A invenção do dia claro
*Exercício livre de escrita. Impressões sem muita precisão ou compromisso. Espero que faça sentido também pra quem vá ler.
"Dessa vez vai ser diferente."
Falo assim e então já me reconduzo a antes mesmice da idealização, mas que, de jeito nenhum é banal, nem comum. Você nunca vai ser banal.
Me encantei hoje com esse fantasma, o dia que virou noite. Me encantei sem olhar. Não vi, tive medo de queimar a vista. Vi na tevê, li no jornal, que caso olhasse pro eclipse sem um “escudo” pra agarrar os raios UV, a cegueira me acharia, se não agora, num futuro sem tardar.
Tem uma coisa poética no olhar, não tem? O olhar é essa janela pro mundo, esse recorte invisível orientado por outras muitas coisas mais. Por exemplo, descobri há pouco essa palavrinha: Imago.
Que pelo que eu vi tem alguma coisa a ver com Jung, ou Lacan, não sei direito. (Quem for entendido nisso, por favor, me explique)
Para a psicologia, imago é uma projeção de uma imagem ou lembrança idealizada, formada ainda na infância, gravada, talhada na mente, e existida com afeto. Temos por exemplo, o "Imago paterno"
E esse imago, seja ele qual for, de algum jeito guia o meu recorte das coisas que eu considero amáveis ou não, dignas de atenção, afeto e etc
Fiquei pensando muito sobre isso, sobre então, qual a imagem primeira por exemplo, que guia a minha paixão amorosa. Não sei, mas certeza, sempre que acontece uma segunda vez, é pra mim de algum jeito, reconhecível, e deve ter algo a ver com uma ruptura.
Por exemplo, quando olhamos pra cima, quando esperamos mudar o céu, e aí então um corpo celeste passeia em frente ao outro, gera uma mudança no comum, o espanto, o “Anel de fogo”...
Ruptura.
Barthes, em suas notas sobre fotografia, chamará isso de punctum, essa atração, pulsão, o subjetivo que nos fere, atinge, por exemplo ao olhar para uma fotografia.
E isso é real, essa chamada de atenção, quase um "Amor à primeira vista". mas no caso do gostar, da coisa amorosa, eu não acho que perdure.
O amor é uma verdade a longo prazo.
E essa coisa de primeira vista, apesar de ser espanto, não fica de pé no nosso coração. Talvez fique na memória, não no coração.
E aqui é talvez onde fotografia e poesia se separem um pouco. Enquanto a fotografia é contentora do real, tem nele um referente, relação de semelhança, e adestra a cena, a imagem. A poesia seja talvez a criançação, esse caráter selvagem das palavras.
Tento esquecer, mas deve ter um pouco mesmo de narcisismo, do incontrolável. Penso o outro de um jeito tão próximo a mim, inseparável, como um sendo o verso do papel, branco, e o outro a segunda camada, das cores, profundidades e imagem, que olharia com certeza, mesmo que significasse não mais poder olhar de novo, nunca.
E do contrário quando isso não acontece, me frustro e coisa e tal.
Por isso é tão complicado, por isso tenho que "olhar" com proteção, tentar.
É dai que deriva toda essa bobeira amorosa e poética, e maravilhosa. Um sorriso é não mais um sorriso, são mil sóis explodindo pra depois se conter, ser fronteira, moldura entre o rosto e os lábios. É o que antes, até então, não se atreveu nem a ser sonhado.
Barthes acredita que, entre todo o conjunto de fotos que poderia analisar, haveria de existir para si, para cada indivíduo, uma foto especial, uma foto única, capaz de iluminá-lo, ajudá-lo explicar-se para si mesmo. (Leon Idris – Prelúdios, 2019, 7:46 - 8:03
Essa imagem especial única, é sempre claro, intocada, guardada, e não é mentira usar o termo “punctum” pra falar, por exemplo, de amor, daquilo que “parte da cena como uma flecha e vem nos perfurar” (BARTHES, 1984, p. 46).
Uma fotografia pode por essência, chamar atenção. Alguém, um ser humano, pode, por essência, atravessar, romper, e espantar o outro. É isso que é o amor.
Como se, na ponta dá flecha, se envenenasse de sedução, de cheiro, de gesto, e do conjunto de coisinhas que fazem o gostar.
Como se a pessoa amada, fosse para quem ama, algo dito com tanta clareza e tão depressa, que não sobrasse espaço pra coisa contrária, nem argumentação.
Mas que, para o sujeito olhado, representado, (spectrum) nem sempre é desse jeito, já que, assim como a apreensão de significados depende de um montão de outras coisas, pra esse espanto ser correspondido, devolvido, o amor é assim também, pra que seja entendido e recíproco. Pra que se dê "Match". Se não essa ruptura, esse acidente, vai ser solitário.
Vai ser como o próprio Barthes morrendo ao atravessar uma rua de Paris. Para o carro, para a pessoa no volante, para quem passava na hora, num primeiro momento, ele não era um acadêmico renomado, escritor, etc, mas um susto, uma ferida, um acidente no percurso.
Dessa vez vai ser diferente, repito, mais uma vez, mentindo. Isso está muito fora do que eu posso ou não governar. Porque, toda vez, e de novo, e de novo, e de novo, me vejo retirado de mim, investido no outro. Quando olho pra você, bem mais do que eclipse, sinto o dia sendo feito, gravado nos sais de prata e perpetuado.
Sinto
A invenção do dia claro.
REFERÊNCIAS
Por: Aline Zorzo
"Studium e Punctum: notas sobre fotografia por Roland Barthes"
https://medium.com/@alinezorzo/studium-e-punctum-notas-sobre-fotografia-por-roland-barthes-743056ccc357
Por: Infopedia
"Imago (Significado)"
https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$imago-(psicologia)
Por: Leon Idris
"Do espanto, a lucidez - Ferreira Gullar, Barthes e a poética da fotografia"
https://youtu.be/-oHLFOEzOHg?si=X59a4WqU1ci1oZEM
Por: NetSaber
"Imago (Psicanálise)"
https://resumos.netsaber.com.br/resumo-127315/imago--psicanalise-
Por: Roland Barthes
"A câmara clara: Nota sobre a fotografia" https://monoskop.org/images/d/d3/Barthes_Roland_A_camara_clara_Nota_sobre_a_fotografia.pdf
Por: Rodrigo Fontanari
"Do espanto literário ao espanto fotográfico – o punctum barthesiano"
https://www.redalyc.org/journal/5044/504459790003/html/