OS HOMENS DE VIDA FÁCIL!

Parte 2 do conto “Calibre 66”

*Por Antônio F. Bispo

Na comunidade Morro do Trabalho Perdido, entre os aliciadores contumaz, havia os quatro tipos corriqueiros, desses que em quase toda periferia podemos encontrar: 1-o policial corrupto que cobrava um percentual quinzenal para “proteger” o comércio e os comerciantes locais; 2-Os milicianos, que também exigiam uma grana mensal para fazer o mesmo serviço no mesmo setor, além de vender/intermediar todos os tipos de produtos ou serviços de origem suspeita; 3-Os traficantes, que ao mesmo modo cambiavam os semelhantes tipos de “proteção e serviços” dos dois anteriores, além do fornecimento e comércio de drogas, armas e tudo aquilo que fosse cobiçado por determinada classe. Quanto mais ilegal fosse o objeto em apreço, mais caro seria o manuseio, transporte e venda desse item ao comprador. Tal produto após entregue ao cliente, poderia ser facilmente roubado (pela mesma equipe) e revendido à um outro interessado, caso o usuário em questão fosse um “vacilão”, que fica dando bobeira por ai.

Já o quarto grupo de parasita social era um pouco diferente: eles poderiam obter lucros exorbitantes e infinitos de toda a população (não apenas dos comerciantes), sem que para isso fosse necessário o uso de armas de fogo, estoque, logística, transporte ou manuseio de qualquer material legal ou proibido.

Eles viviam do comércio da fé, da exploração da ignorância e do atiçar da ganancia dos povos.

Vendiam o abstrato, faziam exposição do invisível, manuseavam o intocável e garantiam resultados sobre o improvável.

Quando o cliente não obtinha os resultados prometidos, eles diziam ser culpa do próprio usuário, de sua falta de Deus ou de ter cometido algum tipo de pecado oculto. Desse modo, “o produto entregue sem defeitos”, apresentaria mal funcionamento logo, logo sem que o fornecedor fosse responsabilizado.

Nesses casos, a solução apresentada por eles era sempre a mesma: repita o processo inúmeras vezes até que se obtenha a benção desejada!

Alguns passavam décadas nessa labuta até desistirem. Outros “morriam na fé” e não alcançavam tais promessas. Por isso o local se chamava “Morro do Trabalho Perdido”, devido à grande quantidade de gente frustrada e explorada convivendo juntas, mantendo a mesma crendice (ainda que de fachada) só para não serem pejorativamente rotulados por outros “fiéis fervorosos”.

Além disso, os proprietários das congregações (e comerciantes da fé) exigiam sempre um padrão de vida inatingível dos consumidores de seus produtos, para que desta feita, a culpa, o remorso e a carência afetiva fizessem dos cativos, um exército eterno de pessoas adestradas, prontas a qualquer comando subserviente, irracional ou autodestrutivo dado pelas lideranças. Era uma loucura conviver naquele local.

Os cabeças desse quarto grupo de extorsão eram conhecidos pelos outros “profissionais do ramo” pela alcunha de: “Os Homens de Vida Fácil”!

Esse título se devia ao modo como alguns (senão a maioria) dentre eles conseguiam obter lucros absurdos e submissão constante ou total do povo sem precisar de muito esforço, investimento, instrução acadêmica, militar ou profissional em qualquer área. Sem falar que este último grupo tinha todo apoio do poder público para manutenção e ampliação de suas “bases e serviços”.

Enquanto o estado enxergava os três primeiros grupos como uma nódoa que precisava ser removida, essa mesma instancia do poder, via este outro como o próprio cloro, a solução final e possível para os três problemas anteriores. Julgavam até que estes seriam a solução para todos os demais problemas que a humanidade teria tido. Em certos casos, o oposto disto é que seria de fato a verdade.

Apesar de usarem praticamente o mesmo modus operandi quanto as extorsões, um grupo seria suprimido, enquanto o outro poderia ser nutrido pelas forças jurídicas e policiais da nação, ou pelo menos daquela localidade.

Além disso, o julgamento moral da sociedade coagida e adestrada, estava fadado a ver apenas aquilo que a fé lhes apontaria como certo ou errado. O bem e o mal nesses casos não seriam resultados de uma causa, efeito ou intenção de alguém ou alguns e sim por determinismo de quem esculpe os desígnios divinos segundos seus próprios interesses, ou seja o povo julgaria conforme os olhos dos garimpeiros do oportunismo.

O’Néscio nasceu, cresceu e ainda vive nessa comunidade. Era um homem simples, sem posses, porém amada e respeitado por todos devido ao seu bom caráter.

