BACHELARD: A IMAGINAÇÃO POÉTICA E CRIADORA

''Graças a imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. É ela, no psiquismo humano, a própria experiência da abertura, a própria experiência da novidade. Mais que qualquer outro poder, ela especifica o psiquismo humano. Como proclama Blake: 'A imaginação não é um estado, é a própria existência humana' .''

(Gaston Bachelard- O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento)

 

     Gaston Bachelard, nos seus estudos sobre o imaginário e a imaginação poética e criadora, se aprofundou nos fragmentos poéticos dos poetas, artistas e escritores para delinear os contornos de suas reflexões, cujos interesses principais de seus ensaios são os espaços da intimidade; a imaginação ativa que, em vez de ser reprodutora e passiva, é poder e criação de imagens; e, também, os devaneios poéticos do sonhador, que no seu voo de ascensão, na sua queda ou no seu mergulho nas profundezas, subjaz impressões poéticas profundas e marcantes.

     Num texto bachelardiano presente no seu livro sobre a imaginação da matéria, ''A água e os sonhos'', podemos compreender que: ''A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade''.

     Além desses assuntos de interesse, Bachelard se baseia nos simbolismos de cada um dos quatro elementos suscitados pela imaginação material, esmiuçando os complexos de cada poeta e artista estudado, elementos como fogo, ar, terra e água, nos quais o filósofo Empédocles já apresentava como co-originários do cosmos e de nossa realidade.

     A respeito dessa noção de complexos, podemos evocar o psicólogo jung, que o define da seguinte forma no seu estudo ''A energia psíquica'':  ''Ao estudar os fenômenos da associação, indiquei que existem certos agrupamentos de elementos psíquicos em torno de conteúdos emocionais que denominamos complexos. O conteúdo emocional, ou complexo, é constituído de um elemento nuclear e de uma grande quantidade de associações consteladas secundariamente. O elemento nuclear consta de dois componentes: em primeiro lugar, de uma condição, determinada pela experiência, portanto, de um fato, vivido, causalmente vinculado ao ambiente, e, em segundo lugar, de uma condição imanente de caráter individual de natureza disposicional''.

     É perceptível, em seus livros sobre imaginação poética, que Bachelard se utiliza dessa noção de complexos no âmbito da literatura e também para se aprofundar no estudo do psiquismo de alguns poetas, como Edgar Alan Poe (e seu devaneio da água pesada) e Nietzche (o poeta do elemento ar), no qual busca compreender alguns personagens com base nessa perspectiva da psicologia junguiana. Podemos aqui destacar um capítulo inteiramente dedicado aos complexos de Orfélia e de Caronte: importantes figuras mitológicas. Não podemos esquecer de mencionar também dois capítulos redigidos no livro ''A psicanalise do fogo'', um se baseando na vida de um filósofo que se tornou lendário e o outro se utilizando de um mito grego fundamental para a cultura ocidental. No primeiro capítulo, é dedicado a examinar o complexo de Empédocles, cujo objetivo é tecer paralelos entre os devaneios e uma psicanalise do elemento fogo. E no segundo capítulo, é dedicado a examinar o complexo de Prometheu, onde nos dá uma base para uma psicanálise do conheciemnto objetivo (''Il s'agit en effet de trouver l'action des valeurs inconscientes à la base même de la connaissance empirique et scientifique).

     Já no livro ''O ar e os sonhos'', ao mencionar alguns poetas e escritores de enorme envergadura, o filosofo em prol do seu objetivo vai dizer: ''Em particular, imagens tiradas das obras tão diversas de um Shelley, de um Balzac, de um Rilke,  nos mostrarão que a psicologia concreta do sonho de voo noturno permite descortinar o que há de concreto e universal em poemas não raro obscuros evasivos''.

     O pensador francês, influenciado pelo filósofo pré-socrático, além da psicanálise e do surrealismo, fazia questão de estudar tais elementos em cada um dos seus livros (de forma separada e aprofundada), baseado nas imagens que não dispensam certas mitologias e folclores. Portanto, um dos grandes focos de interesse de Bachelard é a imaginação voltada para os quatro princípios originários da nossa realidade, tendo como base para os seus insights sobre o onirismo e os devaneios a cosmovisão multifacetada do filósofo grego Empédocles.

