VICENTE HUIDOBRO - POESIA

Vicente Huidobro foi um poeta de uma poesia puramente cerebral e ao mesmo tempo imaginária. A contradição acima caracteriza bem Huidobro, que considerava o poeta como um vidente, um ser que desvendava os mistérios da natureza, através de um esforço intelectual constante. A vida de Huidobro foi esse debruçar permanente sobre a arte que escolhera até o ponto de conceder à poesia um tom de plena liberdade, de livre associação de imagens, de ruptura das leis da causalidade, ou seja, poesia imaginária e também aplicação intelectual.

Então a obra de Huidobro possui uma lógica interna que vai da concepção do que é poesia até o exercício reiterado do fazer poético e se desdobra ainda em uma resultante que permite caracterizar sua obra como a manifestação da liberdade frente à tradição. E isso se revela em todos os momentos para o citado autor, desde a fundação do Criacionismo até a publicação do poema “Altazor” que, na verdade, é culminância de uma experiência criativa.

O “Criacionismo” seria um objetivo de Huidobro – objetivo inicial de sua carreira de poeta - e afirmava que a poesia deveria inventar novas realidades: na criação de metáforas com muitas possibilidades de interpretação; na criação de efeitos visuais pela disposição do texto sobre a página.

O poema “Altazor”, sendo o ápice desse processo “criacionista”, radicaliza aquela pretensão inventiva desde a sua temática, suas referências cósmicas, fenômenos de uma natureza –estrelas, mares e montanhas- na qual querem se nivelar na ânsia criativa ( com a licença poética de conceder à natureza uma ânsia) até um cataclismo gramatical (associações semânticas, reiterações e estruturas sintáticas, aliterações ) que se reduz - na destruição da linguagem - a meros elementos fônicos, como se a língua do poema (o espanhol) retornasse a um liquido seminal de todos os idiomas e as possibilidades de criação pudessem se novamente evidenciadas.

Huidobro parece afirmar em “Altazor” que só os abismos possuem a verdade e tão distantes são os abismos - esse abismo literário do poema - que sua visão talvez indique ainda o absurdo da realidade na qual Vicente Huidobro se viu envolvido ( e que não difere tanto de nossa realidade de início de século XXI): o caos da Segunda Guerra Mundial, da guerra civil espanhola e até o imperialismo britânico.

Um exemplo do “criacionismo” faz-se necessário como o uso de uma nova disposição das palavras na página é o poema “Nipona” onde há uma nítida forma de flor e provavelmente um caule, que surge através de versos com uma metrificação reduzida. Um outro exemplo de intenção dessa nova estética são os versos de “Arte poética” quando Huidobro afirma: “Que el verso sea como una llave/ Que abra mil puertas..... Inventa mundos nuevos e cuida tu palabra;/ El adjetivo, cuando no da vida, mata.

E podemos captar ainda, um exemplo da evolução do “criacionismo” no seu sentido expressivo quando, no poema “Altazor”, surgem as metáforas poderosas que assustam os mais desavisados: “El mar antropófago golpea la puerta de las rocas despiacadas/ Los perros ladran a las horas que se mueren/ Y el cielo escucha el paso de las estrellas que se alejan/ Estas solo? Y vas a la muerte derecho como un iceberg que se desprende del polo...

Por fim,destaque-se o redimensionamento ou destruição de todas as estruturas lingüísticas, os ruídos sobrantes no papel e a perplexidade que emana, no final no “Canto VII” do poema “Ältazor” : Arorasía ululacente/Semperiva/ ivarisa tarirá/ Campanudio lalalí/ Auriciento auronida/ Lalalí/ Io ia / i i i o/ Ai a i ai a i i i i o ia.”

E é Huidobro quem diz e confirma toda a sua teoria literaria, no prefácio de “Altazor”: Hice un gran ruido, y este ruído formó el oeano y las olas del oceano”.