Entrando em sua quinta década de vida no mesmo ambiente, ele conhecia bem o local, assim como seus moradores. Sabia também quem eram os exploradores e os explorados de cada viela daquele morro de gente humilde, batalhadora, porém extorquida até o último centavo.

Apesar do nome, O’Néscio pôs-se a matutar, remoendo-se, interrogando-se, questionando à cerca de algumas questões sociais, vistas sob uma ótica diferente.

Será que só ele via estas coisas desse modo? Será que a existência humana se resumia nesse tipo de vida? Será que os dias de um cidadão comum se resumia em reservar (obrigatoriamente) parte do próprio seu lucro e esforço para manter no poder gente folgada e oportunista? Não era possível que o resumo ou a grandeza de nossa jornada na terra fosse apenas isso. Ele acreditava em algo melhor para si e para todos!

Em devaneio ele fez a seguinte observação: Um policial corrupto corria o risco de perder a farda ao ser flagrado e exposto extorquindo alguém. Mesmo assim tinha coragem de ser e fazer o que estava fazendo aberta ou secretamente.

Um miliciano poderia ser preso ou morto a qualquer instante por seus concorrentes quando sua rede ou seus abusos fossem grandes o suficiente para incomodar alguns poderosos. Quando nesse tipo de relação, os figurões da fé ou da política (envolvidos) eram expostos publicamente, uma queima de arquivo era necessária. O sujeito antes poderoso e influente, seria agora um alvo a ser eliminado pelos próprios aliados sem piedade alguma, no intuito de evitar algum tipo de delação que derrubasse todo o sistema. Ainda assim, os da linha de frente assumiam tais riscos publicamente e iam até as últimas consequências.

Um traficante por sua vez não tinha sequer um minuto de paz, pois além da justiça e da milícia em seu encalce, ainda tinha que lidar com gente na mais baixa frequência vibracional que a sociedade poderia produzir. Usuários, viciados e outros traficantes (pobres e ricos) eram seus clientes e parceiros de trabalho. Em alguns casos os tais se tornavam moeda de troca ou a matéria prima a ser refinada e comercializada. De fato, esse grupo era vítima de suas próprias ações e os tais sabiam que cada minuto poderia ser o último em vida ou em liberdade, devido a tudo o que faziam e como faziam. Nem por isso deixavam de se expor, ao ponto de aparecerem até em redes sociais assumindo suas funções e intenções.

Ao contrário disso, Os Homens de Vida Fácil conseguiam obter dinheiro e poder legalmente (segundo o estado), explorando a ingenuidade alheia sem correr risco algum, sem revelar suas reais motivações a ainda por cima cobravam um percentual eterno sobre tudo o que o povo ganhava ou produzia, com a desculpa de que tal arrecadação era para um ser invisível, imaterial e autossuficiente. Além de dissimulados, eram acovardados e traiçoeiros!

Faziam do local de culto uma grande casa de apostas. O “dono da banca” porém, nunca fora visto descendo dos céus para recolher o dinheiro nenhuma única vez nos últimos 10 mil anos. Mesmo assim “os bicheiros” continuavam fazendo a fezinha do povo, incentivando apostas em loteamento nas terras celestiais, numa vida de felicidade plena ou em riquezas infinitas sem esforço algum.

Para concorrer a tal prêmio bastava somente ao afiliado manter em dia o pagamento dos 10% da oferta principal, além de aceitar com gratidão os demais “votos de fé” e vendas de bugigangas ungidas que a liderança pudesse promover.

Fora isso, era necessário que “jogador” fosse um cego e subserviente às hierarquias eclesiásticas e que permanecesse fiel até morte dentro e ao segmento sem jamais questionar um só virgula, dita ou imposta pelos “Homens de Vida Fácil”. Caso contrário, o “bilhete premiado” perderia automaticamente a validade e o fiel poderia ser perseguido e difamado, até que pudesse deixar “por conta própria” aquela casa de eventos.

Enquanto os 3 primeiros grupos de “lesionários” (que causam lesões) sofriam represálias e retaliações constantes, os do quarto segmento corriam o risco de ficar bilionários, donos de emissoras de rádios, jornais e TVs, além de montarem suas próprias bancadas no parlamento. Desse modo podiam influir diretamente na cultura, política e legislação do seu próprio povo e além fronteira.

Era hilário o modo como a sociedade os viam e os apreciavam apesar dos pesares.

Era cabuloso o método de aceitação, inserção de um “profissional tipo” desse no sistema.