     De fato, tais obras dedicadas ao estudo da imaginação criadora terão início em 1935 com a primeira obra chamada ''A psicanálise do fogo'' (1935): obra que marca o início de seus trabalhos sobre os sonhos e  as rêveries na literatura. Em seguida, o autor escreve obras igualmente excelentes e memoráveis, tais como: ''A água e o sonhos'' (1942); ''O ar e os sonhos''(1943); ''A terra e os devaneios da vontade'' (1948); e ''A terra e os devaneios do repouso''(1948), obras que, infelizmente, foram redigidas num contexto bastante conturbado e delicado para uma vida de sonhos, devaneios e poesia.

     Jean-Claude Margoli, no seu estudo sobre Bacheard, se referindo a imagem vivida nos devaneios dos quatro elementos, vai nos dar uma luz para compreender o seu pensamento filosófico da imaginação material: ''Le dinamisme de l'image vécu dans la rêverie de l'eau, de la terre, de l'air ou du feu, ne relève pas l'homme historico-social ou de l'homme biologique, mais qui dépasse toutes ses determinations, toutes ses limitations''.

     Ou seja, esse dinamismo da vivência da imagem suscitada por elementos como fogo, água, terra e ar, ultrapassa todas as determinações e limitações, desconhecendo o homem biológico e histórico-social. O que conta mesmo é a vivência do imaginário poético com relação a matéria, seja em movimento, seja de forma mais fluida ou turbulenta como os rios ou os mares, seja sob forte resistência que requer muitas vezes a força imperiosa do indivíduo.

     No ensaio sobre a imaginação das forças, obra dedicada aos devaneios da vontade, Bachelard a respeito da linguagem e da imagem literária nos traz uma bela elucidação: ''A imagem literária nos dá a experiência de uma criação de linguagem. Se examinarmos uma imagem literária como uma consciência de linguagem, recebemos dela um dinamismo psíquico novo. Portanto, acreditamos ter a possibilidade, nos simples exames das imagens literárias, de descobrir uma ação eminente da imaginação''. Nessa mesma obra, com base nos ensinamentos de Jung sobre os arquétipos, Bachelard não podia ser mais claro a respeito do papel ativo que a imaginação tem sobre as imagens: ''As imagens imaginadas são antes sublimações dos arquétipos do que reproduções da realidade''.

     E numa outra obra dedicada ao elemento terra, porém sob o aspecto da intimidade e do repouso, um ensaio sobre as imagens da intimidade, Bachelard nos dá uma luz a respeito do seu projeto onírico e rêvante: ''É ao sonhar com essa intimidade que se sonha com o repouso do ser, com um repouso enraizado, um repouso que tem intensidade e que não é apenas essa mobilidade inteiramente externa reinante entre as coisas externas. É sob a sedução desse repouso íntimo e intenso que algumas almas definem o ser pelo repouso, pela substância, em sentido oposto aos esforços que fizemos, em outra obra anterior, para definir o ser humano como emergência e dinamismo''.  Nessa obra dedicada a terra sob o viés do repouso, presenciamos um estudo magnífico do repouso, do refúgio e do enraizamento. Imagens como casa, ventre, caverna, segundo o autor: "trazem a mesma grande marca da volta à grande mãe''. Aqui não podemos esquecer da importância do inconsciente e a maneira como ele trabalha e dirige a vida do indivíduo.

     Com base nisso, podemos ver a influência de jung nas obras bachelardianas sobre o imaginário. Pois assim como o psicólogo de Zurique que recorria a alquimia para trazer uma compreensão das profundezas do inconsciente, Bachelard também recorre a ela para ajudar na compreensão do aperfeiçoamento interior que se estabelece na vida do sonhador. Marcelo de Carvalho, no seu livro Conhecimento e devaneio, vai se referir a essa tendência no pensamento de Bachelard da seguinte maneira: ''O valor da alquimia enquanto iniciação moral e processo de aperfeiçoamento interior se dá na perspectiva da rêverie e dos sonhos, pois será a alma mesma a envolver-se na experiência de purificação que a alquimia requer. Assim, aos olhos de Bachelard, a experiência de transmutação alquímica é suscetível de uma interpretação dupla: por um lado, a alquimia é uma aplicação da química, enquanto busca pela pureza ou concentração das substâncias através de sucessivas destilações, e, por outro lado, aproxima-se da moral, enquanto renascimento espiritual que acontece após o procedimento purificatório''.

