LITERATURAS AFRICANAS: DESAFIANDO O PARADIGMA BINÁRIO
Por Mbiavanga Adão Garcia
A literatura africana, rica em diversidade cultural e linguística, tem sido objeto de estudo e apreciação em todo o mundo. No entanto, ao longo das décadas, os estudos literários africanos foram moldados por uma distinção epistemológica que criou uma dicotomia entre a literatura eurofona, escrita em línguas europeias, e a literatura afrofona, escrita em línguas africanas. Este paradigma binário, muitas vezes imperceptivelmente, influenciou a interpretação e a percepção das tradições literárias do continente.
O trabalho da renomada autora Sara Marzagora, sobre Literaturas africanas, publicado no “Jornal de Estudos Culturais Africanos”, volume 27, edição 1, em 2017, lança uma luz crítica sobre esse paradigma, desafiando suas suposições arraigadas e convocando uma discussão necessária e vigorosa. Neste ensaio, exploraremos as contribuições de Marzagora e ampliaremos a discussão para destacar o papel da literatura afrofona nas narrativas literárias africanas.
O paradigma binário, que distingue entre literatura eurofona e afrofona, trouxe consigo uma série de pressupostos e hierarquias implícitas. A literatura eurofona, frequentemente vista como global, moderna e escrita, foi valorizada em detrimento da literatura afrofona, considerada local, oral e ligada ao passado. Esta dicotomia, embora amplamente questionada por sua falta de fundamentação teórica, tem persistido, influenciando significativamente o pensamento crítico sobre a literatura africana.
Marzagora (2017) levanta questões cruciais ao questionar essa distinção epistemológica arraigada. Ela argumenta que as tradições literárias em línguas africanas são tão importantes quanto as eurofonas e que ambas merecem reconhecimento e estudo. A autora também destaca como a literatura afrofona não deve ser relegada ao domínio da antropologia, como muitas vezes foi o caso, mas sim reconhecida como parte integrante do cânone literário africano.
É vital notar que a crítica de Marzagora ecoa as vozes de muitos outros estudiosos africanos que há muito clamam por uma abordagem mais inclusiva e equitativa na apreciação da literatura africana. A literatura afrofona, muitas vezes transmitida oralmente, possui uma riqueza de tradições narrativas, mitos e lendas que são igualmente valiosos e significativos na compreensão da experiência africana. Além disso, as línguas africanas, com suas nuances e expressividade, oferecem uma janela única para a cultura e a identidade dos povos do continente.
No entanto, mesmo com as objeções teóricas à dicotomia eurofona/afrofona, ela persiste. A teoria pós-colonial, por exemplo, foi criticada por privilegiar a literatura eurofona em detrimento da afrofona, perpetuando assim o paradigma binário. Além disso, a disciplina da literatura mundial, que identificará padrões globais de desenvolvimento literário, muitas vezes exclui a literatura afrofona, perpetuando a ideia de que ela não é “suficientemente global” ou suficientemente literária.
Uma abordagem alternativa, sugerida por Marzagora e outros, é a adoção de um ponto de vista transnacional e translinguístico na apreciação da literatura africana. Isso envolve reconhecer a diversidade linguística do continente e valorizar todas as línguas e tradições literárias, independentemente de serem escritas ou orais, europeias ou africanas. Nesse sentido, a literatura afrofona deve ser vista como uma parte integral e vibrante do cânone literário africano, enriquecendo nossa compreensão da rica tapeçaria de histórias, culturas e experiências que constituem o continente africano.
Em suma, o trabalho de Sara Marzagora nos lembra da importância de desafiar paradigmas estabelecidos e repensar as maneiras pelas quais abordamos a literatura africana. A distinção entre literatura eurofona e afrofona, embora profundamente enraizada, não deve mais servir como uma barreira à apreciação e compreensão das narrativas africanas. É hora de abraçar uma visão mais inclusiva e equitativa que valorize todas as tradições literárias africanas, independentemente da língua em que são expressas. A literatura afrofona, em particular, merece um lugar de destaque em nosso entendimento da rica e diversificada literatura africana.