PARA UMA POESIA DA FALTA

1. A PROPOSTA DO TEXTO

Esse texto surge, primordialmente, como uma atividade avaliativa para a disciplina de Psicologia e Perspectivas Fenomenológicas, componente curricular ministrado pela professora Suely Emilia do curso de Bacharelado em Psicologia da Universidade de Pernambuco. No entanto, peço humilde licença aos meus avaliadores para escrever um texto sobremaneiramente particular, explorando um gênero textual que foge da rigidez acadêmica: o ensaio. Sou um estudante de psicologia, é claro, mas também sou poeta, artista e ensaísta, quero amarrar todas essas dimensões de mim nesse texto.

A proposta da atividade consistia em escrevermos uma narrativa aliando a percepção da nossa experiência no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) aos textos estudados da disciplina, essa proposta, creio, é ideal para escrever o tipo do texto que desejo escrever.

2. SOBRE A INCONSOLABILIDADE

Na verdade, percebo que, apesar de meus esforços infindáveis, tornei-me o que há de pior em meus pais.

A existência se tornou manca e tacanha, comunico-me senão por uma encenação mesquinha, os outros fazem o mesmo. É como se eu vivesse em um eterno filme pornográfico, mas sem gozo algum. Deito-me no sofá, pego o celular e se passaram 6 horas, nada fiz, nada sou. Escuto música mas a música morreu para mim, vejo arte mas a arte morreu para mim, eu beijo mas os lábios que tocam os meus perdem o sentido, logo percebo: nada no mundo pode preencher o sentimento de vazio que aos poucos se apossa de mim. A droga, o amor ou o conhecimento, de que essas coisas me importam se aos poucos nadifico-me?

Sou nulidade, o número zero, menos que homem e menos que rato, eu rio, vivo como um cão, morrerei como um. As coisas que deveriam importar murcharam, minhas preces a Deus não são atendidas, minhas preces a Satã não são atendidas, me vejo órfão de céu e de inferno, tudo é súplica. As lágrimas que descem ardem sobre minhas bochechas e rasgam a minha mandíbula, com os músculos da face expostos e impossibilitado de fechar a boca eu babo até morrer de desidratação, tudo isso gera um riso, um riso silencioso, um riso de si, um riso de desespero.

Esse texto documenta a súplica de um homem que chegou ao extremo do possível, solicito tudo o que um homem risonho pode receber de ruim. Se a morte pode ser vivida através da linguagem, é isso o que essas palavras transmitem. A luz da tela do computador derrete meus olhos, os filmes kitsch repetem-se em fitas na minha nuca, nunca mais serei feliz. (BRASIL,. 2023b)

Na primeira semana do Festival de Inverno passei por uma crise profunda. Mal conseguia sair da cama. Comer, beber água, limpar a casa e fazer as simples atividades do cotidiano eram um fardo incomensurável. Sofria de uma falta profunda de esperanças, o futuro me parecia obscuro, tudo para mim era fatalismo, tinha a certeza: nunca mais serei feliz. Sentia-me como o eu-lírico desta prosa de minha autoria. Há algum tempo atrás, chamei a este sentimento de inconsolabilidade (BRASIL, 2022), característica de quem é ou está inconsolável, de quem não tem esperanças, de quem não pode ser consolado. No momento em que escrevo esse texto não me sinto da forma como me senti na semana passada, quando me identificava com essa prosa. O futuro, felizmente, perdeu sua cor negra. Acho particularmente curioso e até mesmo engraçado esses dois momentos, principalmente pelo pouco tempo em que os separam: até a semana passada jurava por tudo que a vida não valia a pena, e hoje a ideia de lutar por ela me parece interessante.

Tudo isso me veio à mente quando li certo trecho do capítulo 8 do livro “os dois nascimentos do homem”, que falava sobre a Daseinsanalyse. No capítulo, logo depois de discorrer sobre os muitos sentidos da palavra “psique”, os autores fazem uma crítica ao sentido que esta tem dentro da palavra “neuropsicologia”, que muitas vezes resume a subjetividade a processos neuroquímicos, onde o sofrimento seria facilmente apagado diante de uma intervenção medicamentosa.

“Uma pessoa pensa, por exemplo: "Que bom, com o remédio agora não tenho mais aqueles sentimentos de antes, não estou ansiosa, deprimida: foi tudo modificado por meio de uma química. Mas, então, os meus outros sentimentos o que são? O amor que sinto por meus filhos, a alegria que aparece às vezes, a saudade de certas pessoas, será que tudo isso também é só uma questão de química?" Ou pode pensar: "Passou a coisa ruim que eu estava sentindo, mas minha vida continua sem sentido". Além disso, sabemos que a pressa em eliminar o que incomoda impede que a pessoa se aproxime de suas questões mais básicas.” (POMPEIA; SAPIENZA, 2011. p. 148-149)

Enquanto futuro psicoterapeuta não me identifico com a fenomenologia enquanto abordagem clínica, mas sua contribuição para a psicologia e para a filosofia é inquestionável. Partindo da fenomenologia, é impossível discordar do maior filósofo ocidental do século passado quando ele fala da angústia. A angústia é de outra dimensão, não se trata de uma simples sentimento, mas de uma condição fundamental da existência humana, o mergulho na angústia coloca o sujeito face-a-face com a morte e com a falta de sentido, o que o catapulta em direção à possibilidade de uma vida autêntica. Claro, também concordo com Bataille: mergulhamos na angústia, mas sua profundidade é insondável, existem certos estágios angustiosos que podem ser irrecuperáveis, irreversíveis eu diria, é o que ele chama de o extremo do possível. O limiar entre a angústia e a morte. A angústia e o extremo são inevitavelmente transformadores, seria impossível produzir novos sentidos, dar vazão a novos sentimentos sem a possibilidade de vivê-los. O sofrimento, a angústia e o extremo não podem ser medicalizados: não existe remédio para a dor, ela precisa ser vivida.