     O filósofo francês, que também não deixava de ser um poeta, continuou mais adiante produzindo legados na área da ciência, da filosofia e da literatura imbuídos de um espírito inovador, lúcido e jovial, criando um caminho de diálogo entre a psicanálise, a psicologia analítica de Jung e a fenomenologia.

   Com base em alguns insights desta ciência rigorosa criada por Husserl, que nos ensina a ver as coisas tal como ela são pelo caminho da intencionalidade, o filosofo após a década de 50 escreve três grandes obras, ''A poética do devaneio'' (1960), livro que desenvolve uma verdadeira fenomenologia do devaneio, ''trazendo à plena luz a tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas'' Nessa mesma obra há um capítulos sobre animus e anima e um sobre os deveneios voltados para a infância; ''A chama de uma vela''(1961), ''uma obra que enfatiza a vivência do sonhador na contemplação de uma chama solitária'' e com um capítulo que busca contribuir para uma ontologia do ser solitário ao lado de uma chama isolada; e ''A poética do espaço'' (1957). Neste último livro em específico, no qual progride o seu pensamento sobre a imaginação criadora em vez de reprodutora como enfatizava Bergson, o autor francês elabora uma descrição fenomenológica dos espaços da intimidade. Imagens como casa, sótão, porão, ninho e o redondo e sua fenomenologia, bem como as imagens que remetem a miniatura e a imensidão, recebem uma descrição cuidadosa e minuciosa de Bachelard, no qual dá especial atenção às obras de alguns escritores e poetas onde tais imagens são bastante presentes e marcantes.

    No prefácio de sua obra principal, "A poética do espaço", o autor nos esclarece o seu objetivo com foco na imagem poética: ''A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta. É com essa ontologia que desejamos trabalhar''. E por falar em poesia, Bachelard,  busca ampliar essa concepção ao desenvolver uma metafísica do instante poético, considerando a harmonia entre dois contrários e dando importância mais ao tempo vertical do que o tempo horizontal para que a totalidade de uma poesia possa se comunicar livremente com o ser.  Aqui, também o que conta são as ambivalências e as antíteses para que haja a consciência do instante poético. No primeiro parágrafo de seu artigo, ''instante poético e instante metafísico'' (texto que compõe o livro ''Direito de sonhar), o filósofo vai dizer: ''A poesia é metafísica instantânea. Num curto  poema, ela deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, um ser e objetos, tudo ao mesmo tempo. Se segue simplesmente o tempo da vida, ela é menos que esta; só pode ser mais que o tempo da vida imobilizando-a, vivendo no próprio lugar a dialética das alegrias e das dores. Ela é, então, o princípio de uma simultaneidade essencial em que o ser mais disperso, mais desunido, conquista sua unidade''.

     Sendo, pois, a ontologia o estudo do ser, Bachelard não pretende outra coisa senão desenvolver um estudo sobre a ontologia da imagem poética cantada por poetas e escritores, um estudo fenomenológico de primeira grandeza, resgatando a novidade da imagem contida num verso, numa poesia ou num fragmento literário que revela os mais diversos espaços onde se abriga os devaneios e as intimidade de um ser.

     A respeito do espaço vivido, Bachelard nos dá uma ideia que do que irá elucidar e descrever na sua obra ''A poética do espaço'': ''O espaço compreendido pela imaginação não pode ficar sendo o espaço indiferente abandonado à medida e reflexão do geômetra. É vivido. E é vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. (...) A imaginação imagina incessantemente e se enriquece de novas imagens. É essa riqueza do ser imaginado que queremos explorar''.

     E, de fato, já no primeiro capítulo desse livro, Bachelard recorre a literatura para explorar as profundezas e as alturas de uma casa composta de escadaria, porão e sótão, levando o leitor a devanear junto com as imagens poéticas extraídas de alguns poetas, nos quais o escritor francês considera de importância para sua obra. Sobre a casa natal, somos conduzidos a um devaneio e a um conforto que remete ao paraíso de nossa infância: ''Quando se sonha com a casa natal, na profundidade extrema do devaneio, participa-se desse calor primeiro, dessa matéria bem temperada do paraíso material. É nesse ambiente que vivem os seres protetores''. Nesse mesmo capítulo, Bachelard vai fazer uma descrição fenomenológica de certos lugares da casa mais inacessíveis e, por fim, sobre o sentido da cabana, enfatizando a figura do eremita em meio a um ambiente aconchegante, em solidão absoluta.