Em nossa constituição por exemplo, diz que apontar uma arma de fogo para alguém e exigir sob ameaça de morte os pertences desta pessoa, é considerado crime (quando praticado por algum membro dos três grupos acima citado).

Apontar porém contra outrem, uma bíblia e sob ameaça de morte, fogo, enxofre e sofrimento eterno exigir (arrancar) desta todos os seus pertences (inclusive moradia, emprego, empresa e família), era (ou tem sido) algo legal e judicialmente aceitável, quando praticado em nome de alguma outra entidade metafísica ou em nome do líder da própria seita.

Dois pesos, duas medidas. Para algo ilegal e indecente torna-se aceitável, era só colocar o nome de Deus na frente ou “acima de todos”.

Naquela comunidade, era comum ver ex-crentes sem dinheiro, sem comida, sem emprego e chorando aos cantos. Alguns até dormindo nas calçadas depois de ter apostado tudo em alguma “fogueira santificada” ou em qualquer outra “campanha de fé”.

Era uma vigarice sem tamanho. O estado fazia-se de lesado quanto a esse tipo de gravidade.

O mais cômico disso tudo era saber, que para se tornar um “Homem de Vida Fácil” era muito simples: bastava se autoproclamar aquilo que desejava ser, convencer algumas pessoas de sua própria autoconsagrarão e à partir escolher um modelo de usos e costumes, declarar-se superior às demais ideologias semelhantes ou então sair atacando a tudo e a todos indiscriminadamente, monitorando a vida dos féis, além de fazê-los perder tempo e dinheiro em vãs repetições e mantras auto hipnóticos de reprogramação neolinguística.

Á princípio não era preciso ter caráter ou virtude alguma para se tornar um “ungido”. Tão pouco era necessário nenhum tipo de profissionalismo, ética ou capacidade para realizar algo útil para toda sociedade. Era preciso apenas saber mentir, fantasiar ou pelo menos fingir que acreditava em algum um trecho do próprio discurso que proferiam.

Era imprescindível aos tais submeter-se às hierarquias já constituídas e o repasse mensal de 10% sobre o lucro total que cobravam do povo, para que desse modo, por meio de convenções gigantescas, pudessem proteger uns aos outros em dias difíceis, além de tornar judicialmente legal, qualquer tipo de bizarrice e oportunismo disfarçado de boas intenções ou promessas de esperança aos menos assistidos e abandonados pelo estado.

O sucesso era garantido e as agendas estariam sempre lotadas aos que assim o fizessem. Era o único meio de estabilizar-se e crescer no segmento sem ser passado para trás por outros do mesmo credo.

Se era uma coisa que todo “homem de Deus” temia, era a ascensão de seus próprios obreiros, que ao ver o faturamento e a forma fácil arrecadar fundos, tentavam então arrebanhar os membros do seu chefe para si mesmo no intuito de criar uma nova igreja e assim repetir todo o processo que antes condenava.

Já no primeiro dia de trabalho na tesouraria da igreja, ao perceber o quanto entrava, o quanto saía e o quanto ficava para “o Senhor”, alguns obreiros ficavam estupefatos.

Ao se darem conta depois de alguns meses, que Deus nunca viera pessoalmente recolher os valores arrecadados, a cabeça do “vaso” mudava e de aliado e fiel escudeiro, esse mesmo se tornava um algoz, pronto a destruir o reino dos outros em função da construção do seu próprio segmento.

O’Néscio continuo divagando e pensou: Um policial corrupto precisava ser corajoso (ou burro) o bastante para pôr em risco a própria farda e reputação em troca de uns míseros trocados.

Um miliciano, para “ganhar o que merecia”, gastava horas e horas do seu tempo arquitetando meios para lucrar com a ilegalidade, a fragilidade humana e a ausência do estado naqueles distritos. Discrição, ameaças veladas, desobediência civil e muita insistência eram empregadas em tais situações. Era possível obter inúmeras vezes mais o valor da arrecadação em caso de honestidade e trabalho digno, já que eram mestres da estratégia e logística. A ilusão poder porém os cegava.

