Ao corpo, recomenda-se sacrificá-lo: notas para uma liposofia soberana

"[contra a] vontade de durar indefinidamente, Georges Bataille opõe a visão de um corpo que agoniza e perece".

-Tiago Ribeira Nunes

1. AS DIGRESSÕES DA PELE

I. O corpo gordo impera ao lado dos corpos tomados como abjetos pela ocidentalidade, corresistindo com o corpo negro, com o corpo trans e com corpo da mulher na legião dos corpos que incomodam. Contra esses corpos institui-se um regime alienante de sentidos, é importante que não saibam como desejar, que não saibam gozar, que não saibam habitar o próprio corpo. Quando falamos de tecnocapitalismo estamos falando de neoliberalismo e de biopolítica: estamos falando de uma corrente subjetivante que se estratifica sobre os corpos e baliza seus circuitos desejantes, falamos, portanto, da laceração do corpo pela destruição da possibilidade de um desejo autêntico.

Dizem-nos, a todo momento, das mais variadas formas: Seu Corpo Não Deveria Existir. O discurso lipofóbico é onipresente, estendendo-se do ciberespaço às arquiteturas urbanas, não precisa ser falado: é um fato que não pode ser contestado. Uma simples rolagem em qualquer rede social pode atestar isso: nesses espaços o corpo gordo existe ou como piada ou como o desejo de não-existir. Desde a mais tenra idade este corpo é treinado para a autodestruição: estar gordo é tolerável, mas permanecer gordo é inaceitável. Se você não for magro, deve, pelo menos, desejá-lo, caso contrário viverá em uma dívida eterna. O corpo magro é a referência da existência da corporalidade: é o único corpo possível, para com ele, todos os outros corpos devem existir tomando-lhe como referência: o corpo gordo lhe é inferior, o corpo musculoso é sua ultrapassagem. Hierarquizam-se os corpos segundo uma referência falseável de rendimento: o corpo magro é o corpo belo, atraente e saudável ele é o mínimo possível, o ponto de partida. Todo corpo que não for como ele, nem de maneira semelhante é feio, repulsivo e doente: sua existência, portanto, não convém.

O corpo gordo dificilmente é representado como um corpo a ser tomado como referência, de fato, ele está excluído do jogo da beleza. Um corpo gordo só pode ser considerado minimamente belo à medida em que se parece ou se aproxima do corpo magro (quando dizem sobre as mulheres gordas, por exemplo, “ela é bonita de rosto” tudo o que querem dizer é que o seu rosto não parece com o rosto de uma pessoa gorda). Quando tentam nos elogiar dizem “você está mais magro”, ter engordado e/ou permanecer gordo nunca é tomado como símbolo positivo, pelo contrário, para a sociedade, atesta um fracasso, um adoecimento. Quando nos dizem “você está mais magro” querem nos dizer “quanto mais se distancia do teu corpo gordo mais posso lhe dizer que é bonito, atraente ou saudável, caso contrário esses adjetivos não te pertencem”, no fundo se trata de uma violência.

O corpo gordo ex-iste (está fora) das possibilidades do identificar-se, são construídos como corpos doentes, como corpos risíveis: não existem heróis e heroínas gordas, uma pessoa gorda nunca opera em um papel de protagonismo nas ficções da ocidentalidade, estão sempre em papéis secundários, pois o corpo gordo é secundário em relação ao corpo magro. A criança gorda, não tem em quem se identificar, não lhe resta herói ou vilão, princesa ou madrasta a quem possa olhar e dizer “veja! ela é como eu!”, a única possibilidade para esta criança é a de desejar ser magra. De fato, esse desejo é reforçado pelo Outro, por toda a existência daquela criança, lhe cobram o corpo magro, lhe impõem o desejo de não habitar o próprio corpo, lhe impregnam com a auto-aniquilação.

À criança gorda não resta opção e nem meditação sobre o próprio corpo. Para muitos de nós, essas são as únicas opções: magreza ou morte. E muitos de nós, não alcançando a magreza, são jogados à morte, ou à mortificação. É nesse processo de mortificação do corpo gordo, do corpo que não tem o direito de existir, que se instalam os adoecimentos psíquicos: a baixa autoestima, os transtornos alimentares, as tendências depressivas e suicidas… que outro fim dar a um corpo que não pode existir senão a morte? O corpo gordo, por excelência, não é um corpo doente, mas por excelência é um corpo que foi adoecido. Seu patógeno, no entanto, é exterior ao próprio corpo. Vendem a imagem do corpo gordo como doente: A Obesidade é Uma Doença, eles dizem, mas a incidência da lipofobia sobre a subjetividade da pessoa gorda é muito mais adoecedora do que ter um corpo que simplesmente é gordo. A verdadeira doença do corpo gordo é viver em uma sociedade que não o aceita.