  A respeito do projeto fenomenológico contido na obra bachelardiana dedicada ao imaginário poético, o autor Marcelo de Carvalho, no seu livro magistral intitulado Conhecimento e devaneio: Gaston Bachelard e a androgenia da alma (que vem a preencher uma lacuna e a nos suprir com seu bélissimo estudo sobre Bachelard no Brasil), diz o seguinte ao se utilizar de um texto da obra ''A poética do devaneio'' : ''O significado que a fenomenologia assume na consideração bachelardiana é análogo àquele de uma tomada de consciência do sujeito-da consciência rêvante, diante da imagem poética-, o que representa, simultaneamente, uma tomada de consciência do ser. Bachelard confessa a ambição por provar que rêverie significa construção de um mundo para uma certa alma, caracterizando-se, consequentemente, como rêverie cósmica. A imagem poética é o depoimento de uma alma que descobre, pela primeira vez, a si mesma e ao próprio mundo interior, na qual chegará a afirmar, em total autonomia, a possibilidade existir autenticamente''.

     Bachelard deu certamente um novo fôlego, abrindo uma nova perspectiva para um estudo da literatura; ao mesmo tempo, ele deu contribuições para desenvolvimento da topoanálise, ou seja, uma análise dos espaços que abrigam nossa intimidade, os nossos valores e nossa alma; e da ritmanálise sob influencia do filósofo Lucio Alberto Pinheiro dos Santos. O pensador, na obra dedicada a uma poética do espaço, vai nos dizer o seguinte: ''(...) dizíamos em outra oportunidade, que examinando os rítimos da vida em seu detalhe, descendo dos grandes ritmos impostos pelo universo a ritmos mais finos que atuam sobre as sensibilidades extremas do homem, poderíamos estabelecer uma ritmanálise que tenderia a tornar felizes e ligeiras as ambivalências que os psicanalistas descobrem nos psiquismos conturbados. Mas, se escutamos os poetas, os devaneios alternados perdem sua rivalidade''.

     É claro que para chegar a esse patamar, o filosofo de Bar-sur-Albe trilhou ao longo das décadas um caminho próprio de análise das obras literárias e de estudo filosófico das verdades poéticas. Com o passar do tempo, após o seu percurso no mundo da claridade científica, lançando obras como ''O novo espírito científico'' e ''A formação do espírito científico'', o filósofo francês passou a se dedicar a uma profunda reflexão filosófica com foco na poesia, na literatura e na imaginação poética sob a égide do devaneio.

     De forma didática, muitos pesquisadores do seu pensamento chegaram a definir dois tipos de pensamento filosófico em Bachelard, a saber: o diurno, marcado por uma filosofia da ciência; e o noturno, influenciado pelo imaginário poético presente na literatura dos poetas e escritores; construindo, portanto, uma filosofia da poesia e estruturando de forma toda própria e independente uma fenomenologia da imaginação.

   A partir desse renovo na sua carreira universitária e intelectual após a década de 30, o filósofo criou um itinerário profundamente inspirado pela arte poética, que se solidificou de forma paralela aos seus estudos sobre os avanços da ciência contemporânea (sobretudo a física e suas recentes descobertas). Bachelard foi, sem dúvidas, um pensador brilhante e bem a frente do seu tempo não só com o seu estudo da criação artística movida pelo imaginário poético, mas também mediante a contribuição de sua filosofia na área das ciências e de seus métodos, entre eles o da psicanálise do conhecimento objetivo e o da filosofia do não (uma clara procura de abertura do pensamento científico), bem como seu estudo sobre a intuição do instante, na qual elabora uma cuidadosa análise e exploração do tempo com base nas ideias de Bergson sobre a duração, de Roupnel sobre os instantes sucessivos e na teoria científica de Eintein.

Alessandro Nogueira
Enviado por Alessandro Nogueira em 21/12/2023
Reeditado em 25/12/2023
Código do texto: T7958870
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