Um traficante por sua vez enfrentava “Deus e o mundo” para manter de pé a sua fonte de lucro (imprópria). Além da falta de medo de morrer em confronto com a polícia ou de modo traiçoeiro por outros “manos”, eles corriam o risco de perder toda a mercadoria contrabandeada de inúmeros formas, inclusive por apreensão, afundamento, delação, acidentes ou prisão dos contratantes. O estado de alerta era constante. O esforço era gigantesco para manter de pé o próprio império e o lucro era ínfimo se comparado ao tempo de vida curto que de iriam desfrutar ou ao valor que gastariam quando pegos, gastos para estar em liberdade outra vez. Fora isso, ainda tinha que monitorar cada membro do grupo, além dos próprios concorrentes e a polícia, além de tantas outras situações melindrosas que passavam para “ficarem ricos”. Era sobre-humano os gastos de energia e recursos vitais para se manter nesse nível. Coisa de jerico, uma decisão ruim- O’Néscio pensou. A sede poder correndo nas veias, de peitar a própria união e outras forças internacionais parecia ser a maior paga deste grupo de futuro incerto.

Em cada um dos casos descritos havia um preço alto preço a ser pago para conseguir resultados, inclusive o preço da própria vida e liberdade (ou de suas próprias famílias).

Eram muitas as qualidades pessoais e talentos valiosos desperdiçados no crime todos os dias que poderiam ser aproveitados de forma bem mais proveitosa se houvesse o mínimo de bom senso de ambos os lados.

Eles sabiam disso. Só não queriam descer do salto. Uma vez corrompido pelo poder de decidir o destino alheio, sem perceber, o indivíduo perde o rumo do seu próprio caminho.

No mercado da fé porém, para se o obter os mesmos lucros (ou ainda maiores) não era preciso muito esforço: a covardia e o cinismo eram as principais “virtudes” que os envolvidos principais precisavam possuir. Isso era o suficiente para desenvolver nos outros todos os tipos de paranoias e sede de grandeza que uma mente comum pudesse almejar.

Deveras, era preciso ser muito covarde ou cínico para ser esconder atrás de uma bíblia em troca de dinheiro, poder e prazer. Era o símbolo máximo da covardia humana.

Era o meio mais barato, simples e pacífico desta extorquir as pessoas usando os mais diversos de artifícios, promessas e lorotas, que nem o mais vigarista entre os chacais seria capaz de ousar.

O melhor desse último segmento, é que ao invés de receberem tiros ou voz de prisão, os que usavam deste método, recebiam privilégios do estado ou dos próprios explorados.

Era preciso ser muito sínico para apontar uma bíblia para a cabeça de uma pobre velhinha que mal tem dinheiro para comprar os próprios remédios e exigir 10% do faturamento desta, alegando ser este valor para deus, o seu reino ou sua obra.

Era preciso ter o mesmo nível de covardia para exigir de um pai da família trabalhador, da viúva, do órfão, dos necessitados e até das criancinhas o pagamento de dividendo por serviços nunca prestados ou requisitados.

Era preciso ser muito covarde a ponto de quando pego em flagrante delito ou abuso sexual, moral ou financeiro, transferir toda a culpa para o diabo, dizendo que por ele fora usado, ao mesmo tempo que diz ser templo e morada eterna do espírito santo...

Usar o púlpito e uma suposta autoridade bíblica para pisar, humilhar e perseguir aos que a estes não se submetem...Este é sem dúvida o ápice da covardia deste espécime.

A certeza absoluta da impunidade de dentro e de fora da igreja, faz com que os tais se sintam o próprio Deus em pessoa, ao invés de apenas pensar manipulá-lo ao próprio querer.

Dizia-se entre os meliantes e desonestos: “Entre todas as criaturas feitas por Deus, “os ungidos ” parecem ser dotados de uma covardia fora do comum”!

Entre eles pensava-se não haver em todo o universo uma criatura tão covarde e medonha quanto esse tipo, que camuflava-se entre as páginas de uma suposta palavra divina para cometer de abusos contra os indefesos desorientados. Nem os traficantes, nem os milicianos e nem os corruptos das corporações policiais teriam tal coragem.

Por isso “Os Homens de Vida Fácil” eram cortejados, ao mesmo tempo que temido e desprezado. O estado de espírito, cultura ou financeiro dos indivíduos que a estes circundavam, podia ser o fator decisivo entre o bajular e o rejeitar seus ditames.

Deitado em sua cama, O’Néscio lembrava-se do dia anterior, de como O’Meliante lhe apontara a pistola calibre 66 em sua cabeça e o extorquira sob ameaças e humilhações em público.

Por um instante ele pensou se tipos oportunistas assim, não seriam os emissários do próprio Satã, quem “transvestindo-se de anjo de luz”, viera para roubar a paz dos homens.

Uma longa e dolorosa jornada o aguardava após aquele fatídico dia em que “fora recebido por Deus em sua Santa Congregação”.

CONTINUA...

Texto escrito em 7/9/23.

*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.

Ferreira Bispo
Enviado por Ferreira Bispo em 07/09/2023
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