II. Não é incomum que uma pessoa gorda escute Você Precisa Fechar a Boca, uma frase simbólica. Por um lado, a boca é por onde entra a fonte da “miséria” daquele corpo: a comida, e por outro, é por onde aquele corpo pode expressar sua angústia: através da fala. Quando dizem “você precisa fechar a boca” não querem dizer outra coisa senão “você não tem o direito de resistir contra o imperativo da magritude”. De fato, a pessoa gorda pouco expressa sua angústia em relação às violências que incidem sobre seu corpo, até mesmo porque, para outrem, essas violências são vistas apenas como “advertências” ou simples prescrições. “Você precisa emagrecer”, “você tem feito exercícios?”, “você está gorda demais”, “você não está se cuidando”, “você seria mais bonita se fosse mais magra”, “cuidado com a cintura”, “você está crescendo, dos lados”... uma série de frases extremamente afiadas perfuram o corpo gordo que não pode resistir ou se mobilizar contra elas, afinal, o corpo gordo não tem o direito de querer ser gordo, ele deve ser magro, e toda a invalidação verbalizada contra seu corpo, por mais violenta e incômoda que seja, para outrem, não passam de palavras inócuas. Afinal, se o corpo gordo não deve existir, toda palavra que se volte contra ele será bem-vinda, toda piada contra esse corpo é engraçada e todo desdém que pode-se investir sobre ele é validado. Se nos posicionamos contra essas palavras somos fracos, mesquinhos e não aceitamos “o que é melhor para gente” (como se alguém além de mim tivesse o direito de dizer o que é melhor para o corpo que habito).

Nos ensinaram, de maneira silenciosa, a odiar o nosso próprio corpo. Nos tornamos inseguros, temerosos. Passamos uma vida aprendendo que o nosso corpo é feio, invalido e impossível. Não aprendemos a viver com o nosso corpo, aprendemos a viver apesar dele. Temos sempre que desenvolver habilidades secundárias para que possamos minimamente existir sem que a pressão sobre o nosso corpo nos dilacere. Dizem que os homens gordos são engraçados, claro, mas que outros recursos esse homem tem para viver no meio social senão o humor? Quando riem de seu corpo ou quando fazem bullying com ele, que outra estratégia tomar senão rir de si mesmo para habitar esses espaços sociais? Desenvolvemos estrategramas para compensar o nosso “defeito”, a nossa parte maldita. Recorremos ao humor, à inteligência, à competência ou a vestir-se bem, tudo isso para mascarar o nosso corpo gordo, um defeito inaceitável. Desenvolvemos competências para tentar suprir a dívida eterna que temos com a magritude, a nossa ferida aberta. Sabemos que não seremos aceitos pelos nossos corpos, então buscamos a aceitação por outra via.

Não é incomum que as pessoas gordas vivam uma existência de dívidas com o próprio corpo, buscando seguir as prescrições que vão tornar seu corpo “mais saudável”, “mais magro” e “melhorar sua qualidade de vida”, as pessoas gordas seguem uma série de dietas, fazem exercícios, vão a nutricionistas… algumas alcançam esse desejo que vem de fora, o corpo magro, outras não conseguem. O corpo magro é um corpo vitorioso, o ponto de partida, a pessoa gorda que não consegue ser magra é vista como preguiçosa, como fracassada, por mais que tenha seguido à risca as prescrições que lhe ofereceram.

Não basta “se alimentar bem”, é preciso ser magro; não basta fazer exercícios, é preciso ser magro; não basta ter uma boa qualidade de vida, é preciso ser magro; não basta ser feliz, é preciso ser magro. Enquanto o corpo gordo permanecer gordo ele estará em dívida, ele estará devendo uma magreza que muitas vezes não deseja autenticamente. Essa dívida o esmaga e o sufoca porque, teoricamente, “emagrecer é simples” quando, na verdade, para muitos, não é. Não precisamos emagrecer ou querer emagrecer para existirmos e sermos aceitos, não precisamos fazer dieta ou exercícios para existirmos e sermos aceitos, nós só precisamos ter um corpo.

III. O corpo é uma entidade imprevisível, variável, existem tantos corpos quanto existem pessoas. Todo corpo é diferente do outro, cada corpo tem uma forma singular, uma funcionalidade singular. Esse aspecto, próprio da corporalidade, é mutilado na ocidentalidade: o único corpo possível é o corpo magro, outras formas de existir em um corpo, por mais normais que sejam, não são válidas. O corpo gordo não é uma doença, é simplesmente um biotipo, um componente genético, algumas pessoas têm tendência a serem magras, outras a serem gordas e outras ganham massa muscular com mais facilidade, no entanto, apenas as pessoas gordas não possuem o direito de existir e habitar no próprio corpo. O corpo gordo é um corpo sujo, um corpo maldito, um corpo suicidado.