6 - Estudo comparativo entre os textos: “Libro de los enxiemplos Del Conde Lucanor” de Don Juan Manuel e “Milagros de Nuestra Señora” de Gonzalo de Berceo

Há um trecho do livro “ Estúdios de Historia Del pensamiento español” de José Antônio Maravall em que o autor afirma a concepção de saber do homem da idade média como “una concepción em la que el conocimiento de las cosas se presenta com um caracter fijo y estático, al que no se lê puede añadir nada sino repetir según los modos ya estabelecidos” José Antônio Maravall tenta provar em seu texto que a lógica da Idade Média - se entendermos que a história é basicamente um grande projeto de desenvolvimento humano - foi uma lógica invertida em relação ao conhecimento moderno, pois a mesma não considerava proporcionar ao homem meios de dominar e transformar o mundo. Aquele período histórico objetivava adaptar o homem a uma ordem de valores que se apresentavam como universais, perfeitos e acabados.

Dito isso, não se pode conhecer a Idade Média sem entender que a mesma atravessou os séculos prescrevendo leis que funcionavam em todos os campos de atuação humana. Leis que se emolduravam na síntese de três elementos formadores: o legado da antiguidade greco-latina, a contribuição dos povos germânicos e a religião cristã e, portanto, através dessa interpretação, tanto a visão do cosmos quanto da literatura, objeto do presente estudo, podem ser estudadas utilizando-se bases semelhantes.

Os dois livros do presente trabalho “Libro de los enxiemplos Del Conde Lucanor e de Patronio” e “Milagros de Nuestras Señora” foram concebidos durante a Idade Média, o que nos leva a uma idéia de coesão ideológica relacionada à época estudada, contudo, é necessário detectar aqui, se há semelhanças entre as obras e, no aprofundamento das mesmas, encontrar um diferencial que facilite uma compreensão mais adequada dos textos, compreensão que venha obter o desdobramento de alguma idéia básica, que verifique uma mudança de fachada e se esta mudança foi válida ou não em termos literários.

O trabalho segue a seqüência que se inicia no estudo individual de cada obra, a comparação entre ambas e a conclusão.

O “ libro de los enxiemplos” foi escrito por Don Juan Manuel . Escritor caracterizado pela idéia de que alguns homens perpetraram obras que lhes acrescentaram honra e poder e lhes abriram o caminho da salvação. Tais atos precisavam ser conhecidos por “las gentes que non fuessem muy letrados nin muy sabidores”, pois eram exemplos, exemplos de vida a serem seguidos. Don Juan Manuel tinha uma intenção didática com seus contos: tornar os homens verdadeiramente homens e este didatismo é uma das marcas do texto, devendo pois ser esmiuçada, reparando-se ainda nos dados formais que a confirmam.

Cumpre destacar inicialmente que a intenção do autor supõe uma unidade que só pôde ser alcançada no livro através da permanência de seus dois personagens principais: o conde Lucanor, homem de grande riqueza, alto nível social, que muito se preocupa com os outros e por isso sempre pede conselhos a Patronio, o outro personagem, seu conselheiro, seu ouvido, um homem muito sábio e servil que se limita a contar as histórias que depois servem de bons conselhos para o conde. A permanência das características básicas dos principais personagens, um conselheiro e um aconselhado, dão continuidade aos capítulos do livro e aquela necessidade do conde Lucanor de estar sempre sendo aconselhado ( e efetivamente aceitando os conselhos recebidos ) para bem reinar, demonstra que para Don Juan a formação do caráter dos homens passa pela constante possibilidade de escolha do melhor caminho.

Na reafirmação da percepção acima, temos até a própria história do exemplo XI, em que o personagem Don Yllán admite até o fim, a mudança na atitude de ingratidão do Deán.. O texto, com o seu final que não permite ao ingrato jantar as perdizes - depois que o mesmo delirantemente tornou-se Papa - é suficiente para a percepção do objetivo do autor: a validade do conselho, indicado no final por Patronio, a reafirmar a hipótese do livre-arbítrio e a possibilidade de cada homem de evitar a má conduta.

Quanto aos aspectos formais, percebe-se que nos contos de Don Juan: inicia-se na determinação do exemplo e termina na conformação da “moral da história” que resume todo o conto em apenas dois versos e facilita a compreensão.

