências), passados dois anos, nada ainda fora feito. Só seriam construídos em 1983. A 11 de Agosto 1985, prova da importância que aquela praia (entretanto) havia ganho, José Soares (com faro para o negócio) abre o Bar dos Moinhos. No Verão seguinte, em 1986, com o apoio da Junta de Freguesia do Porto Formoso, ‘para dar a conhecer o bar e atrair clientela,’ conforme nos confidenciou, organizou um festival em que teve os Engels (conjunto) como atracção principal. Em 1987, haveria ali (ainda com o apoio da Junta de Freguesia), um segundo Festival de Música. Era (já) Presidente da Junta João Furtado. Desde a década de oitenta, já lá havia o Manuel Luís (Cagarro) (o banheiro que não sabia nadar). Quando via ‘estrangeira’ em ‘topless,’ guardião dos bons costumes, gritava: ‘no moleixas, moleixas para dentro, aqui catolic!’ E um nadador-salvador (um deles foi o Álvaro Janeiro, conhecido por Barata). Ora, com mais gente a ir à praia, a Junta volta a insistir (sem qualquer sucesso) na necessidade (urgente) de construir um parque de estacionamento ‘que faz muita falta na época Balnear (…).’
Enquanto isso se passava nos Moinhos, o areal de Santa Bárbara descia aos ‘infernos.’ A Areia (o outro areal) dava (finalmente) uns (tímidos) passos (que pareciam) prometer. Acidentes graves ali ocorridos, no entanto, iriam adiar (mais uma vez) o sonho (já de barbas brancas). A piscina municipal, inaugurada em 1972/3, funcionava a meio gás por não se ter encontrado solução para problemas (técnicos). As Poças ‘rebentavam pelas costuras.’ Em 1978, ‘atendendo aos graves acidentes, alguns deles mortais, que tem acontecido naquele mar,’ foi colocado um sinal de perigo no Areal de Santa Bárbara. O pior ainda estaria por vir: a extração em larga escala da (sua) areia. Em 1985, a gestão passaria para a Câmara. O que não traria nenhum benefício (antes pelo contrário). Em 1984, no Areal/Areia, parecia surgir uma renovada esperança. A Junta da Conceição de José Ledo, dava a boa nova à Assembleia: os ‘balneários na Praia da Ribeira Grande’ seriam feitos ‘por administração (directa) da Câmara Municipal.’ E foram-no. E a colocação de duches. Naquele ano a OTL/Jovem ocupou-se da limpeza da praia. Promoveram-se (até) competições desportivas. Porém, azar: recusando-se a capitania a permitir vigilantes, ocorreram (ali) graves acidentes. Evitáveis? Fernando Monteiro (agora vereador eleito pelo Partido Socialista) perante isso propôs que fosse ali (também) colocado um sinal de aviso de perigo. Aqui chegado, vejo que me aproximei (presumo que razoavelmente) do quando e de quem adotou os Moinhos, percebi (presumo ainda) a razão da saída dos que lá moravam, todavia, reconheço, não ter aprofundado um ponto importante: o que viam ali que valesse a pena? E como se relacionavam com quem lá estava? Entretanto, chegados à década de noventa e a princípios do século XXI. Que sucede?
Praia dos Moinhos (Porto Formoso – Ribeira Grande) (Continua) (Correio dos Açores, 7 de Outubro de 2023)