O alimento é alienado e amaldiçoado nesse processo, e a quantificação é utilizada como recurso torturante. Mães e pais acompanham de perto o peso de seus filhos e os punem quando ganham quilos. Um modo de vida, muitas vezes indesejado e inconveniente, incide sobre esses corpos por esse Outro que vigia seu peso, seu desejo e aquilo o que come. O alimento e o corpo, aquilo o que nos mantém vivos, é tomado da pessoa gorda, a ela cabe comer para agradar o Outro, a ela cabe viver para atingir o corpo que o Outro quer que ela tenha. Sua “gordura” é tomada como a parte maldita, que deve ser dilacerada a todo custo. A pessoa gorda deseja mutilar o próprio gordo, porque não consegue coexistir com ele.

Nós sempre pensamos “e se eu fosse magro? as coisas seriam diferentes”... Apenas as pessoas gordas (ou que já foram gordas) conhecem esse sentimento de extrema inadequação do corpo. Fomos criados para odiarmos os nossos corpos, para não querermos habitar nele, fomos criados para desejar mutilar os nossos corpos, para desejar destruí-los. Fomos fadados a um fim prematuro, a uma existência sufocante e angustiante, fadados a um sofrimento que não pode ser compartilhado. O saber que vem dessa angústia, e que apenas pessoas gordas possuem, é soberano: esse discurso, presente nesse texto, não conhece negação e nem pode ser contestado, toda tentativa de desafiá-lo é vã e dúbia, esse é o saber idiossincrático que pertence somente ao corpo gordo, essa é sua liposofia.

2. A ESCOLA DA CARNE

I. O que fazer com este corpo maldito? Essa é a pergunta nos fazemos a todo momento. Onde pousar esse corpo doente, febril, mutilado, suicidado, sujo, fracassado, dividoso e indesejado? Ora, ao corpo: recomenda-se sacrificá-lo. O corpo gordo é a ferida aberta no narcisismo da ocidentalidade, ele desafia o imperativo da magritude, é um corpo transgressor. Por isso deve ser eliminado, se ele não se submeter ao regime dos corpos pela incidência do Imperativo sobre a pele, deve ser mortificado pela dívida de habitar um corpo que não se adequou. Esses são os caminhos disponibilizados para o corpo gordo, caminhos que não queremos, caminhos que negamos: como criar outros caminhos? Se nos tiram como parasitas, devemos pensar como um; o bicho geográfico escava a pele de seu hospedeiro criando fendas, caminhos, tocas, num processo de laceração que coça e dói. Temos que fazer sangrar a pele dessa distopia bodypunk retomando aquilo o que a todo momento tentam roubar de nós: o desejo, a possibilidade de ser feliz no próprio corpo.

Sacrificar o corpo não é o mesmo que assassiná-lo, muito pelo contrário. Para os povos originários do méxico e da américa central, o sacrifício humano era o cerne de sua comunidade, vivia-se diante disso. O sacrifício nada mais é do que a confecção de objetos sagrados (é isso o que sacrifício significa), era através do ritual de imolação do sacrificado que seu corpo poderia-se tornar divino, participando da prosperidade da polis, existindo para a glória do Sol. O sacrifício humano é um processo de intimidade com o divino, nele há beleza e consentimento. O que significa sacrificar o corpo gordo? Significa tomá-lo por objeto sagrado, significa elevar ao divino o caráter abjeto da corporalidade gorda.

O que é um corpo? Antes de tudo, um corpo é aquilo que goza, o corpo é a substância gozante. Elevar ao divino significa restituir ao corpo gordo a possibilidade do gozo autêntico, do gozo de si, significa perceber o corpo gordo como um corpo possível, como um corpo que goza. Trata-se de responsabilizar-se pelo próprio corpo e não culpabilizar-se por ele, trata-se de perdoar o corpo ao invés de puní-lo, trata-se de viver com o corpo e não apesar dele.