Por fim, cumpre destacar dois detalhes que demonstram características literárias significativas: a percepção da realidade espanhola de sua época, a força da igreja com o destaque dos seus membros: clérigos, papas, arcebispos e cardeais e ainda a expressa tentativa de forjar um estilo próprio e pessoal. No prólogo do Conde Lucanor se manifesta: “ fiz este libro compuesto de las más apuestas palavras que yo pude” . Apontada declaração, se reforça o didatismo do autor - pois o estilo também é uma forma de preocupar-se com a transmissão fiel da mensagem em seu livro – não deixa, todavia, de caracteriza-lo como uma obra literária.

O livro de Gonzalo de Berceo já se define pelo título: a exposição dos milagres de Nossa Senhora que é apresentada como virgem de verdade, ilesa e incorrupta. A imagem de Nossa Senhora não admite contestação e a exposição dos milagres, ao contrario do texto de Don Juan, não procura o convencimento do leitor para a pratica de boas ações e nem o comportamento dos fiéis se define pela lógica da correta atitude.

Do texto de Gonzalo de Berceo, o que é objetivado pelo autor é o maravilhamento do leitor diante da Virgem. E o autor pretende capturar este leitor através dos sentidos que são testados primeiramente na exposição de uma natureza que surge transbordante: o odor das flores; os sons das aves doces e modulados; o gosto das frutas que não são podres, nem azedas; um prado que sempre estava muito verde, sem calor nem frio. Um lugar que corresponde ao paraíso bíblico e que juntamente com os versos sempre rimados, prepara o leitor para a aparição de Nossa Senhora que “reina muy poderosa... pues eres muy piadosa” vivificada através da narração de seus milagres e que garantirá à quem lhe for devoto a salvação de sua alma.

Desta maneira, embora emane das duas obras uma valorização da virtude, seja ela de fundo moral ou religioso, e citada relação pareça efetivar-se até formalmente, pois há semelhanças na organização dos textos e também na representação mental do que são exemplos e milagres ( um milagre seria um tipo de recompensa pela efetivação de um bom exemplo de vida); vislumbra-se, exatamente neste ponto de coincidência entre os textos, a diferença básica entre as duas obras, diferença que sintetiza a própria estrutura dos elementos formadores da Idade Média, especificados acima: o legado da antiguidade greco-latina e a religiosidade cristã.

Dito isso é necessário lembrar alguns aspectos da conduta moral da Grécia antiga e da tradição cristã. No século V a.C., Platão, considera o corpo como um empecilho para a ação da razão. O homem deve no uso da razão dominar o corpo, mostrar a virtude como um esforço de purificação das paixões.

Para Aristóteles, a virtude consiste em saber escolher prudentemente o justo meio, a proporção e a medida.

Na idade média, principalmente através de Santo Tomás de Aquino, houve uma retomada da filosofia aristotélica que contribuiu para a fundamentação da necessidade de uma ética rigorosa, da abdicação do mundo, do controle racional das paixões.

Na tradição cristã, valoriza-se o amor a Deus, manifestado nas várias formas de amor ao próximo. O sobrenatural sobrepõe-se sobre o humano e, toda ação é orientada no sentido da contemplação de Deus e da vida eterna. Isso também foi uma determinante na Idade Média.

Cada um dos textos aqui analisados, corresponde a uma das concepções de mundo acima: a antiguidade grego latina e uma certa visão cristã de compreensão do mundo. O que é o texto de Don Juan senão uma indicação de que o homem deve escolher prudentemente o justo meio, a proporção e a medida? Escolha essa que também existe no cristianismo - pois a questão de amar ao próximo fundamenta-se como uma meta a ser alcançada – mas parece não ser uma opção essencial para os cristãos do livro de Gonzalo de Berceo, cristãos cujo comportamento tipifica a Idade Média naquilo que é apenas contemplação e adoração a Deus.

No texto de Gonzalo de Berceo, contudo, a adoração à Virgem Maria pode ser mais depurada, sobretudo, se percebemos que há no culto uma adesão através dos sentidos; que a adoração surge como uma necessidade humana, pela absorção da força espiritual emanada daquela figura; que a santa logrou substituir Deus e Cristo, como se os mesmos houvessem lhe outorgado poderes para administrar os cristãos do mundo e ela, contrariando o mandamento do filho (amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo) determinasse apenas a contemplação de si, a adoração de si. O Milagro VI, por exemplo, deparamos com um ladrão muito mau, que somente queria furtar, mas que se redimiu, pois era um sincero devoto da Gloriosa. No Milagro XV - La Boda y La virgen, Nossa Senhora praticamente obriga um dos seus fiéis, intima-o a não se casar, posto que já era bem casado com ela mesma: “Asaz eras baron – bien casado conmigo/, yo mucho te queria – como a mi buen amigo; /pero tu andas buscando – mejor que pan de trigo:/ no valdrás más por eso – de cuanto vale un higo.