A inconsolabilidade é também a angústia, é também o extremo, mas possui uma dimensão bioestética. Estética, sabemos, é a criação e o artístico, a bioestética concerne à como a arte cria e modifica as nossas formas de vida. O fato é que sou dramático demais para não ser artista, vivo intensamente a felicidade, vivo intensamente a tristeza e disso estou sempre criando poesia: a poesia modifica a forma como vivo minhas felicidades e tristezas, ela me faz viver, ela é também forma de vida (BRASIL, 2023a). O que resta aqui é um apelo ao amor fati: viver a vida apesar da vida. A tristeza é triste e a angústia nos angustia, mas a possibilidade de criar arte a partir disso muda o caráter e a dimensão de toda tristeza e toda angústia. Para mim só faz sentido sofrer se for assim.

Tudo isso me lembra outro conceito da daseinsanalyse, o das tonalidades afetivas:

“Tonalidade afetiva se refere ao modo mesmo como o ser-aí se encontra “sintonizado” com o mundo que ele mesmo é. Ela corresponde à “afinação” do ser-aí com seu espaço performático, é o modo concreto com que mundo se pronuncia na sua mostração imediata” (COSTA; FEIJOO, 2020. p. 318)

Recentemente vivi duas tonalidades afetivas absolutamente diferentes, o que reforça ainda mais minha posição contra a medicalização do sofrimento. Como poeta, considero o sofrimento como um fluxo de intensidades que precisa ser vivido. O que não significa romantizar o sofrimento, mas entender que ele é inevitável. A tonalidade afetiva colore o mundo e a poesia colore as tonalidades, ela é a metacroma de todas as cores. Escrever poesia (ou prosa) entra aí como um recurso disruptivo, de criação sobre o que se sente, de criação de algo e de criação de si, por isso falo em bioestética e não de estética simplesmente.

A angústia nos redireciona à condição fundamental do ser-aí:

“O Dasein é aquele que carrega consigo o vazio do seu próprio ser. Esse vazio que é espaço de tudo aquilo que ainda não é, que ainda não aconteceu, que ainda não se tornou real, mas pode ser, pode se tornar real. O existir humano tem o caráter de ser sempre não-acabado e, por isso, sempre vindo-a-ser” (POMPEIA; SAPIENZA, 2011. p. 152)

Com isso recordo imediatamente da fase heideggeriana de Lacan, onde ele postula o ser como “falta-a-ser”, entendendo essa incompletude, essa falta, como a forma motriz da subjetividade humana, que movimenta o desejo. Desejo através do qual o sujeito se realiza dentro de seu próprio projeto, dentro de sua fantasia. Tudo isso me faz pensar em uma poesia da falta. Não em uma poesia “daquilo o que falta”, mas uma poesia da falta que é, que existe, que retorna, da falta que angustia e que faz sofrer, da falta que me faz desejar e através da qual posso escrever poesia. Poesia da falta de poesia, poesia de discordância, poesia erótica, poesia política e desejante.

Retomando a primeira citação que fiz nesse texto: não consigo acreditar em uma “psique” como essa que pensamos dentro da palavra “neuropsicologia”, não acredito em uma psicologia médica, acredito em uma psicologia poética. A psicologia é poética à medida em que a psicologia e a poesia são a “cura pela palavra”, cura não como remoção de sintomas ou como o cessar do sofrimento, mas como um apelo à vida, como criação de sentidos para si e para o mundo, como possibilidade de viver o incontornável do sofrimento.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Raul. Poema da Inconsolabilidade. Recanto das Letras, 2022. Disponível em: <Poema da Inconsolabilidade (recantodasletras.com.br)>.

BRASIL, Raul. A Súplica. Recanto das Letras, 2023b. Disponível em: <A súplica (recantodasletras.com.br)>.

BRASIL, Raul. Violência-mictório: manifesto de poesia raulwreneck. [S.l.:s.n], 2023a. Disponível em: <Violência-mictório: manifesto de poesia raulwreneck (recantodasletras.com.br)>.

COSTA, Paulo Victor Rodrigues; FEIJOO, Ana Maria Lopes Calvo de. DASEINSANÁLISE E A TONALIDADE AFETIVA DO

TÉDIO: DIÁLOGOS ENTRE PSICOLOGIA E FILOSOFIA. Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica, Vol. XXVI-3 (2020), p. 317-328. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672020000300008>.

POMPEIA, João Augusto; SAPIENZA, Bilê Tatit. A Daseinsanályse e Clínica. In: POMPEIA, João Augusto; SAPIENZA, Bilê Tatit.. Os dois nascimentos do homem: escritos sobre terapia e educação na era da técnica. Rio de Janeiro: Via Verita, 2011, p. 141-160.