Trata-se de criar outro regime de sentidos para esse corpo violado, não se trata simplesmente de criar para si um corpo-sem-órgãos, mas antes, o esforço de preservar aqueles órgãos que nos convenceram que devemos odiar: a barriga, os braços, a pele. Contra a auto-destruição que nos ensinaram, propomos a autoconservação. Isso não significa simplesmente destruir o desejo de ser magro: alguns o querem, alguns o fazem, não há problema nisso. Significa investigar a relação de si com o corpo e perceber se o desejo da magritude é autêntico ou não e, em caso negativo, abraçar-se a si mesmo. Esse não é um simples processo de amar-se a si mesmo, é também, um processo de amaldiçoar tudo aquilo o que desafia esse amor, pois o corpo gordo será tomado como louco a partir do momento em que ele assumir que quer continuar gordo. Contra essas vozes que desejam impedir o sacrifício e colonizar o corpo gordo, oferecemos o macuahuitl, a arma asteca de guerra. Permitir-se habitar o corpo gordo é pilotar a máquina de guerra semiótica, é produzir novos sentidos, novas possibilidades de corporalidade, é assumir o caráter transgressor dos corpos abjetos.

A liposofia soberana não é simplesmente o saber do corpo gordo, é também tomar uma atitude que afirma: ninguém mais poderá alienar o meu corpo de mim. Tomar o corpo como seu: fazê-lo sagrado de tal forma que toda contestação será profana e maldita, tornar-se sacrificante e sacrificado, devir-musa-carrasco, lutar contra o imperativo do corpo magro, é isso o que proponho. Claro, não é uma tarefa simples e nem mesmo é uma tarefa, é uma ética, um protocolo de guerra.

II. A questão em jogo não é obrigar outrem a aceitar o corpo gordo e destituí-lo da potência do incômodo, mas elevá-lo à enésima potência: reverter (e perverter) a hierarquia dos valores. Antes mesmo de preocupar-se com a passabilidade do corpo gordo nos meios sociais, aceitá-lo você mesmo, aceitar o corpo gordo como potência criadora. Trata-se de inscrever uma transladação na constelação dos corpos: do abjeto ao objeto e depois, ao abjeto novamente, uma dialética suja e materialista, uma dialética da carne. Explorar a potência desse corpo, pilotar essa máquina de combate, fazer-se relativamente viável. Isso é uma questão de vida ou morte.

O corpo gordo é uma ameaça, será que queremos tirar dele seu caráter instituinte? Este corpo, contra tudo o que a nova tendência bodypunk do tecnocapitalismo impõe, nos lembra que os corpos são diferentes, dinâmicos, finitos e funcionam segundo referências distintas, com diferentes ritmos e cadências. O corpo gordo é a fratura do capitalismo, se posiciona, mesmo que por acidente, contra a massificação biopolítica dos corpos, ele incomoda, desterritorializa, ele subverte. Contra a religião polida do tecnocapitalismo, baseada na ritualística da moeda, propõe-se a selvageria do sacrifício humano: tomar a carne em seu caráter essencial, como a plataforma que torna a vida possível, como o substrato afirmativo que goza e regozija, como a substância que desafia a Lei e os imperativos sociais.

III. Nessa distopia que vivemos, o corpo gordo sacrificado é pós-humano. É pós-humano porque a humanidade como projeto é uma metanarrativa falida, o corpo gordo é pós-humano porque ser humano é ser fascista. O humano, historicamente localizado e ideologicamente pensando é o corpo do homem cis, branco, magro, jovem, hétero, viríl e produtivo. Todos os corpos que desviam dessa categoria são sua corruptela, são as monstruosidades: os animais, os negros, os trans, as mulheres, as sexualidades dissidentes, os gordos: outras espécies, outras possibilidades de ser humano, ou possibilidades de ser outra coisa.

Essa parte de nós, que nos ensinaram a odiar, é justamente o que temos de menos humano: nossa gordura abdominal, nossas estrias, nossa flacidez. Ser menos humano é ter a possibilidade de ser outra coisa, de pensar-se outra coisa, de poder-ser outra coisa. O corpo gordo sacrificado, tomado como sinthoma, elevado à soberania solar é vetor revolutivo, é um dos únicos corpos capazes de separar a linguagem da carne e destituir são caráter fascistóide, é um dos corpos capazes de escrever não-poesia.

Ser gordo é ser sacrifício, é ser pós-humano, é ser ciborgue: pensar outras formas de pilotar o desejo, pensar o impossível do corpo como infinitamente possível, como afirmação acelerada e imparável. Não negar o caráter político da carne, incomodar, destituir, destruir, remodelar, devir-imperceptivelmente, devir-animal, caráter molecular dos lipídios no corpo, as tecnologias do fazer-se, o devir-gordo, o devir-outro. Escrever outras formas de prazer, gozar com o próprio corpo, infectar a sociedade, se organizar politicamente, criar comunidades autênticas, pensar a psicologia como malware, hackear os códigos sociais e corporais.

Sim, o corpo gordo é um corpo doente, porque ele é a doença e a ruína do tecnocapitalismo. As palavras de ordem que este corpo conhece não são outras senão: goze, viva, desobedeça!