Talvez fosse necessário avaliar o papel da Virgem Maria e observar que o ato de adoração nunca foi tão inexorável como demonstra o texto. A Igreja Católica sempre admitiu a importância da Virgem, não como co-redentora da humanidade junto a Jesus, e sim no sentido de encarnação do amor e da graça concedida por Deus, já que Cristo é o único mediador entre Deus e os homens.

Ocorre pois, no livro de Berceo, um desvirtuamento do mandamento cristão e tão acentuado que levanta outras questões: o texto caracteriza mais a Idade Média do que o elemento religioso de contemplação a Deus permitiria identificar; talvez a relação entre os fiéis e a Virgem ocorra em um grau tão intenso de comprometimento, que provavelmente não se fundamentou em um texto cristão, mas em algo só palpável pela análise do processo histórico; talvez, não haja bem uma tradição cristã, um dogma e sim uma forma diferente de perceber a realidade nos tempos medievais, alguma coisa que se manifestou de forma implacável através do que se denominou por Sistema feudal ou feudalismo.

O Feudalismo, cujas raízes remontam ao fim do Império Romano, caracterizou-se pela estruturação da sociedade com base na relação jurídica denominada vassalagem, estabelecida entre senhor feudal e vassalo ou servo, na qual o senhor proporcionava proteção em troca de fidelidade, trabalho e pagamento de tributos. Ao feudo, unidade física da relação de vassalagem, pertenciam seus habitantes, que passavam a vassalos do senhor a quem fosse transmitido o território habitado e cultivado por eles. Do ponto de vista econômico e social, o feudalismo acarretou a divisão da sociedade em duas classes básicas: a nobreza, com diferentes graus de poder até a cúpula real, e o campesinato, cuja subordinação transformou-se gradualmente em relação de servidão.

O feudalismo determinou a atomização do poder político, pois a sucessão de relações pessoais entre o rei e a alta nobreza, e entre esta e os pequenos senhores, criou um sistema de jurisdições e fidelidades particulares apenas simbolicamente subordinadas à autoridade monárquica. Além disso, a concessão de cargos administrativos com base nos feudos contribuiu para romper a unidade política dos diferentes reinos.

Também a igreja se viu mergulhada na divisão da sociedade em classes, ou estados. Bispados, abadias e mosteiros possuíam grandes feudos e mantinham com seus vassalos o mesmo tipo de relações que os senhores leigos.

Dito isso, como não visualizar nos milagres narrados, uma relação de vassalagem entre os fiéis e Nossa Senhora que, pela leitura do texto, exercia não um poder político e sim um poder espiritual que proporcionava - em troca da fidelidade - a proteção e salvação da alma do devoto (a alma do devoto, a ascendência da Virgem Maria sobre a parte espiritual do homem corresponde ao feudo, unidade física da relação de vassalagem ocorrida na Idade Média). A alma era o feudo onde a Virgem Maria exercia a sua autoridade.

Os dois textos desse modo diferem profundamente - embora haja uma certa coesão formal entre eles e um objetivo comum de realização da virtude humana. O primeiro de Don Juan Manuel é a efetivação de um projeto pessoal e procura tornar os homens verdadeiramente homens através da pretensão de que os mesmos, leitores, assimilariam os exemplos narrados. O segundo Gonzalo de Berceo, procura demonstrar a virtude que ocorre na adoração de um mito religioso, cuja figura e o ritual de contemplação parecem ter sido influenciados pelas relações de vassalagem existentes em sua época. O primeiro texto é mais aparente e formatado de modo a convencer até o último momento, até a “moral da história” ; o segundo texto é mais poético e musical, não convence pela lógica mais pelo funcionamento dos sentidos, condição que obedece a estruturação de obras de arte verbal, no entanto, o texto desdobra esta significação inicial e resulta em algo inusitado: a importância antropológica das relações sociais da Idade Média.