O Atentado
O sol tímido do início da primavera teima em invadir o quarto de Seu Antônio, em forma de pequenos feixes de luz amarelada que transpassam as frestas dos desencontros das telhas, anunciando mais um dia de trabalho no roçado. É preciso tombar a terra o quanto antes para não se ver perdido o tempo das chuvas. Essa nunca foi uma das preocupações em seu trabalho. Pouco se importava com os períodos de chuva, a não ser que isso viesse a afetar a qualidade do pasto. Mas, desde que não há mais vacas na fazenda e ainda mais depois que suas filhas constituíram matrimônio com lavradores de terra, adaptou-se, tornou-se também um lavrador. Preocupa-se agora com as chuvas em excesso, com os períodos de estiagem, com a lua minguante, com as ervas daninhas. Erva daninha para ele sempre foi mato, e mato as vacas comem. Agora, preocupa-se em afofar a terra, extirpar as pragas, jogar terra nos pés de feijão para que eles não fiquem descalços.
Como hábito antigo, assim como as galinhas que eriçam as penas e arejam o corpo se sacudindo quando se erguem do ninho, Seu Antônio chacoalha o velho relógio de pulso antes de constatar oficialmente que acordou no mesmo horário de sempre: cinco e quarenta e cinco da manhã. Alonga os braços, o dorso ainda sentado na cama de palha, inflando o peito com o aroma de café e aipim frito que sua filha Rosaura está preparando em seu fogão de lenha.
Rosaura já estava acordada desde muito antes do sol resolver despertar por detrás das montanhas; para ela, era muito importante que a colheita de fim de ano fosse muito boa. A colheita de fim de ano só existirá se houver muito carinho e dedicação, e é claro, uma boa estação com chuvas na medida e temperatura amena. Precisava muito comprar roupas novas para as crianças, quem sabe um vestido para si. Um terno bonito para o marido se firmar na igreja. Sonhava há muito tempo com um fogão a gás para não ter que ficar se preocupando com lenhas nos dias de chuva, comprar ferramentas novas: enxadas largas, um ancinho, um machado bom de corte facilitaria a vida de dona de casa na roça. Uma bicicleta para as crianças irem para a escola com mais tranquilidade.
Sonhava com tudo isso, enquanto seguia sua rotina de preparar o café da manhã para sua família. O pessoal do acampamento lá embaixo na porteira serviu de incentivo que precisavam para ampliarem enfim a área de plantio da família. Rosaura sempre quis e pleiteou com o pai a possibilidade de alongarem a área de roçado para além da grota, mas o velho Seu Antônio sempre temeu estar abusando ou fazendo-se dono do que não era seu por direito. Agora as coisas pareciam estar mudando; iriam avançar a área de cultivo margeando a costa do morro em direção da jaqueira, derrubando as touceiras de rabo-de-burro, dando espaço agora para o plantio do milho, do feijão, quiabo e maxixe; quem sabe também a melancia e o tomate.
Rosaura, como de costume, estava enchendo a tina da cozinha com água que trazia do poço que fica atrás da casa grande. Voltando para casa, teve a impressão de ter visto um vulto de homem se esgueirando por detrás do galpão. Sentiu um arrepio gelado na nuca e como que por instinto, benzeu-se, velho costume herdado de sua avó Don’Ana. Morria de medo de assombrações e criaturas encantadas. Mesmo convertida, crente ao evangelho, não abria mão dos bons ensinamentos que vem protegendo a sua família desde incontáveis tempos.
Chegando em casa, o braseiro do fogão já aceso, pois água na chaleira e a panela de banha para esquentar. O aipim já estava cozido da noite anterior. Encaminhou-se para o quarto; era preciso acordar o marido para começar os preparativos para mais um dia de lida. Assim que passou o café, ouviu o espreguiçar seguido do rangido da porta do quarto de seu pai.
— Bom dia, minha filha, dormiu bem?
— Bom dia, meu pai, lave o rosto e venha tomar o seu café.
Seu Antônio munindo-se de uma cumbuca de zinco, encheu com água da tina e caminhou em direção ao banheiro que fica localizado atrás do curral. Antes mesmo de chegar ao seu destino, ouviu um barulho estranho vindo da direção da casa grande. Teve certeza de se tratar de passos de homem; precisava verificar o que era. Deu a volta apressado pelo galpão no intuito de se pôr de frente com quem quer que fosse que estivesse invadindo a sede logo tão cedo. Já não havia muito o que se roubar naquele lugar, mas ainda assim, nenhum desconhecido era bem-vindo naquele lugar.
Viu um homem forçando a porta da frente e antes mesmo de poder falar alguma coisa, sentiu uma pancada forte em sua cabeça que seus dentes quase cortaram fora a ponta de sua língua. Dor, eco e sangue na boca, formigamento nas pernas e a visão turva. Quase que imediatamente, Seu Antônio perdeu a consciência e caiu no chão, apoiando-se na lateral do galpão.